terça-feira, 8 de maio de 2018

POÉTICA

Carlos Nejar
Abre a gaveta do tempo
sem etiquetas, poema.
Abre a gaveta e limpa
o esquecimento.

Tira de seu interior, os abstratos
temas, razões de antigo fervor,
cartas, dezenas de folhas:
e rolhas de ideias sem cor.

Tira os insetos da rima
ou se rima ficar; o conforto
é enterrar o já morto,
poema. Viver é depor.

Depois, cerrar a gaveta
como uma ata
e a sarça de sons, poesia,
nunca me farta.

II

O poema vem de onde venho,
de sua limalha.
Na sua torrente, ando.
Não me corrói, depositário
fiel de seus transportes.

Do poema
faço a mala de viagem,
a força de construir
o que não ganho,
a força de cavar
o que não tenho.

Do poema: “o visto”.
Para onde? Não disponho.

III

Cavo o poema
com meus valores;
cavo o poema,
com desespero,
como se cava um filho.

Em tudo o que crio
ou destruo;
na asa da gaivota,
na grota.

O poema como balança
entre a mesa e o pensamento.
Mais perto deste,
quando me alcança.

IV

Lutei, Jacó, três dias
e três noites
e o poema me venceu
com seu açoite.

Três dias e três noites,
lutei contra o vazio
das palavras
e a poesia
cuidou as feridas
e as lavas.

Jacó, não derrubavam
meu semblante,
na luta de antes.
Na luta de Deus
ou da morte,
o verso, o verso
repetido
como um mote.

Três dias e três noites.

V

Não te chamarei
Como Éluard, liberdade.
Embora estejas
na mesma Cidade.

És conhecida e desconhecida
dos que me viram no sítio
de haver nascido,
poesia,
dos que me acompanharam
sem remorsos,
dos que amei e desamei no encontro.

Eras subterrânea
como o peixe nas catacumbas
e te portava, unânime,
entre vozes confusas.

Bandeira de muralha,
guerra de sons, conflito,
cavo teu grito
na garganta dos vivos.

VI

Fui Absalão e Davi.
Absalão no não.
Absalão no reino
que perdi.

E Davi levava-o comigo
nos incestos,
na colina,
depois das batalhas,
na harpa
em que moravas,
poesia,
sem mesadas.

Absalão fui
e sou no teu ritmo,
herdeiro
e do rei foragido.
Os oráculos preguei
no muro do espaço.
Eis o meu apanágio.

Absalão, contigo
nasci, fui teu irmão.
Bateste, bateste, bateste
na morte,
contenção, vibrátil
Absalão.

Pesava duzentos siclos
teu cabelo.

VII

Cavo o poema
nos meus guardados,
carta de terras
que não reparto.

Cavo o poema,
longe do nojo,
perto do ontem,
onde repouso.

Habilitado
pelos contrastes
e pelos ares
de meu casaco,
cavo o poema
com zelo e arte.

E bebo o leite
que vem do tambo;
cavo o poema,
cavo até quando
surgir à cena,
Davi, o campo
e o mais que teima
no fundo espanto.

Cavo o poema,
com suas sardas
e seus fonemas.
Tardo, recluso,
eu mesmo uso
de suas penas,
urdindo as teias
desta vivenda,
na noite plena.

Absalão, cavo o poema.

NEJAR, Carlos. Poesia reunida I: Amizade do Mundo. Osasco: Novo Século Editora, 2009. p.108-112

Nenhum comentário:

Postar um comentário

"Quando se sonha só, é apenas um sonho, mas quando se sonha com muitos, já é realidade. A utopia partilhada é a mola da história."
DOM HÉLDER CÂMARA


Outros contatos poderão ser feitos por:
almaacreana@gmail.com