quarta-feira, 18 de abril de 2018

POEMAS DE PAULO BOMFIM

Foto: culturafm
AMO-TE ASSIM

Amo-te assim
Com o amor dos condenados,
O desespero dos náufragos,
A lucidez dos suicidas;
Moro em tua liberdade,
Sonho em teu mar selvagem,
Desperto em tua vida.
Amo-te assim
Com a tristeza dos cegos
E a doçura do crepúsculo
Na hora azul que se perde
Entre o que sou e o que fui.
Amo-te assim
Em cada último minuto
Que rola sobre as pétalas
De tua essência,
E morre em minha carne. p.36


TROVA

Longe de ti eu me sinto
Ave sem pouso e sem lar.
Longe de ti sou apenas
A praia longe do mar. p.39


AQUILO QUE NÃO FOMOS

Ninguém tem culpa
Daquilo que não fomos!
Não houve erros,
Nem cálculos falhados
Sobre a estepe de papel.
Apenas,
Não somos os calculistas
Porém os calculados,
Não somos os desenhistas
Mas os desenhados,
E muito menos escrevemos versos
E sim somos escritos.
Ninguém é culpado de nada
Neste estranhar constante.

Ao longe, uma chuva fina
Molha aquilo que não fomos. p.189


POEMA DO ADOLESCENTE TRANSVIADO

A vida oferece
A boca
Os seios
E um sexo desesperado

Buscamos paz
No atordoamento
Colhemos amor
Na vertigem
E a morte
Gruda-se à nossa cintura
Na garupa
Das motos
Que voam como
Anjos perdidos

No fundo de todos os corpos
No fim de todos os delírios
Estamos lúcidos e tristes
Com blusões de sangue
Cobrindo um luto de viver p.224


DAS ORIGENS

Das origens só restou
este jeito de sentir.
Arrogância disfarçada,
sesmarias de remorso,
glebas de tédio e de luto,
ponchos cobrindo de sono
o galope das varandas.
As demandas se perderam
na agonia dos avós,
e o tiro das emboscadas
é flor de chumbo crescendo
no pressentir de seus netos.
Há vetustos casarões
e espectros de cafezais
habitando nossos pousos;
– os mansos apartamentos,
as vivendas de aluguel
onde deuses clandestinos
tilintam suas esporas,
preiam índias, sangram ouro,
emprenham sol nas mucamas,
balanças cadeiras rústicas,
e tiram de seus alforjes
a palha para o cigarro,
a pólvora para a morte,
e a matéria para o sonho.
Das origens só restou
o sigilo das candeias. p.321


TÃO AZUL

Tão azul ver-te partir
Escoltada de silêncio!
Os alaúdes calados,
Os retratos pensativos,
Limo na voz das estátuas,
Cantares emurchecidos,
A seiva petrificada.
Longe navios parados
E moendas sem moer.
Perto uma ausência crescente,
Toda clareira de adeus,
Um soluço nos relógios,
Gota de sal sobre a mesa,
Fumaça intacta no espaço
E a palavra sem ser dita
Num estojo de veludo.
Tão azul ver-te partir
Entre capítulos brancos! p.325


DO POETA MORTO

Da vida esta aventura sem ventura,
Parte o cantor legando-nos seu canto,
E a morte surge como surge o pranto
Na face da paixão que inda perdura.

E do silêncio que se faz ternura,
E da alegria que se faz espanto,
A rua desmanchada no acalanto
E o verso-estrela numa noite escura.

Parte ficando em tudo quanto amou,
Nos gestos que sangrou de veia aberta
E na canção dos corpos que habitou.

E aquele que do amor fez sua vida,
Conquista na paixão que lhe desperta
A morte essa mulher desconhecida! p.367


DE TUDO QUANTO AMAMOS

De tudo quanto amamos o que resta,
O riso desbotado dos retratos,
A talagarça dos momentos gratos
Ou a tristeza desse fim de festa?

Ficou por certo a ruga em nossa testa
Inventariando feitos e relatos,
E vozes e perfis somando fatos,
E a desfocada imagem da seresta.

E tudo o fogo afaga em canto findo,
Este porque de coisas devolutas,
E o tempo nômade que foi partindo.

Ficou de quanto amamos nos escolhos
A restinga das horas dissolutas,
E o mar aprisionado em nossos olhos! p.372


BOMFIM, Paulo. 50 anos de poesia. São Paulo: Editora Green Forest do Brasil, 2000.

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