L. Ruas (1931-2000)
Quando você me pediu para escrever um artigo sobre sua pessoa, levei a história na troça, pois, sabia perfeitamente, que você acreditava na história do artigo muito menos do que eu. Mais. Não acreditava nem um pouquinho. E o riso desinteressado que acompanhou o pedido estava indicando, claramente, que aquilo não passava de uma ironia jogada contra você mesmo e contra mim. Contra a nossa paralisia intelectual. Contra a nossa convicção de mediocridade e de improdutividade.
Retornando, depois de um mês, comunicaram-me
sua partida. Era um fato! As provas estavam colocadas ao alcance de minhas mãos
e de meus olhos. Alguns livros. Alguns classificadores contendo sua
correspondência. Recortes de jornais, de revistas. E sua produção musical.
Creia-me, porém, que mesmo assim não acreditei muito. Por aí se pode ver que
sou mesmo pior do que São Tomé. E, movido por uma tola ilusão, saí à sua
procura. Quem sabe? Podiam estar querendo me pregar uma peça. Fui aos diversos
lugares onde poderia encontrá-lo. Às nove horas estive na “Insinuante”. Entrei
e fui me sentar na “berlinda”. Muita gente entrava e saía. Rindo, conversando
como se nada houvesse acontecido de importante. Será que não sabiam que você
viajara?
– Já sabe que o Pedro viajou? Perguntei a uma
das garçonetes.
– Viajou? Quando?
Mas perguntou isso do mesmo modo como
perguntaria: o sr. quer sanduíche de bife ou de ovos? Pois nem esperou que eu
respondesse e já estava diante de outra mesa:
– O sr. quer sanduíche de bife ou de ovos?
Fiquei sentado esperando que você aparecesse.
Pedi alguma coisa. Talvez um creme de banana sem tapioca.
Levantei-me, depois, e fui ao Oscar. Aí
falaram-me de você. Falaram soltando suspiros e dizendo reticências de saudade.
Aliás, quase todos os nossos conhecidos me falam de você. E, quase todos, falam
com saudades. Mas não o encontrei.
Depois desta tentativa frustrada “a priori” de
o encontrar, convenci-me definitivamente, da sua partida. Resolvi voltar para
casa e, no caminho, encontrei-me com um de nossos amigos prediletos: um
vendedor de balões. Soltos no ar limpo de um dia claro. Amarelos. Vermelhos.
Azuis. Uma farândola de balões. Ou uma flor multicolorida. Sentiu uma vontade
danada de comprar balões. Mas o homem sério me advertiu:
– Você está doido? Já pensou no papel ridículo
que vai fazer andando com balões, pela rua, a essa hora do dia?
Então eu contei uma porção de histórias
complicadas, mas não convincentes, para o menino porque é dentro de mim, pedia,
choramingando, os balões, como fazem os pais quando não querem ou não podem
comprar os brinquedos que os filhos viram nas vitrinas.
– Doutra vez. Doutra vez eu como. Agora estou
com pressa.
É claro porque o menino sabia que eu não estava
traçado. Mas as crianças facilmente se calam. E eu cheguei à casa sem as cores
puras e adejante dos balões. Não havia dúvida. Você partira mesmo.
* * *
Ora, a gente já escreveu sobre tanta coisa.
Coisas sem importância e coisas mais ou menos importantes. Por que não escrever
sobre você? Não fique rindo.
Depois que revelei a alguém minha ideia de
escrever uma crônica a seu respeito, foi que pude calcular a minha leviandade.
Quando quis começar a escrever, você me fugia das mãos. Você é alguém difícil
de ser escrito. Você é alguém difícil de virar uma das cinquenta ou sessenta
linhas datilografadas. Não é que você seja um sujeito tão carregado de obras,
de realizações, de tal modo farto, que a gente fique embasbacado diante da sua
produtividade. O que foi mesmo que você fez até agora? Não construiu, não
fundou instituições de grande influência social, não escreveu livros e, muito
menos, publicou-os, não figura nas colunas de crônicas sociais. Que fez você?
Uns poucos artigos. Outras tantas composições musicais. Aí está o inventário de
suas “produções”. Mas é justamente por isso que você não é descritível ou
resumível. Há três tipos difíceis de serem descritos: os complicados, os
vazios, os complexos. Os primeiros são aqueles lá de cima aos quais já me
referi. São os que constroem, fundam, publicam, os que dispersam, se espalham,
se dividem e se subdividem em realizações. Napoleão, por exemplo, não foi
somente um homem. Foi também um general. Foi também Waterloo. Foi as pirâmides
do Egito. Foi Santa Helena. Foi um caso de psiquiatria. Foi um caso de política
Internacional. Foi... Bem, foi mais uma centena de outras coisas. Os segundos,
são os vazios. Estes são difíceis de serem descritos por não terem coisa alguma
que ofereça matéria para uma linha sequer. Embora façam, construam, fundem,
criem ou se projetem na sociedade não oferecem coisa alguma. Deles se poderia
dizer o que já se disse de tantos outros: o sr. fulano de tal, emérito fundador
da instituição que honra grandemente a nossa sociedade, etc... E lá se vai toda
a meada costumeira de palavrórios vazios. Os terceiros são como você. Quando
pensei nisso foi que percebi a minha ousadia e resolvi, então, guardar a caneta
e reservar o papel para assunto mais tratável.
Além disso, ando com uma terrível dúvida é. As
tantas peripécias, os tantos jogos, tolos uns, sérios outros, que temos vivido,
ou, como diria o Farias, os tantos chutes que “o molecão do mundo” nos tem ministrado, me deixaram em uma perplexidade
tal ou criaram dentro de mim um problema que não sei resolver.
Até pouco tempo eu pensava que o amigo era
precisamente aquele que a gente conhece e quem nos conhece como a palma da mão,
pois, não acredito muito nessa incognoscibilidade imperscrutável do outro. Não
creio que para conhecer alguém a gente precise virar estrela do mar, deixar os
intestinos de fora, como crê um dos personagens do Sartre. Há pessoas que são
tão abertas, tão viradas pelo avesso que é quase impossível não conhecê-las se
acrescentarmos, ao conhecimento que temos delas, algum conhecimento da natureza
humana. Da sua bondade e da sua maldade. Da sua força e da sua fraqueza. Do seu
Barro e da sua luz. Da sua capacidade de, patinhando na lama, brincar com as
estrelas. Pois bem. Eu pensava que, conseguida essa descoberta, levantado o
último véu, nasceria a amizade firme, inabalável, indissolúvel. Nasceria essa
comunhão, essa inserção, esse enxerto que faz de dois seres uma unidade. Hoje,
porém, estou quase convencido de que a amizade não é esse ponto final e, sim, o
amor, no sentido mais total da palavra. E, como o amor é o ponto final, agora
percebo, claramente, porque a própria natureza e Deus e o Cristo e a Igreja
cercam-no com os arames farpados da lei. É que, mais além desse ponto final,
devido aos nossos frágeis limites humanos, não há mais coisa alguma a não ser o
abismo, a queda, a morte. O amor está à beira do abismo. Mais um passo e a
queda é inevitável e fatal. Daí porque, dos muitos que se arriscam a essa
aventura, pouquíssimos permanecem incólumes. A vertigem das alturas, no plano
moral, é muito mais violenta do que no plano físico.
A amizade, porém, não está no cume. Situa-se
mais abaixo. Nela não se conhecem os precipícios imensos, abertos, famintos,
escancarados. Não há, nas paragens da amizade, vertigem das alturas. O céu é
azul, verde a relva e, nela, de mãos dadas, pode-se brincar os mais alegres e
despreocupados jogos ao contrário do que acontece lá em cima. Lá, no cimo, o
jogo é muito mais arriscado pois o menor seixo pode provocar o desequilíbrio e
a consequente queda na voragem. Eis porque, muitas vezes, a engano ao vermos
certos pares permanecerem lá em cima num eterno abraço. Muitas vezes, aqueles
abraços nada tem do suave jogo do amor mas são, antes, uma verdadeira luta. Um
quer empurrar o outro. Como, porém, a alternativa é evidente, ou permanecem
agarrados um ao outro e, assim, ambos se conservam ou se soltam e o mais ladino
ou o mais forte empurrará o mais frágil ou menos forte, é comum escolherem a
primeira saída: agarram-se. Deste modo o que parece cá embaixo, devido à
distância, união e amor é, na verdade, medo de luta. Uma simples luta pela
subsistência. Não quero, porém, acentuando o lado perigoso do amor, afirmar que
ele é somente perigo. É claro que há o outro lado. O bom, o agradável, o
atraente. E já que estamos comparando o amor a um monte, sigamos na mesma linha
de analogias e perguntemos a uma alpinista quanta satisfação, gozo e alegria
não experimenta ele ao atingir os cimos nevados. Nem por isso, contudo, a
subida deixou de ser arriscada e, com certeza, muitas vezes, ele sentiu a morte
rondando ao seu redor e os abismos se abrindo para o tragarem. O que acontece é
que a alegria da conquista faz esquecer a fadiga da ascensão. O mesmo sucede no
amor. Os fortes triunfam. Os fracos, os medrosos e os inexperientes resvalam
encostas abaixo. É que o amor, situado no ponto mais alto da ascensão humana,
está entre dois abismos: o céu e o inferno, a felicidade e a infelicidade. E
aqui vale recordar o adágio: a corrupção do melhor é a pior de todas. Na
amizade, porém, não encontramos esse supremo gozo e supremo perigo. Nela não há
as grandes tempestades das paixões. Há uma suave brisa, paz e harmonia. E suas
cadeias não são de prata, platina ou de ouro mas se assemelham às cadeias
feitas de mãos unidas como nas cirandas infantis. E o cenário próprio para
amizade seriam essas planuras tranquilas, cheias de paz profunda e da infância
eterna como as que encontramos nos afrescos de Fra Angélico.
Ora, o que dar amizade essa liberdade tranquila
e suprema é a existência do mistério. O mistério nos liberta. Enquanto no amor
encontramos um conhecimento exaustivo, total, perfeito, que revela o ser
integral do outro, na amizade, a permanência dos véus nos oferta essa liberdade
infantil. E você bem sabe como andam juntos os mistérios e a infância. E sabe,
também, que quem penetrou os véus do amor ou se entrega a ele e se salva ou,
depois de haver roubado o fogo divino, recua e se perde.
Você foi alguém que nunca se revelou
totalmente. Quase inexplicável, quase incompreensível. Daí os oportunistas, os
utilitaristas e os fáceis julgarem-no, tantas vezes, uma pedra de escândalo.
Você, como certa vez me disse a Luísa, é uma surpresa contínua. Quando se
espera uma conclusão lógica em suas atitudes, em seu raciocínio, em sua vida,
você tem sempre uma saída patológica que, para os menos avisados, chega a
parecer leviandade, estultícia ou mesmo loucura. Se chegássemos a compreender o
mistério da vida, chegaríamos à compreensão do seu mistério. Mas dizemos
simplesmente esta idiotice embora, para dizê-la, tomemos um ar de sabedoria profunda:
é a vida.
É isto que nos prende a você. Poucas pessoas
não se tornaram seus amigos apenas o conheceram. Pouquíssimas. O seu contágio é
marcante. E se somente uma refinada maldade pode descobrir antipatias em você.
Para alguém chegar a esse termo é preciso uma série de circunlóquios
calculados. Por isso gostamos de você. Porque você encarna, como poucos, a
irregularidade da vida. Irregularidade que afastamos como um perigo ou como uma
loucura e que você ama como a uma irmã. A irmã irregularidade. Eis a razão
porque sempre encontrei nos seus gestos, no seu modo de andar, nas suas roupas
um tanto desleixadas, nas suas reflexões, um pouco de D. Quixote, de Francisco
de Assis e do Mister Blue. A vida, que quase sempre encaramos como um inimigo
ou como uma doença e por isso falamos dela, constantemente, com um tom de pavor
ou de melancolia, você sempre a encarou como uma boa amiga. E chegou mesmo a
pensar que esta é a sua grande arte. Tolos, pretendemos vencer a vida com
nossos jogos maliciosos e com nossa astúcia. Às vezes, com uma indiferença
cabotina. Raramente saímos vitoriosos dessas estratégias. E, enquanto ela
estrondosamente gargalha na nossa cara o riso da vitória, nós nos retiramos,
cabisbaixos, para os bastidores. Você, não. Você a dominou simplesmente
aceitando-a com as dores e as alegrias por ela proporcionadas. Não foi assim
naquela doença grave? Uns choraram, outros se lastimaram, todos ficamos tristes
de uma desesperada tristeza. Você, ao invés, quando saltou do avião, ria. Está
conformado, diziam uns. Ele não liga, cochichavam outros. Todos, porém, se
surpreenderam. Esperavam-no abatido, curvado, vencido. Desapontado, também, com
o imprevisto da vida. Você, ao contrário, ria, sem queixas e sem blasfêmias. E
a sua última viagem? Quando soube como foi você, indignei-me. refleti, porém, e
depois segui sua lição. Podia ser diferente? Podia ter sido como desejávamos
que fosse? Será que podemos pensar em você, sem deturpar sua face, embarcando
todo prontinho, as malas bem arrumadas, não esquecendo coisa alguma, com todos
os seus amigos se despedindo de você? Se isso houvesse acontecido você havia
mudado muito. E eu, talvez, nem o reconhecesse mais. Você devia ter ido assim
mesmo. Com viagem programada para São Paulo, fica em Fortaleza. Quase sem roupas.
Esquecendo o dinheiro (o dinheiro! o mais importante, diríamos) em cima da
mesa. Seus amigos, ocasionalmente, distantes.
“Olhai os lírios do campo... Não semeiam... Não
tecem...”
E, no entanto, viajam e vivem como você:
cantando e alegrando a monotonia da planície infinda.
E como precisamos disso, nós, que andamos
arrumando nossa vida tão logicamente, nós que perdemos o sentido do imprevisto,
nós, os calculistas inveterados que planejamos nosso futuro com régua, papel e
tinta do mesmo modo resolvemos um teorema de matemática. Ah! Como a vida burla
de nós! Você, ao contrário, não faz cálculos, ou melhor, faz, porque o mal não
é tanto fazê-los mas é não saber continuar no mesmo ritmo de alegria e de
comunhão com a vida embora eles não sigam os trilhos sobre os quais gostaríamos
de os ver deslizar regularmente. Todos os que nos aproximamos de você recebemos
esta lição maravilhosa e rara de docilidade à vida. Essa docilidade que o faz
encarar os acontecimentos com objetividade e dizê-los, a quem interessa, sem
ódio, sem rancor. Você diz porque deve ser dito, aponta os erros porque precisa
apontá-los sem a intenção de ferir ou sem o medo de criar inimizades. Todos
recebemos este testemunho de amor à vida. Amor incondicional. Mais que a
lógica, irremediavelmente antes da lógica, porque, somente assim, poderemos
compreender seu significado, como diz Alioscha Karamazoff.
E hoje, se eu fosse escrever alguma coisa sobre
você, eu diria somente que ainda sinto falta de você com a mesma intensidade
como a que senti naquele primeiro dia. Porque sinto falta, muitas vezes, de
alguém que não seja tão importante ao ponto de ter todos os minutos contados e
ocupados, de alguém que não seja meu pai ou minha mãe. De alguém que não me
fale sempre em responsabilidades, em apostolado, em planos, de alguém que não
me procure somente para tratar de assuntos importantes. Ter alguém que não queira
ouvir meus conselhos ou não busque em mim orientação. De alguém que não me fale
de literatura, de política, de arte, de sexo. De todas essas vaidades da vida.
De todos esses pesos da existência. Porque, às vezes, sinto falta de alguém que
seja capaz de ouvir, sem sono e sem tédio, uma porção de asneiras. De alguém
que saiba entender e aceitar, pelo menos em certos momentos, umas tantas
atitudes minhas. De alguém que tendo defeitos como eu os tenho não se
escandalize com os meus. De alguém que não viva exigindo somente perfeição em
mim. De alguém que me dê a sensação de respirar livremente. De alguém que eu
sinta que está presente mesmo quando os demais se afastam. De alguém que...
seja como você: um amigo.
RUAS, L. Linha d’água: crônicas. Rio de Janeiro:
Artenova, 1970. p. 9-15
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LUIZ AUGUSTO DE LIMA RUAS nasceu em Manaus, em
1931. Faleceu em 1º de abril de 2000. O Padre Ruas, ou L. Ruas, foi um dos
integrantes e fundadores do Clube da Madrugada. É autor de “Aparição do clown”
(1958, poesia), “Linha d’água” (1970, crônicas); “Os graus do poético” (1979,
ensaios) e “Poemeu” (1985, poesia). Em 2013, foi publicada a sua “Poesia
Reunida”, pela editora Travessia, organizada por Roberto Mendonça.