Crônicas Indigenistas
Começa aqui, a
partir deste texto, uma série de memórias que marcaram este personagem que vos
escreve. Acompanhe as travessuras desse amigo de todos vocês através deste
espaço de crônicas indigenistas...
O que penso da palavra saudade? Bem, meu tempo
de criança às vezes me dá saudades... Ás vezes não. Na minha concepção, saudade
é palavra triste do ponto de vista da perda ou distância de alguma coisa
infalível, ou uma maneira de lembrar com alegria, pessoas ou momentos vividos.
Se assemelha a faca que corta nos dois gumes.
Abro essa conversa
aqui falando de mim mesmo, e dos meus tempos vividos de infância nos seringais
do Aquiry. Graças a Deus, não perdi um grande amor, nesta estrada longa da
vida, e mesmo assim, vou chorando a minha dor, igual uma borboleta, vagando por
sobre a flor.
Nasci na colocação
Bagaceira do Seringal Transval da bacia do Rio Muru, no Município de Tarauacá –
Estado do Acre. Antes mesmo de fazer o primeiro aniversário, fui me banhar de
cinzas do fogão de lenha que minha mãe jogava debaixo do jirau de lavar pratos.
A gente nem sabia que se chamava de 'louças'. Minha mãe é quem servia os pratos
de todos e a mesa da nossa casa era o chão da casa, o assoalho como falamos no
seringal.
Muita cinza debaixo
do jirau. Eis um atrativo forte para experimentar um banho nas cinzas. Estava
todo lambuzado de cinzas, quando minha mãe viu e gritou comigo. Claro que me
assustei e sai correndo, tentei pular uma cerca, mas, segundos depois - segundo
me contaram minhas irmãs mais velhas - cai por cima do braço direito, o que me
fez quebrar o braço.
Minha mãe ficou extremamente aflita e correu
para floresta, indo buscar 'leite' de Janaguba. Essa árvore produz um látex na
casca, que funciona como gesso. Assim, rapidamente ela envolveu meu braço com
algodão da nossa lavoura empapado com aquele leite da árvore e emendou o meu
braço.
Naquela época,
crianças não brincavam na presença dos adultos. Não tomavam parte nas conversas
e nem ficavam andando 'pelo meio' deles, enquanto os adultos conversavam.
Crianças não podiam ter opinião e muito menos destacar propostas.
Um belo dia,
segundo o que as minhas irmãs me contaram, eu quebrei toda ordem da casa,
lançando um protesto sutil e pertinente. Eu ainda contava somente um ano de
idade. Minha mãe colocou a panela de comida perto dela e foi aos poucos
servindo os pratos de todos, no chão da casa. No entanto, ela esqueceu de
colocar carne no meu prato, que problema! Eu olhei a mesa toda reunida então
falei as seguintes palavras, que nem sei de onde tirei: "Você vai pirão sem
carne, sem carne mesmo mais você vai". - Nossa! Isto virou motivo de muita
alegria por parte da minha mãe, que sensibilizada e até emocionada, serviu meu
prato pedindo mil desculpas. Esse acontecimento serviu de graça e ficou na boca
de nossa família por muitos anos.
Mas temos as lembranças ruins e tristes...
Numa certa noite de
festa, que se realizava em outra colocação do mesmo seringal Transval, um
sujeito chamado Pedro Elias assassinou o meu irmão Francisco Manuel. Foi por
ciúmes, porque meu irmão era bem aceito pelas moças com quem ele sempre dançava
por ocasião das festas naquele seringal.
Sua morte foi a
gota d’água para que meu pai e minha mãe se mudassem com toda família daquele
lugar. E assim nos mudamos para a cidade de Tarauacá, onde fomos morar numa
casa improvisada na rua da Anhinga. Não sei se atualmente ainda é este o nome
daquela rua, talvez ainda seja o mesmo.
Dessa época me
recordo de poucas coisas. Lembro do botequim do seu Antonio Sabino, onde meu
pai comprava mantimentos, e de poucos outros incidentes fortes que, enquanto
criança, me envolveram. Relembro alguns...
Eu criava um macaco
prego. Ele se chamava Miguel. Ele mexia muito em tudo: comia o açúcar e
derramava outras coisas, e o povo da família me enchia o saco por causa dele.
Infelizmente aconteceu uma fatalidade, que nem sei se devo contar. Enfim... De
tanto reclamarem do macaco, numa daquelas vezes que mexeu no açúcar da lata, e
por causa das reclamações contra ele, fiquei totalmente perdido e bati na
cabeça do Miguel, que não obedecia e não largava de mexer nas coisas. Ele
escapou mais depois morreu. Nossa! Guardo até hoje o meu sofrimento por ter
sido levado a espancar o coitado do macaco, como eu via os adultos fazerem com
os animais, que merda.
Uma outra lembrança
envolveu o senhor Antonio Sabino, que tinha uma filha moça que se chamava Maria
Sabino. Eu era uma criança mesmo, mas, quando aquela moça falava ali perto de
mim e até me acariciava, eu sentia fortes emoções. Aquilo era mesmo muito forte
em mim. Eu ainda não conhecia a palavra paixão, mas, hoje entendo que me
apaixonei antes mesmo dos meus primeiros três anos de idade. E a moça comigo o
tempo inteiro e dizia coisas que ficavam cantarolando na minha cabeça, mas,
para ela tudo era uma brincadeira mesmo.
Eu ainda não havia
completado meus primeiros três aninhos e já queria ser grande, digo, ser
adulto. Ainda com essa idade, certo dia, brincando, encontrei um canivete
inoxidável daqueles que abre e recolhe a
lâmina de forma manual. Lembro que minha sede de vingança foi aguçada em
questão de instantes e ai veio-me a mente o famigerado Pedro Elias, o homem que
tinha assassinado o meu irmão. Ele estava preso na cadeia da cidade de Tarauacá
e minha cabeça repetia, a todo momento, as palavras de minha mãe e minhas irmãs
sobre a morte de meu irmão, que na verdade, nem cheguei a conhecer.
Assim, sem que
minha família percebesse, peguei o canivete e me dirigi à Delegacia, que era a
cadeia como se chamava ali. Sabia que lá estava o homem que matou o meu irmão,
e eu com aquele canivete no bolso tinha uma boa oportunidade de vingar a morte
do meu irmão. Com tal intenção parti para a cadeia, e ao chegar lá, logo à
porta, fui surpreendido pelo Cabo Joaquim, um Policial da Guarda Territorial e
amigo da minha família. O cabo, ao me ver ali, e daquele tamanho, veio ao meu
encontro. Me abraçou, colocou-me em seus braços, tirou o canivete do meu bolso
e foi me deixar em casa, me levando em seus braços. Ao chegar à nossa casa ele
entregou o canivete ao meu pai, e procurou recomendar aos meus familiares que
não me deixassem sair de casa. Vi minha tentativa de vingança frustrada, e
notei que meu pai também ficou preocupado com aquilo que fiz na minha infância
matutina.
Naquela época meu
pai, Raimundo Batista de Macêdo, mantinha a família ali na cidade e trabalhava
no seringal. Ele comprou do Cícero Kaxinawá a colocação Foz do Igarapé do
Caucho. E aí, aos três anos de idade, fui levado pela família a morar junto com
o povo Kaxinawá. Essa colocação, hoje em dia, é a Terra Indígena Kaxinawá do
Igarapé do Caucho.
Para mim, viver
ali, ainda em idade tão tenra, não foi fácil. Bem no inicio de nosso
relacionamento com os 'caboclos' - como os não índios os tratavam - dava para sentir
que tudo ali era muito diferente da vida que eu levava na minha casa: as
comidas, as bebidas, a maneira de preparar os alimentos, a forma de plantio das
lavouras, a maneira como os indígenas tratavam seus mortos, como se dava suas
festas. - Naquela época não me lembro de ter visto um Mariri.
Naquele tempo, os
Huni Kuin (Kaxinawá) do Caucho já faziam festas dançantes tocadas com
instrumentos, como: acordeão, cavaquinho, violão, pandeiro e maracá. Eles trabalhavam na diária para os brancos da
redondeza e contratavam dois irmãos cearenses e tocadores de acordeão, Isídio e
Simão, que moravam na cidade de Tarauacá, para tocar em suas festas na aldeia.
Mesmo ainda uma
criança dancei naquelas festas, que, por sinal, muito animadas. Isso quando não
aconteciam brigas entre índios e não índios, o que, graças a Deus, nunca
aconteceu com nossa família, afinal, meus pais eram amigos dos índios.
Lembro que numa
dessas festas, realizada na aldeia Kaxinawá do Seringal Tamandaré, houve uma
briga, e um senhor de nome José Berto Lino matou a facadas o 'caboclo' Serrano
Kaxinawa. Da nossa família não tinha ninguém naquela festa e ainda bem que não
estávamos, pois nos falaram que a briga foi feia.
Os Huni Kuin sempre
se mostraram muito animados, gostavam muito de festa, naquela época, tempo dos
seringais. Embora guardassem com eles muito de seus saberes tradicionais,
viviam como os seringueiros regionais, e não me lembro que eles tenham nos
mostrado a época festas de sua própria cultura, o que atualmente se observa, está
bem recuperada e praticada conforme a tradição deste povo.
Antônio Batista de Macêdo, o Txai Macêdo, é sertanista da FUNAI e uma
figura importantíssima para o indigenismo e para os povos indígenas no Acre.
Juntamente figuras como com Txai Terri, Dedê Maia foi (e continua sendo) uma
memória viva do que foram os anos de luta, desafios, vitórias, alegrias e
tristezas em prol das questões indígenas nesse rincão da Amazônia. Vivas a esse
grande txai, cuja história merece ser contada e recontada por quem admira e conhece o seu trabalho. (Jairo Lima)
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