terça-feira, 1 de abril de 2014

PIMENTA NO FIOFÓ DOS OUTROS É REFRESCO

Olivia Maria Maia


Tem coisas que quando escrevo fico perturbada, sem ter certeza se o que guardei na memória é real, ou se as recordações estão temperadas com a imaginação.

A história das jiquitaias é uma dessas. Cabe uma explicação àqueles que nunca se depararam com uma formiga jiquitaia na vida.  Elas também são conhecidas pelos nomes caga-fogo, formiga-brasa, formiga-de-cemitério, formiga-de-defunto, formiga-de-fogo, formiga-doceira, formiga-lava-pés, formiga-malagueta, formiga-ruiva, itaciba, jequitaia, mordedeira, queima-queima etc. Tantos nomes para designar uma das menores espécies do reino das formigas. Não passam de uns pontinhos. O nome vem do tupi e está ligado a coisa ardida. Pois é, as danadinhas das jiquitaias têm uma ferroada ardida que você vai ver logo mais.

Sim, vamos em frente com recordações bem remotas. Éramos levados da breca e brincávamos soltos pelos quintais da vizinhança. O mais velho por volta dos nove anos. Havia uma premissa para a meninada — não perder tempo com inutilidades. Perder tempo significava se envolver em qualquer situação que nos afastasse das brincadeiras. Algumas, resolvíamos rapidamente. Por exemplo, quando sentíamos sede, chupávamos um caju ou outra fruta suculenta, e a sede era amenizada. Com a fome era semelhante: comíamos uma banana, goiaba, manga, um beribá, uma ingá, às vezes, várias juntas, uma verdadeira salada de  frutas.

Mas havia um momento em que, querendo ou não, precisávamos parar: era pra obrar (na realidade a gente dizia mesmo era cagar, mas acho tão feio  escrever ou falar cagar — bloqueio mesmo, sabe? — que resolvi grafar aqui o termo usual entre os adultos). Aí não tinha quem nos fizesse ir até o banheiro de casa, pois além de perdermos tempo, corríamos o risco de ser capturados por nossas mães para descansar um pouco, como elas costumavam dizer. Nunca entendi esse tal parar para descansar, pois não nos sentíamos fatigados. Acho engraçada essa mania das mães determinarem quando uma criança está cansada. Parece que elas possuem um termometrozinho nos olhos. Com as mãos nas cadeiras e o olhar de generalas, gritavam: Chega!  Você já está cansado demais, pode entrar pra repousar.  Ó sina, quando isso acontecia! Para evitar esse incidente catastrófico, optávamos por fazer nossas necessidades num lugarzinho por ali mesmo.

Bastava ir pra trás de uma moitinha, de uma árvore, ou qualquer coisa. E o serviço podia ser feito sossegadamente. Só havia um porém: como se limpar? Não havia papel, nem água. E não aceitávamos ficar sujos, pois além do incômodo dava uma assadura danada com aquele calor enorme. E ainda poderíamos ser denunciados pelo cheiro.

Aí, alguém, nunca descobrimos quem, sugeriu a utilização de folhas de árvores para fiofó limpinho.

Acabamos por nos aperfeiçoar na descoberta das folhas mais adequadas para substituir o papel — resistentes, macias, grandes. Ao mesmo tempo em que descobríamos, também, as não adequadas para tal função. Uma das não recomendáveis era a folha de goiabeira, não só pelo  tamanho e aspereza, cheia de pequenas nervuras, mas também porque costumava ter ninhos de jiquitaia. Às vezes, um pobre menino desavisado vinha pulando num pé só, com a cara vermelha e com as calças nas mãos. Surra de jiquitaia! Ainda não havia essa história de bullying, mas existiam os metidos a sabichão, que diziam:

— Tá vendo? Tem que aprender a escolher a folha certa, Mané! Deixa de ser mole, que nem arde tanto!

Que raiva que eu sentia, ao ver o pobre coitado sofrendo pelas ferroadas, e ainda sendo humilhado na frente da turma.

As pequeninas formigas, aparentemente inofensivas e sem cabeça, gozavam de um senso de preservação enorme. Possuíam mais juízo do que muitos humanos, e ocasionalmente mudavam de rumo, ou melhor, de moradia. Mudavam os ninhos para as folhas mais improváveis.

Lembro, como se fosse hoje, o dia em que o menino mais metido a esperto (aquele que chamava os outros de Mané) apontou lá no começo da rua, vindo do bairro da Cadeia Velha. Olhos esbugalhados, parecendo que comera pimenta. Engolindo seco e sem dizer uma única palavra. Apenas um nó subia e descia do pescoço, parecendo entalado com farinha d’água. Suado e fedorento. As ventas alargadas como se estivesse pegando fogo, e soltando fumaça por tudo que era buraco. Encostou-se desolado numa árvore. Foi descendo até o chão, esfregando a bunda, parecendo um gato quando quer se limpar.

A meninada toda se aproximou. Olhares dos mais diversos: pena, compaixão, espanto. Mas lá no fundo existia um olhar de vingança e um pensamento unânime que parecia ecoar por todos os lados:

— Vai, espertalhão! Agora tu vai saber que pimenta no fiofó dos outros não é refresco, fio de égua!

> Olivia Maria Maia é escritora acreana, radicada em Brasília. Autora de Em rio que menino nada raia não ferra (2010) e Se a catraia não virar (2013), a qual pertence o texto acima.
> Leia aqui textos de Olivia Maria Maia

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