domingo, 15 de abril de 2018

KANARÔ: PERSEGUINDO A POÉTICA DRAMATÚRGICA DECOLONIAL EM BETHO ROCHA E MATIAS

João Veras
A história do teatro acreano – o mesmo que a história do teatro no Acre – é muito recente. Sou de uma geração que assistiu e viveu um de seus capítulos mais significativos nas décadas de 70/80/90. A exemplo das outras manifestações artísticas - como a música, a literatura, as artes plásticas e o cinema - a dramaturgia acreana nasce e caminha como uma possibilidade outra de nos manifestarmos sobre o entorno e o interior de nossos desassossegos no aqui agora do viver social e cultural locais. Uns mais engajados com questões sociais, outros menos, mas, de qualquer modo, é possível afirmar que, como regra, muito dessa produção artística não ignora – pelo contrário enfrenta – as questões de interesse locais que buscam desassociar falseadamente a cultura da política - especialmente as que dizem respeito a relação do poder institucional, de caracteres colonizadora, exploradora, racializadora – com os grupos sociais – nomeados como minorias.

Sempre quando penso no que assisti e vivi nesse passado recente do teatro acreano me vem à mente duas de suas vertentes, estabelecidas ao longo desta jovem história, que a mim parecem significativamente simbólicas dessa dramaturgia que aqui vou adjetivar de decolonial (na frente explico o que isto significa e o porquê): a do Grupo De Olho na Coisa, de Matias, e a do grupo Adsabá, de Betho Rocha, ambos falecidos no mesmo ano de 1997.

Estes grupos dirigidos/concebidos por estes dois artistas acreanos carregam posturas estéticas e temáticas aparentemente diversas entre si. O De olho na Coisa se finca na questão social em volta da relação floresta/cidade, tanto no que diz respeito aos seus efeitos sociológicos quanto ecológicos. Ambos postos de modo a denunciar as condições colonizada/racializada dos sujeitos seringueiros e indígenas e de seus territórios tidos, pelo olhar colonizador, como periféricos, tradicionais e, por isso, atrasados, antieconômicos e inferiores em relação à chamada modernidade sustentável dos centros. Por seu turno, o Adsabá, na fase em que Betho se volta para uma dramaturgia dita antropológica (especialmente com as peças Histórias de Quirá e Lendas de Contato, baseadas na cultura e narrativa indígenas dos Madija, da bacia dos rios Purus e Juruá), ocupa um vazio temático até então contido nas expressões artísticas, não só dramatúrgicas, em razão da então – mantida historicamente - invisibilidade social, política e cultural dos indígenas “acreanos”. Betho, para além disso - assim como Matias faz em relação aos seringueiros - chama atenção para os valores culturais, políticos e sociais dos povos indígenas locais.

Todavia, é no campo da linguagem estética que ambos parecem caminhar de modos um tanto diversos. O De Olho na Coisa busca uma dramaturgia de comunicação direta para a fácil compreensão de todos (para tanto se vale da oralidade e de outros elementos da chamada cultura popular) – o que não arranha seu valor artístico – posto que, na voz de Matias, o seu teatro é uma forma de manifesto político-estético ante a realidade em que se encontram inseridos seus fazedores e expectadores. Não é à toa que o De Olho na Coisa preferia a rua – de livre e imediato acesso a todos - ao espaço da caixa cênica, esta, de certo modo, ainda seletiva e, por isso, muito pouco acessível ao grande público.

O Adsabá, por sua vez, pautado em montagens no escuro da caixa cênica, propõe uma estética da experimentação de caráter dramaturgicamente original, de forte influência da linguagem fílmica, especialmente quanto à luz, e inovadora no aspecto teatral quando a dança – o corpo em movimento/música – supera a palavra. Os seus personagens pouco ou nunca falam. Quase um teatro mudo, sonora, cromática e imageticamente.

O fato é que, ambos os grupos, mantiveram-se resistentes frente a tudo que representa o poder moderno-colonizador no campo da estética e da política. Matias por defender a vida da floresta e seus habitantes seringueiros contra a frente de desenvolvimento e progresso que a destrói, periferiza/subordina os seringueiros e coloca em seu lugar o boi e a exploração madeireira. Betho por tratar nos palcos a dimensão cultural indígena com respeito e sem a instrumentalização folclórica, contra todos os preconceitos/racismos étnicos em face dos índios.

O mundo de Betho parece movimentar-se da cidade para a floresta. O de Matias no sentido inverso. Ambos fazendo tais movimentos às avessas e vice-versa. Betho era forma estética numa estética de pleno conteúdo político. Matias era substância política num conteúdo de plena forma estética. Na prática (e na teoria) tudo se embaralha e vira teatro de cada um em particular próprio.

Por estes dois grupos, dois criadores, o teatro acreano – e no Acre – se manifesta, na forma e conteúdo, uma expressão estética de caráter decolonial, isto é, uma arte não conformada - mas insurgente - tanto em relação ao status quo político, quanto em relação ao sentido artístico dominante de seu tempo. Talvez esta seja a maior razão que me mova à lembrança e, principalmente, ao reconhecimento deles como expressões definidoras de uma dramaturgia marcadamente própria na cena artística acreana - e não cópia, como aos costumes coloniais se espera sejamos em relação aos cânones dos centros de produção e difusão cultural nacional e mundial.

Ambos faziam teatro apesar do teatro, ou melhor da concepção de teatro a que deviam seguir. Ambos faziam um teatro “desacademizado” – isto é, sem a obediência – o que não quer dizer desconsideração - aos padrões das técnicas e cânones teóricos. Ambos faziam teatro apesar da condição hierárquica a que estavam postos – como um teatro inferior, posto que amador... – pela visão cultural colonizadora. Ambos tematizavam o local, ou melhor, partiam dele, seu lugar de enunciação. Ambos traziam nos seus corpos as marcas do racismo da colonização dita modernizadora. Matias era negro, ex-seringueiro, pobre, artista “amador” e morador da periferia. Betho, poeta, homossexual e artista sobre-vivente do teatro amador no Acre. Eles lutavam contra a condição histórica de todo considerado não-ser que a visão colonizadora lhes impingia. Suas obras/eles – em corpo/alma - eram formas de resistência a tais condições. Eles (e seus teatros) foram desobedientes à condição colonial, daí decoloniais.

Dito assim, não estou desconsiderando tudo que na época, depois dela e agora, se fez e se tem feito no teatro local, muito do que se comunica com – e é determinado - por estas duas vertentes, o que as legitima como referência de pesos político e estético neste campo.

Este reconhecimento pontual o faço para considerar que o espetáculo Kanarô, do grupo Vivarte (em sua qualificada experiência de 20 anos de teatro de rua, de floresta e também de caixa cênica), é declaradamente um produto direto da influência destes dois projetos/referências da dramaturgia local. Nessa linha, Kanarô, ao seu modo e no tempo de agora, se propõe muito humildemente a ser um manifesto político-estético da força de um De Olho na Coisa e também um manifesto estético-político pautado nas experimentações cênicas e respeito antropológico de um Adsabá. Se acaso este desejo/desafio não se realizar – pela percepção atenta de cada um dos que o expectarem no arena do Sesc - Kanarô não perderá viagem se for aceito como uma homenagem ao teatro acreano, por estas suas duas expressivas vertentes. Quem assistir verá.

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