Olhou mais uma vez a desmesura do pasto que se estendia até onde a vista alcançava. Verde, reverberava ao sol, enveredando por entre as últimas palheiras que a derrubada poupara - um pouco de sombra para os animais. Pontilhando a paisagem triste, o gado. Pastava onde antes vicejavam frondosas seringueiras ou copadas castanheiras. Ou mulateiros, cedros, cumarus, paus d'arco enfeitados de ninhos e do vôo vermelho das araras. Nenhuma cor recortava o céu. Só um silêncio surdo rastreava a sombra das palheiras, cordado, aqui e ali, pela corrida assustada de um calango. No ar parado nada mais movia.
Francisco cismava, cansado de esperar esperança de dias melhores. Se ninguém vinha enxotar ele e a mulher da colocação, também nenhum adjutório lhe ofereciam. Borracha, acabaram as seringueiras. Castanha, apenas troncos secos, tisnados, espetados no pasto, lembravam a alegria da apanha farta. Até o igarapé secara as poucas piabas que pescava. Viver de quê? Peão, sabia ser não. Nem montar, aboiar, pastorear. "É o que tenho a lhe oferecer" - arrogante o novo patrão, seu Alceu. "Seringal acabou. Querendo trabalhar, preciso de peão. Ou pode ir embora. Ajudo, até".
Entesava em ficar. Enquanto pôde alimentar as criações, ia vivendo de vender um porquinho, comer ovo, galinha, resto de macaxeira do roçado, milho (mesmo mirrado) e os poucos legumes que salvou da seca do igarapé. Dora, a mulher, ajudava bordando panos que ele ia vender aos domingos no mercado. Tomava carona com o capataz do patrão e podia ir e voltar no mesmo dia.
Mas teve aquele domingo que, Dora esperando, não voltou. Mais um trago, prosa, espantavam preocupação. Porra de vida aperreada, queria pensar não. Depois veio a morena de olhar safado, não resistiu, noite igual nunca teve com Dora. Acordou hora alta, cadê a morena? E o dinheiro?
Desde esse dia entendeu que dava não continuar a disfarçar o aperreiro, a penúria, a vida encauchada. V´ambora, Dora?
- Pra onde, homem? Sou tua mulher, não arrenego o que jurei ao padre na hora do casório. Vamos junto, mas pra onde?
Foi falar com o patrão "aquela ajuda que o senhor ofereceu..."
- Está de pé. Mando o caminhão levar sua mudança, dou um dinheiro, e onde morar enquanto não arranja seu canto. Se souber levar, tem como viver até conseguir emprego. Na cidade, homem trabalhador como você, não falta serviço. Vai com Deus.
Difícil acostumar com o barulho da cidade. O barraco que o patrão emprestou, pendurado na beira do rio, dava fundos pra um forró que fervia a noite inteira. De dia era carro passando, passando, buzinando. E a vizinhança, rádio alto, menino chorando, gritando, se amontoava em torno dele. Que saudades do sossego e até da solidão do seringal! Difícil acostumar.
Dora continuava a bordar seus panos. Ele, saía por aí à procura de emprego. Até arranjou um no supermercado: carregar mercadorias, arrumar prateleiras. Mas foi mandado embora quando descobriram que ele não sabia ler. Voltou a batalhar. Depois de muito procurar, pedir - que precisava trabalhar, viera do seringal e o dinheiro estava acabando, que faria qualquer coisa - deram-lhe um emprego de vigia noturno.
Ficar acordado não era problema. Acostumado a sair com escuro pro corte, nem sono tinha. O problema era não poder dormir de dia, com todo o barulho dos carros e da vizinhança. E ainda se dava por feliz de ter aquele canto pra morar. Se seu Alceu pedisse o barraco, ir pra onde? Com o salário de vigia e os bordados de Dora, o dinheiro só dava pra comer e comprar remédio pra mulher, que andava doente.
Foi quando lhe tomaram o barraco. Sem aviso, sem nada, seu Alceu precisava acomodar outra família. Nada adiantou pedir, implorar. Botaram foi suas coisas na rua. Reclamar, pra quem? Ainda foi chamado de invasor, podia ser preso, saísse quietinho.
Por sorte haviam desocupado um barraco na vizinhança: estava caindo. Levou suas coisas pra lá e acertou com o proprietário de consertá-lo a troco de aluguel mais barato. Foi ajeitando, arrumando. Mas cada dia o dinheiro ficava mais curto. Cada dia as coisas subiam de preço, e seu salário, não. Pior o preço dos remédios pra mulher. No quieto da noite, fazendo a ronda, ficava matutando jeito de conseguir o dinheiro que faltava. Até jogou na roleta do seu David, umas poucas vezes. Só pra perder... Procurou arranjar limpeza de quintal, estivador, qualquer coisa que desse dinheiro - nada. Até que o antigo patrão do supermercado precisou de alguém que ficasse vigiando a loja aos sábados, dia de maior movimento, quando mais fregueses aproveitavam para surrupiar alguma coisa: ele foi chamado. Não ganhava muito, mas sempre servia, ajudava.
No começo não conseguia pegar os ladrões. Especialmente as mulheres, que sempre davam um jeito de esconder objetos pequenos no sutiã, debaixo da saia, na bolsa. Depois foi ficando mais esperto e vendo, até, homens enfiarem mercadorias na cintura, embaixo da camisa. Já percebia, pelo jeito do freguês, as intenções. Disfarçavam daqui, dali, e zupt! Dependendo do jeito, até que não era difícil. E se... Assustou-se com o pensamento. Não. Ele não seria capaz de tirar nada do supermercado. A não ser que fosse pra vender e usar o dinheiro em remédio da mulher. Uma vezinha ou outra, só enquanto a mulher estivesse daquele jeito. Porque ladrão ele não era nem nunca seria.
Nos fundos do supermercado ficavam as mercadorias de maior valor. Fáceis de vender: bebidas finas, queijos importados, e outras coisas de gente rica. Até já sabia pra quem oferecer: seu David da roleta gostava de passar bem, e não faria perguntas.
Na primeira vez tremia tanto que quase deixava a garrafa de uísque cair. Aí ficou achando que todo mundo ia reparar naquele volume enfiado nas calças. Fingiu que abotoava a camisa, foi saindo. Uff! Com o tempo foi ficando treinado, cada vez mais animado. Dinheiro já quase dava, até que a mulher estava melhorando, não faltando remédio. Só que, de repente, ela piorou, e o médico passou um remédio muito caro. Era preciso arranjar mais dinheiro, muito mais.
Talvez o nervosismo o tenha traído. Na hora em que estava escondendo o queijo, quem aparece de repente, na sua frente? O patrão olhou-o, a surpresa estampada na expressão de incredulidade, decepção: "Que é isso, Francisco? Você, roubando? Logo você, meu vigia! E eu que procurei te ajudar, dei emprego, tive pena. É essa a paga que você me dá?"
Foi inflexível. Chamou a polícia, levaram-no preso. Na delegacia tentou explicar ao delegado que precisava trabalhar, era vigia noturno, perderia o emprego. Mas de nada adiantou. E quando o deixaram sair, dias depois, nem teve coragem de apresentar-se ao patrão da noite. Explicar como? E o patrão já deveria saber, pois deu no jornal. Ao voltar pra casa, imaginava como explicar a ausência à mulher. Mas - quem sabe? - alguém leu no jornal e lhe contou? De longe viu-a sentada à porta, bordando. Foi chegando, sentou no batente, olhou pra ela. Calada. E não soube o que dizer. Calado.
O rio cheio, passando, ele ficou a olhar os balseiros, ora seguindo, ora encalhando no barranco. E não parava de passar. No seringal, teve um tempo que ele morou na margem, logo que casou. Também passava balseiro. Uma vez ficou olhando e comparando sua vida com as águas do rio; elas passavam igual os dias, sem parar, levando balseiro. Balseiro seria o destino da pessoa. Tanto podia seguir livre, boiando tranqüilamente, enfeitando o rio, como poderia encalhar em algum barranco. E depois? Ficar ali preso até o outro ano, ou ser levado no primeiro repiquete. Ou virar monturo de lixo.
Francisco lembrou com saudades daquele tempo. E agora, que seria de sua vida? Balseiro boiando, chegaria ao mar? Ou encalharia na beira do rio?
No rio cheio continuavam a passar balseiros.
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* Conto publicado originalmente na extinta revista acreana Outras Palavras e reproduzido pelo site Lima Coelho.
** Florentina Esteves é escritora e membro da Academia Acreana de Letras. A meu ver, um dos maiores nomes das letras acreanas.
*** Fotografia de Talita Oliveira.
*** Fotografia de Talita Oliveira.