sexta-feira, 20 de abril de 2018

MÚSICA DE CÂMARA de James Joyce

Música de Câmara é o primeiro livro do irlandês James Joyce (1882-1941), publicado em Londres em 1907. Os versos, raras vezes irônicos, falam da arte da poesia, de amor e traição, amor e solidão. Na época em que escreveu os versos, Joyce dizia que ele “era um rapaz estranho e distante dos outros, andando sozinho à noite e pensando que algum dia uma moça me amaria”.
VI

Quem dera o doce peito eu habitasse
(Tão belo ele é, tão doce e vero!)
E o vento rude nunca me rondasse...
Por causa do árido ar severo
Quem dera o doce peito eu habitasse.

Tivesse nesse coração morada
(De leve, bato, imploro à moça!)
E nele a paz me fosse partilhada...
Esse ar severo fora doce
Tivesse nesse coração morada. p.61


VII

Amor, vestes leves, passeia
Entre as macieiras – via
Por onde o vento alegre anseia
Correr em companhia.

Lá, onde o vento alegre para
E corteja a jovem rama,
Amor vai lento, a se inclinar à
Sombra sobre a grama,

E o céu pálido e azul é a taça
Por sobre a terra gaia,
Amor vai leve, a mão com graça
A segurar a saia. p.63


IX

Ventos de maio, em dança mar afora,
Dançando lá numa giranda em glória,
De sulco em sulco, a espuma esvoaçando
Ao alto, até tornar-se uma guirlanda
De arcos prateados que atravessam o ar –
Não viram meu amor nalgum lugar?
Malandança, malandança!
Ah ventos de maio em dança!
Amor é triste se amor está a distância! p.67


XXII

Do doce cárcere a prender-me,
Disso carece, amor, meu ser –
Ternos braços que põem-me inerme
E que também me impõe deter.
Eu fira alegre por lograr
Ser encerrado nesse cárcere!

Na teia de braços que o amor,
Minha querida, deixou trêmulos,
Tal noite atrai-me, onde o temor
Não possa nunca perturbar-nos;
Só um sono-em-sonhos vá se unir a
Um sono, a alma e a alma prisioneira. p.93


XXIII

Junto ao meu peito vibra um peito
Que é todo o bem, toda a esperança;
Num beijo e noutro, satisfeito;
Insatisfeito, se a distância.
É todo o bem que me foi dado – é! –
Minha única felicidade.

Pois lá (o musgo onde a corruíra
Aninha vários bens num canto)
Guardei os meus, antes de vir a
Descobrir o que era o pranto.
Teremos tal sabedoria
Se bem o amor dure um só dia? p.95


XXIV

Em silêncio, ela penteia,
Penteia os longos cabelos,
Em silêncio, com graça
E com uns gestos tão belos.

O sol está no salgueiro
E nos matizes sobre a erva:
Ela ainda se penteia,
Diante do espelho se observa.

Peço, não penteies mais,
Não penteies o cabelo,
Pois sei de certa magia
Sob aspecto o mais belo,

Que torna indistinto ao amante
Estar vivo ou se finar
Por ela, ó tu que és tão bela
E de um descaso sem par. p.97


XXVII

Mesmo que eu fosse um Mitridates
Imune à seta com veneno,
Me envolverias sem cautela
Até o teu êxtase mais pleno
E eu me render e confessar-me
Essa malícia do teu charme.

Para uma frase bela e antiga,
Querida, a boca é bem esperta;
Não sei de amor que se bendiga
Com o flautear de nossos poetas,
Nem de um amor onde não há de
Haver alguma falsidade. p.103


XXVIII

Gentil senhora, não me cante
Canções tristes, de amor que acaba;
Deixe pra a tristeza; cante
Como esse amor tão breve basta.

Cante o longo torpor de amor
De amantes mortos, lado a lado,
E como, em sua cova, o amor
Vai repousar. Está cansado. p.105


XXXVI

Escuto um exército em carga pela terra,
E estrondo de cavalos se arrojando, a espuma nos joelhos:
Arrogantes, com armadura negra, atrás deles se erguem,
Desdenhando as rédeas, com chicotes flutuantes, os cocheiros.

Eles bradam para a noite os seus nomes de guerra:
Choro dormindo e ouvindo ao longe o vórtice da gargalhada.
Eles cindem o escuro onírico, fulgor que cega,
E martelam, martelam meu peito como a uma bigorna.

Eles vêm sacudindo em triunfo a verde e longa cabeleira:
Eles surgem do mar e aos berros correm pela praia.
Coração, não tens prudência nenhuma, com tal desespero?
Amor, amor, amor, por que me deixaste só? p.121


JOYCE, James. Música de câmara. Tradução de Alípio Correia de Franca Neto. São Paulo: Iluminuras, 1998.

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