Abre a gaveta do
tempo
sem etiquetas,
poema.
Abre a gaveta e
limpa
o esquecimento.
Tira de seu
interior, os abstratos
temas, razões de
antigo fervor,
cartas, dezenas de
folhas:
e rolhas de ideias
sem cor.
Tira os insetos da
rima
ou se rima ficar; o
conforto
é enterrar o já
morto,
poema. Viver é
depor.
Depois, cerrar a
gaveta
como uma ata
e a sarça de sons,
poesia,
nunca me farta.
II
O poema vem de onde
venho,
de sua limalha.
Na sua torrente,
ando.
Não me corrói,
depositário
fiel de seus
transportes.
Do poema
faço a mala de
viagem,
a força de
construir
o que não ganho,
a força de cavar
o que não tenho.
Do poema: “o
visto”.
Para onde? Não
disponho.
III
Cavo o poema
com meus valores;
cavo o poema,
com desespero,
como se cava um
filho.
Em tudo o que crio
ou destruo;
na asa da gaivota,
na grota.
O poema como
balança
entre a mesa e o
pensamento.
Mais perto deste,
quando me alcança.
IV
Lutei, Jacó, três
dias
e três noites
e o poema me venceu
com seu açoite.
Três dias e três noites,
lutei contra o
vazio
das palavras
e a poesia
cuidou as feridas
e as lavas.
Jacó, não
derrubavam
meu semblante,
na luta de antes.
Na luta de Deus
ou da morte,
o verso, o verso
repetido
como um mote.
Três dias e três
noites.
V
Não te chamarei
Como Éluard,
liberdade.
Embora estejas
na mesma Cidade.
És conhecida e
desconhecida
dos que me viram no
sítio
de haver nascido,
poesia,
dos que me
acompanharam
sem remorsos,
dos que amei e
desamei no encontro.
Eras subterrânea
como o peixe nas
catacumbas
e te portava,
unânime,
entre vozes
confusas.
Bandeira de
muralha,
guerra de sons,
conflito,
cavo teu grito
na garganta dos
vivos.
VI
Fui Absalão e Davi.
Absalão no não.
Absalão no reino
que perdi.
E Davi levava-o
comigo
nos incestos,
na colina,
depois das
batalhas,
na harpa
em que moravas,
poesia,
sem mesadas.
Absalão fui
e sou no teu ritmo,
herdeiro
e do rei foragido.
Os oráculos preguei
no muro do espaço.
Eis o meu apanágio.
Absalão, contigo
nasci, fui teu
irmão.
Bateste, bateste,
bateste
na morte,
contenção, vibrátil
Absalão.
Pesava duzentos
siclos
teu cabelo.
VII
Cavo o poema
nos meus guardados,
carta de terras
que não reparto.
Cavo o poema,
longe do nojo,
perto do ontem,
onde repouso.
Habilitado
pelos contrastes
e pelos ares
de meu casaco,
cavo o poema
com zelo e arte.
E bebo o leite
que vem do tambo;
cavo o poema,
cavo até quando
surgir à cena,
Davi, o campo
e o mais que teima
no fundo espanto.
Cavo o poema,
com suas sardas
e seus fonemas.
Tardo, recluso,
eu mesmo uso
de suas penas,
urdindo as teias
desta vivenda,
na noite plena.
Absalão, cavo o
poema.
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"Quando se sonha só, é apenas um sonho, mas quando se sonha com muitos, já é realidade. A utopia partilhada é a mola da história."
DOM HÉLDER CÂMARA
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