Chuva Branca, romance do amazonense Paulo
Jacob[1],
é tido como obra literária de destaque na Amazônia. Publicada em 1967, nos apresenta
um protagonista (Luiz Chato)
anunciado às avessas à tradição da ficção latino-americana (Amazônia) ao trazer
como tema a relação homem e natureza. No enredo, a trajetória de Luiz Chato insinua o desaparecimento da
dicotômica hierarquia de humanos e natureza na luta constante pelo domínio do
espaço de (com)vivência na floresta. Eliminada pela re-existência de seres em convívio comum. A abordagem que
se propõe neste artigo, é no sentido de entender, ao estudar o personagem, os
avanços apresentados no processo de desconstrução de imagens arquivos na literatura
que moldaram o imaginário mundial dos povos colonizados que estão potencializados
na contemporaneidade, sob ponto de vista dos estudos da Interculturalidade crítica
(Catherine Walsh), uma abordagem que se distancia da razão cartesiana em
relação corpo-objeto.
A obra está dividida
em duas partes pelas quais a narrativa é conduzida e vivida pelo protagonista. Na primeira, Luiz Chato, invocando sobre sensações e impressões
de um morador daquelas terras, caminha em um domingo santo na espera de caçar uma
anta, animal comum ao alimento na região, e acaba perdendo- se na mata durante
quarenta dias. Na segunda parte, o enredo foca no desempenho em encontrar a
estrada de volta para casa. A trama narrada em primeira pessoa, traçando
diálogo intradiegético, aposta na reconstituição vocabular do ser amazônico, um
resgate gracioso do falar regional. Lembranças e reflexões de Luiz Chato,
quando caminha exaustivamente em busca do retorno à
sua morada, irão amarrando e tecendo um rosário linguístico, mitológico,
medicinal, de costumes vastíssimos. O embate entre a cultura ocidentalizada e o
bem viver com a natureza travam conquistas no diálogo com as heranças culturais
advindas dos conhecimentos da mata e da cidade.
As imagens que o fazer literário constrói
em Chuva Branca revela que a experiência
com a visualidade intervém de forma direta na conceituação de lugares, credos e
simbologias humanas. São registros de
imagens em conflito que se mantem na contemporaneidade, o que torna por constituir
uma crítica da modernidade-colonialidade, reificada em relação ao sujeito e
natureza. Tais imagens reúnem padrões culturais e sociais que foram construindo
através de pré-conceitos com a hierarquização exercida quanto à racionalidade e
misticismo, visualidades que certamente tornam-se por ser mediadoras da
realidade. A constituição e naturalização dessas outras imagens implementadas
pelo eurocentrismo se encontram numa perspectiva que pensadores como Joaquin Barriendos denominará
de colonialidade do ver. O deslocamento
geográfico do fantástico medieval e do imaginário europeu uniram-se à formação
da história e da cultura na América Latina, e influenciaram decisivamente nas
construções escritas e formação de imagens referendadas pela ciência e
assumidas nas produções ficcionais de toda a América e, sobretudo, nos países
que foram tornados independentes das metrópoles europeias. Os pensadores
decoloniais assumem o papel de lutar para descontruir a versão instituída pelo
europeu, trazendo ressignificações que possam retomar, rever, negociar traços
intrínsecos ao ser dessas regiões.
Teóricos como Christian León[2],
que defende uma crítica decolonial para os estudos das visualidades, chama atenção para a importância de se considerar
o papel das imagens como uma forma de pensar caminhos para desconstrução de uma
hierarquia marcada entre o sistema visual ocidental e não ocidental implantados
a partir de uma série de mecanismo tecnológicos, iconográficos, psicológicos e
culturais integrados a sistemas coloniais de poder e conhecimento. Juntando-se
à linha da escrita euclidiana, a criação literária, no período entre o final do
século XIX e a metade do século XX, trouxera algumas produções que preconizaram
temáticas nesta perspectiva. São romances, contos que percebem o confronto da
natureza dos migrantes e imigrantes que se aventuravam na floresta e que gerariam
enredos que tendem impor a floresta como protagonista, ou antagonista, com
metas punitivas contra os que intentam adentrá-la ou dominá-la. Transparecendo,
nesse instante, na grande maioria dos romances, a preocupação de exaltação da cor local[3],
enlaçando uma inclinação para manutenção da hiperbólica Amazônia já imaginada e
divulgada em países europeus.
O escritor Uruguaio Angel Rama assinala em
sua obra ciudad letrada (1984) o
vasto império instituído na América Latina que serviu como um campo de inúmeras
experimentações da cultura colonizadora, ignorando a constituição do ser, do
espaço e da cultura locais. Construir uma cidade na América implicava a
construção de uma cultura colonial e canibal, no processo de modelamento de um
espaço para inclui-lo no Império. Essa é a imagem que existe da formação das
cidades no imaginário. Rama pode ser incluído dentre os intelectuais que discutem
esse processo de formação da colonialidade constitutiva da visualidade na América
Latina, pensado pontualmente a transculturação cultural.
Algumas produções literárias foram a base para as recriações
de narrativas audiovisuais, como o cinema, em um primeiro momento e, em
seguida, a televisão, e que ainda permeiam imagens expostas em redes virtuais
na primeira década do século XXI. A literatura que é produzida neste espaço ou
sobre estes lugares da Amazônia, tomando Peru, Bolívia e Brasil, Venezuela, etc.
tem se mantido ainda distante do que chamaríamos de uma virada decolonial. É na
arte a resistência maior ao enfrentamento de forma crítica das imagens e
imaginários estabelecidos.
No romance de Paulo Jacob, ainda que timidamente, é
possível deparar-se com a imbricação entre sujeito e natureza subsistindo aos
valores e as hierarquias eurocêntricas. Nele, imagens estabelecidas no
imaginário cultural dos povos amazônicas na colonialidade são postas à prova
através do enfrentamento do ser amazônico, pessoa e lugar, em confronto com as
adversidades de seu habitar. Há rastros
em Chuva Branca com certa audácia de
um embate com a instituição de verdade propagada e institucionalizada sobre a
mata, sobre a religião cristã, absorvidos no processo de colonização do
imaginário e da memória sociais.
Ao vivenciar dois mundos, o narrador
indicia a dificuldade em o protagonista lidar
com os referenciais ‘civilizados’ pelos quais fora educado, despindo-se
visceralmente e só assim sobreviver as intempéries da mata. A narrativa envereda naturalmente para o descritivo, o canto do lugar, em que o homem e a
natureza são colocados em situação de igualdade na luta pela sobrevivência. O
narrador de Paulo Jacob avança quando sustenta todo o enredo em intermitente
dialogar com a natureza, com o homem e os animais e a imprescindível imbricação
destes, com leveza e instigante construções metafórica.
A narrativa construída enlaça o leitor em
descrição minuciosa do lugar, a fala de Luiz
Chato
se caracteriza por mostrar um deslizar nostálgico
pelo falar, pelo sentir e pelo ouvido do cotidiano amazônico:
“Bicha
gelada, é água de chuva com igarapé. Suja barrenta, pausada. Pisar a jeito, o
pé arrastando no fundo, atenção com arraia. Tocando de leve na bicha, corre,
não ferra. Eita! – Puraqué filha da puta.” (Jacob, cap.22- p.103/104) ou
“O sol vai indo aqui. Quebrando o rumo mais à direita, sair no
varadouro de tocar direto na mãe-do-rio. Nove ou dez horas, caminhada batida,
dá pra chegar. Das oito, coizinha já passa. Tempão gasto mesmo foi na vinda,
andando devagar, volteando demais....” (Jacob, p.47- cap.11)
São conversas que soam, ruminam e rutilam
na resistência de um povo que, como Luiz Chato, conhece
as águas, os igarapés e o medo de arraias escondidas sob a lama e o perigo que
dela advém. Ou como prender-se sob a orientação do tempo e dos varadouros no
interior da mata, o sol baixando ou subindo, os rumos seguidos pela altura do
sol.
Ao enfatizar o falar nativo, resgatando um
vocabulário comum da oralidade pulsante, a obra permite resgate de uma herança
com sensibilidade e respeito pelo mover-se entre os espaços, visualizando uma
cosmovisão que subsiste de algum modo na contemporaneidade, mas que tende a ser
suprimida por não fazer parte do vocabulário, imaginário e, principalmente, das
visualidades globais. Há um olhar do tradicional, acoplado à modernidade, uma contemplação
poética que pode congelar uma memória e tornar-se fascinante. É poesia que Luiz Chato provoca
ao destrinchar esse vocabulário tão familiar e tão presente na memória do
amazônida.
“Lua crescente,
escorregando para mais de metade do céu. Rasto de luz entrando aqui, escondendo
acolá, vestígio mais largo ali bem. Tempão acordado, sem saber o que foi sono.
Bocado de vezes inambu-relógio marcando instantes na noite. A barriga ôca, em
jejum deu de perder sono, a cabeça enche de muitas coisas.” (Jacob, p.181)
Ou:
“Madrugada de
mata tem cheiro de lacre, breeiro, catleia, baunilha, raiz, outros de que mais....
Nasce dia naquela alegria, canto de pássaro, ar molhado de sereno, friozinho
gotejando. Até anima, esperança de alguma coisa boa.” (cap.4- pág.129)
Pensando a obra com traços de interculturalidade na visão
de Catherine Walsh[4]
A
construção vocabular elucubrando sobre saudade, solidão, angústia, alegria,
paixão utilizando os referenciais do lugar em constante embate com os
referenciais urbanos faz de Chuva
Branca uma promessa de ficção que
trilha para a construção de um diálogo numa perspectiva de interculturalidade.
Principalmente quando o protagonista, numa postura crítica, reavalia sua forma
de falar, de imaginar sobre o lugar em que vive.
Chuva Branca, nesse caso, pode ser uma obra
que aponta para uma leitura de interculturalidade crítica, por entender que
esta faz parte da necessidade do diálogo e da compreensão e da demanda dos
diferentes, assimila um tom diverso daquele que quer apenas marcar a sua
diferença: parte da necessidade de se ver no espelho do outro e o outro se ver
no meu espelho e, quem sabe, propor um mundo liberto das amarras de uma
sociedade hierárquica, cujas identidades não tenham pretensões hegemônicas
sobre as outras realidade culturais.
A obra também traz o contraste da sabedoria da mata e o poder presumível dos
conhecimentos adquiridos pelo homem ‘civilizado’. O poder da civilização e suas
leis especificas e incompreensíveis ao caboclo. Mitos de impedimentos da
felicidade relacionado à cosmologia.
Em chuva
branca é possível encontrar um espaço individual que se localiza entre o
mundo exterior e o mundo interior do personagem mostrando sentimentos e
temores. Pode ser pensado no enredar a importância da natureza na subjetividade
humana, essa natureza que na colonialidade-modernidade está sob o controle de
uma epistemologia outra.
A
interculturalidade em Chuva Branca não acontece no confronto com o diferente, mas no
confronto do sujeito com sua subjetividade diante de toda uma formação de
absorção, imposições de ações da realidade em sua formação como indivíduo da
floresta que insurge para negar as construções simbólicas da mata, ou seja, de
seu lugar de origem. Na luta do homem buscando resistir às intempéries do
tempo, a narrativa é enriquecida pelo rosário mostrado sobre a medicina natural
da Amazônia. A linguagem é uma recuperação das imagens, da memória, do
vocabulário bem do ser que nasce e vive na Amazônia. A interculturalidade é
concebido a partir do relacional. Luiz Chato resiste retomar os
referenciais de sua infância, mas ao mesmo tempo percebe a necessidade de assumi-los,
pois intuitivamente esses referenciais é que possibilitam o seu retorno para
casa. Com isso, o conflito interior é intenso diante das duas culturas que se
manifestam dentro de si. Ele torna por negociá-los por necessidade de
sobreviver diante da encruzilhada do viver ou do morrer.
A
interculturalidade tem uma significação na América Latina ligada às formações geopolíticas
do espaço, das lutas históricas e sociais. Mais que um conceito e inter-relação,
ela proporciona e assinala o processo de construção de conhecimento do outro
que se instalou nos diversos lugares desta América. Chuva Branca intrinsecamente se constrói a partir do entrelaçamento
e do embate de culturas outras, dos choques, da aceitação, da recusa do outro
em sua forma distinta de pensar. O enredo passa necessariamente
pelo reconhecimento identitário da formação do ser e o ver, o ver-se (a minha
imagem) diante do lugar que é seu, o narrar compõe as imagens.
Um dos pontos que se questiona, quando da vulgarização do
conceito de Interculturalidade, segundo Catherine Walsh, é a proposta da hegemonia geopolítica do
conhecimento, que não busque simplesmente a associação da cultura com políticas
identitárias, mas promova configurações conceituais que denotem outras formas
de pensar e posicionar-se a partir das diferenças geradas pelo processo
colonial, como formas necessárias para a construção de um mundo de
re-existência humana (WALSH, 2006, p. 23). Em Chuva Branca, as trocas culturais acontecem subjetivamente. Um monólogo, ou diálogo introspectivo de Luiz
Chato “civilizado” e o Luiz Chato “primitivo”, e isto certamente é uma situação
conflitiva no percurso de elaboração do personagem pelo autor da obra. O
enfoque e a prática de interculturalidade defendida na ficção são construídos
numa angustiosa mutilação de verdades, de referentes, de aprendizados, de
nulidade e adversidades que se consome, estão presentes atualmente nas relações
culturais na América latina.
O protagonista é conduzido pelo lugar e ao
mesmo tempo domina o espaço em que se encontra. Luiz Chato vai adentrando, vai
assimilando a floresta, vai se afastando do que se denomina civilização, até
parecer que não mais existe enquanto ser cultural, está integrado, é natureza,
é tudo natureza, é pachamama, é um ser buen vivir. Não toca nas causas das
assimetrias ou constrói uma narrativa que induz, mas propõe, de forma reflexiva,
a necessidade de negociação e de respeito pela tradição, que a todo tempo está
referendado em suas reflexões ou monológica, tanto faz. Portanto, Chuva Branca, através de um diálogo de
interculturalidade, aponta nuances críticas sobre o contexto, sobre o ser
possibilitando apontar a obra como uma possibilidade na busca de criações com
viés que desbanquem a visualidade estabelecida como homogênea e, com isso, a
literatura produzida sobre e na Amazônia contribua mais ainda em discutir a
nação latino-americana em sua geopolítica e geo-cultura e o ser como definidor
e imbricado com sua existência na natureza, Não apavorado com a floresta
misteriosa, mas encontrando-se e
dominando-a e sendo dominado por ela. O fluxo natural da relação entre
vidas.
Maria de Nazaré Cavalcante de Sousa é doutora em Teoria Literária pela Universidade Federal de Santa Catarina. Professora (aposentada) da Universidade Federal do Acre, atuando, ainda, no Mestrado em Linguagem e Identidade. Seu foco de pesquisa está voltado para a questão da Interculturalidade e Decolonialidade – priorizando a pesquisa no estudo ficcional com temática amazônica.
[1]
Jacob,
Paulo Herban Maciel. Chuva Branca. Rio de Janeiro: Gráfica Record Editora,1968.
[2]
Desenganche - visualidades y sonoridades outras - La Tronkal, Quito, Equador, 2010
[3]
Machado de Assis, acenando com sua veia de crítico de literatura, analisa a
postura literária dos escritores árcades. Para justificar uma postura mais
literária de autores como Basílio da Gama e Santa Rita Durão: “As obras de
Basílio da Gama e Durão quiseram antes sustentar uma certa cor local do que
tornar independente a literatura brasileira, literatura que não existe ainda,
que mal poderá ir alvoroçando agora" (ASSIS, 2012, p. 03) (Disponível em: .
Acesso em: 06 dez. 2016.).
[4]
WALSH,
Catherine. Interculturalidad, descolonización del estado y
del conocimento. Buenos Aires: Del Signo, 2006.
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DOM HÉLDER CÂMARA
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