(Trecho
do livro: Capoeira das Éguas – Capítulo II)
“ ...
Em 1953, a seca foi
terrível e, em consequência, os governantes implantaram, mais uma vez,
programas para acudir os flagelados. Na execução desse socorro às vítimas do
flagelo das secas, conhecido popularmente como “emergência”, inexistia qualquer
controle efetivo que os revestisse de algum princípio de moralidade. Isso
propiciava toda espécie de desmandos. Os chamados “fantasmas” fervilhavam em
meio à relação de nomes dos trabalhadores. Até animais de estimação faziam
parte dos que recebiam aquele socorro.
Dentre tantos desmandos, citam-se exemplos deveras curiosos, e até engraçados.
Naquele ano, foram inscritos, nas frentes de trabalho, dois flagelados com os nomes de José Aurora da Silva e de José Virgulino Caetano. Como nunca se ouvira falar da existência dessas criaturas ali em Capoeira das Éguas, os mais curiosos deram um jeito de saber o destino dos envelopes com o dinheiro. Um, era entregue na Pensão Aurora e o outro, no açougue do Zé Caetano. Como todos os parentes deles já estavam abrangidos pelo programa, deduziu-se que um dos “Josés” era o pornográfico papagaio “Cu Pelado”, da proprietária da pensão Aurora, e o outro “José” se tratava do vira-lata “Lampião”, do debochado Zé Caetano, um açougueiro vendedor de carne de bode. Para completar o absurdo, os “Josés” ganhavam como fiscais de tarefas, pois a remuneração era um pouco maior. Claro que os donos dos bichinhos dividiam com alguém o “suado” pagamento.
Descoberta a trampolinagem, tudo ficou por isso mesmo, e os envolvidos, ao serem perguntados sobre o assunto, ainda tinham o descaramento de se justificarem:
– Esse dinheiro não é de ninguém mesmo! Se a gente não faz, outro faz!
E era desse jeito que os programas de socorro aos flagelados aconteciam.
Aqui, um parêntesis para um destaque ao famoso “Cu Pelado”.
Tratava-se de um papagaio da raça “Estrela”, proveniente das bandas do Pará, cuja “erudição e eloquência” o fizeram famoso. Era versado em xingamentos e saudações pornográficas a quem transitasse por perto dele. Além de saber gritar: “café-vovó!”, “Dá-pé-meu-lô-ro!”, “au-ro-ra-vem-cá!”, ele passava o tempo todo numa gritaria só: “Pi-ri-qui-tô!... Pi-ri-qui-tô!”... “Seu-bos-ta!”... “Seu-bos-ta!”.
Aprendia facilmente tudo o que lhe ensinavam, principalmente quando se tratava de sacanagem. Mas, quem fazia isso, às vezes, se tornava vítima das próprias aulas ministradas ao safado. Dona Aurora bem que tentou, muitas vezes, ensinar-lhe um hino da igreja, mas nunca teve sucesso.
Todos os dias, bastava ouvir a voz do João Mendes e lá se iam os repetidos conselhos do louro: “tomá no cu!”, “tomá no cu!”, “tomá no cu!”.
O Tonheiro, todo santo dia, passava por perto da pensão só para ouvir o louro fazer a festa: “fi-da-pu-ta!”... “fi-da-pu-ta!”... “fi-da-pu-ta!”. E os dois ficavam se insultando com o mesmo xingamento.
O Sebinha teve de suportar a vida inteira: “viado-véi!”, “viado-véi!”, “viado-véi!”.
Cu Pelado aliava a pessoa aos ensinamentos dela recebidos. Era realmente uma graça.
Na esculhambação da “emergência”, pelo menos o louro era responsável por alegrar a “Pensão da Aurora”. A velha tinha de ser bastante agradecida ao papagaio, pois fazia a propaganda de seu estabelecimento. Significava uma atração à parte, animando os clientes da casa.
O papagaio nunca estava de lundu, mas só aceitava “dar o pé” para pessoas de seu convívio mais aproximado. Só nunca se soube o porquê de sua inscrição como trabalhador da “emergença”, como alguns chamavam. Acredita-se que se tratava de um cachê artístico. E assim, “Cu Pelado” cumpriu o importante e histórico papel como personagem daquele tempo. Enfim, o safado do papagaio morreu de velho, mas sua fama vem sendo repassada de geração a geração.
Quanto ao outro flagelado, o “Lampião” do Zé Caetano, só servia para dormir, ficar tentando morder o próprio rabo, ou latindo para o João Mendes, que adorava bater o pé em sua direção.
Tudo isso faz parte das histórias daquele fim de mundo, em que o pranto e o sorriso, a tragédia e a comédia, o inferno e o paraíso, aconteciam no mesmo ambiente, quase sem um muro que os separasse.
...”
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DOM HÉLDER CÂMARA
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