terça-feira, 17 de abril de 2018

AS “CASAS DE FARINHA” DE TARAUACÁ

Mário Maia (1925-2000)

A casa de farinha [...] não era uma casa de farinha propriamente dita, isto é, o local onde se procede o fabrico de farinha de mandioca com caititu, roda bolandeira, prensa, forno, tacho de torrar, cocho para separar a goma do tucupi e demais apetrechos dessa faina de pequena e artesanal indústria de herança nativa, de transformação da macaxeira. A “casa de farinha” era um grande galpão cujas tesouras, linhas, caibros, longarinas e pernas-mancas, eram feitas de madeira roliça, sem descascar e coberto com palha de ouricuri. O assoalho era de tábuas grosseiras, sem aplainar, postas, ajustadas e pregadas lado a lado. Esse grande barracão assim descrito, construía-se periodicamente em Tarauacá, mais ou menos no mesmo lugar, nas épocas de eleições, daqueles tempos em que havia comícios e quando se ia falar, não se fazia boca-de-siri. Era edificada na beira do rio, bem em frente de onde o Muru conflui com o Tarauacá. Aliás, essa denominação de Casa de Farinha, foi oferecida pelos adversários que assim a denominavam, pejorativamente, a fim de causar raiva aos opositores, querendo significar que o local de suas festas políticas, pela aparência tosca da construção, assemelhava-se mais ao galpão da bolandeira e do caititu.

Aconteceu que os partidários do PTB que construíam o barracão, ao invés de se apoquentarem, glosaram o chiste, transformando-o em sigla de propaganda político-partidária, popularíssima, invertendo, desse modo, a provocação dos pessedistas.

Os trabalhistas de Tarauacá falavam com euforia e até com uma certa vaidade: – “Pois é; é nossa Casa de Farinha mesmo. Lá nós ralamos no caititu a macaxeira para fazer farinha, beiju e tapioca”. As palavras aqui vão além do seu simples significado: é uma alegoria para mangar do chefe principal do PSD no Acre que também era conhecido como deputado “macaxeira” devido a uma comparação pouco feliz que o mesmo, em uma das campanhas políticas, em um certo comício, fez com as raízes amidógenas dessa euforbiácea com os hábitos alimentares primitivos dos acreanos. 

Assim, o povo do “peteba” queria dizer que ia triturar o político, na casa de farinha, transformando-o em farinha, goma e tucupi. Dessa forma, com o passar do tempo, Casa de Farinha no município de Tarauacá, na linguagem política local, deixou de ser um simples galpão improvisado, para o povo humilde se divertir, nas épocas de campanhas políticas. Casa de Farinha tornou-se uma instituição de forte significado político, com características próprias e interessantes. Dessa concepção farinosa, institucionalizada pelos habitantes dos vales daqueles rios, principalmente nos períodos de propaganda para os pleitos eleitorais, costumam criar-se várias expressões populares derivadas desse fato, no sentido figurativo de exaltação do Partido, em suas manifestações folclóricas, tais como: “vamos fazer farinha”, “vamos à farinhada”, “vamos torrar beiju” ou “fazer tapioca”, expressões que no período da campanha política, equivalem a: “vamos mandar brasa”; vamos pular, gritar, dançar e dar “vivas” aos nossos candidatos, “vivas” ao nosso partido e “morras” aos adversários. Casa de Farinha, portanto, em Tarauacá, significa povo humilde, simples, de mãos calosas; gente afeita ao trabalho da agricultura, do seringal, dos roçados, das praias, dos rios e dos barrancos do Muru e do Tarauacá.

Outro nome que venha a ter a agremiação representativa dessa gente e desses valores, vericar-se-á sem esforço que a expressão “Casa de Farinha” vai ficando, sedimentando-se, enraizando-se e enriquecendo de significado, já agora não mais simbolizando um galpão de palha, porém, sim, um estado de espírito social, político-partidário, cada vez mais consistentes em seu fim, influindo significativamente na sociedade local. De fato, extinguiram-se partidos, criaram-se novas siglas, mas a alma alegre das farinhadas não se extinguiu. Ela continuou e continua transformando a macaxeira em farinha, beijus e tapiocas. E não é mais só em Tarauacá. Todo o Acre está na farinhada, aderiu a farinhada e quanto mais macaxeira houver, mais caititus aparecerão para ralá-la. Assim, a expressão “Casa de Farinha” permanece viva, mesmo quando aquele galpão de madeira roliça e palha de ouricuri vai se acabando até se construir outro no mesmo lugar.


MAIA, Mário. Rios e Barrancos do Acre. Niterói: Gráfica do Senado, 1978. p.121-123

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