terça-feira, 8 de janeiro de 2019

TARAUACÁ: O CASO “JOÃO GRETINHA”

Isaac Melo

A história dos seringais, longe de ser idílica e romântica, é uma história, antes de tudo, marcada pela violência, que ocorre sob múltiplas formas.

Em 1943, aos 34 anos, José Potyguara publicava “Sapupema: contos amazônicos”, seu primeiro livro e a primeira obra com temática exclusivamente acreana. Dentre os treze contos, um intitula-se “Flor no charco”, onde Potyguara narra um trágico episódio ocorrido treze anos antes, quando ainda era promotor público de Feijó, então 2º. Termo da Comarca de Tarauacá.
Seabra não tinha mais que dois mil habitantes, quando em 7 de abril de 1930, um crime retirou do marasmo a pacata cidade. A notícia correu célere de boca em boca, de seringal a seringal, de colocação a colocação. E por muito tempo, não se falou em outra coisa, a não ser no “crime do kilômetro 14”.
O personagem principal dessa história chamava-se João Pereira Lima, vulgo “João Gretinha”, cujos feitos, mereceu de seus contemporâneos a comparação com os de Lampião, o Rei do Cangaço. E foi, por alguns anos, o homem, senão o mais temido, certamente o mais procurado da região, a levar, inclusive, o Interventor do Acre a instituir um conto de réis por quem o capturasse.
João Gretinha era um ex-praça (soldado). No quilômetro 14 da estrada, então chamada “Agnello de Souza”, que à época não era mais que um ramal, que liga Tarauacá a Feijó, hoje BR 364, vivia, às margens do igarapé Esperança, um casal de agricultores com seus três filhos, a saber: João Alves Corrêa, o pai; Izabel, a mãe; Nenen, a filha mais velha; Maria; e João, o caçula.
Gretinha um dia enamorou-se de Maria, a mais nova. E, pelas notícias e narrativas que nos chegaram, tudo indica que o interesse, ainda que íntimo e não manifestado, fora correspondido, embora a mãe não aceitasse de modo algum a possibilidade de tal união. Um dia, a aproveitar a ausência de João Alves, Gretinha, diante da decidida negativa de dona Izabel, a assassina a sangue frio, diante dos filhos, e leva a sua amada Maria com ele, mata adentro.
Quando João Gretinha fora preso, pela primeira vez, provavelmente em 1931, Maria já estava grávida, mas não chegou a ter a criança. Ela vivia entregue a uma família, até que, pouco tempo depois, em 3 de março de 1931, ela faleceu. O jornalista que noticiou seu falecimento a tratou como “cúmplice” de Gretinha.
Gretinha ficou preso até 25 de fevereiro de 1932, quando, cerrando as grades de sua cela, fugiu da cadeia. Daí pra frente, inicia-se as peripécias “lampeônicas” de Gretinha. Os jornais cunharam os mais diversos adjetivos ao “alampeonado bandido”, que passou a ser causa de terror por onde passava. Claro, muito não passa de exageros e fantasias do imaginário da época.
Quando foi recapturado, em agosto de 1932, por meio de uma artimanha, conseguiu matar um dos soldados que o conduzia, e novamente fugiu. A última referência a João Pereira Lima nos jornais de Tarauacá é um texto de João Conrado no jornal A Reforma, datado de 23 de abril de 1933, onde o autor traça um perfil de Gretinha, exaltando as suas artimanhas e criticando a ineficiência das autoridades em sua captura.
A seguir, transcrevemos, ipsis litteris, as notícias dos dois principais jornais da cidade, à época, a saber, A Reforma, de José Florêncio da Cunha, e O Município, de Pedro Leite, sobre o caso “João Gretinha” e o “crime do kilômetro 14”. Também republicamos o conto “Flor no charco”, do livro “Sapupema: contos amazônicos”, onde José Potyguara, com apenas algumas alterações, imortalizou o fato.



BÁRBARO CRIME NO KILÔMETRO 14
O criminoso evadiu-se levando uma infeliz moça. – Energicas providências da polícia
João Gretinha, o perverso assassino

Echoou dolorosamente nesta cidade a noticia da sanguinolenta tragédia que foi theatro, 7 do corrente, o kilômentro 14 da estrada de Feijó.
Conforme é do conhecimento público, residia ali, há annos, em companhia de sua esposa, dona Izabel, e de 3 filhinhos, Maria, de 14 anos, Nenen e Antonio, menores, o bom velho João Alves Corrêa, muito conhecido e relacionado no nosso meio.
Trabalhador e honesto, alma simples e inoffensiva, vivia o pacato agricultor do producto de sua lavoura com que custeava a manutenção da família. Esposa e filhinhos constituíam todo o orgulho, toda a riqueza de sua velhice.
O destino inexorável, porém, não consentiu perdurasse por mais tempo a paz e a felicidade daquele lar.
Caçando nas imediações da estrada de Feijó, vivia há mezes, o individuo João Pereira Lima, vulgo “Gretinha”, typo desordeiro e perverso cujos precedentes são por demais conhecidos aqui, desde o tempo em que era elle praça do destacamento local.
Alma de hyena, espirito propenso à concepção dos mais horríveis crimes, chegou a sua audácia ao ponto de se apaixonar por Maria que, na sua ingenuidade de simples roceira, não podia ainda comprehender a grandeza da maldade humana. Instigado pela torpeza dos seus baixos instinctos, o miserável jurou possuir a belleza virgem daquella que, sem saber, teve a infelicidade de lhe inspirar paixão, e, astuciosamente, illudindo a boa fé da família, conseguiu ter entrada na casa de João Alves onde ia, vez por outra, de passagem nas suas caçadas, a qualquer pretexto, espreitando o momento opportuno de pôr em prática o hediondo crime que friamente planejara para se apoderar de sua infeliz víctima.
Na manhã de segunda-feira passada, aproveitando a ausência de João Alves, que se achava no kilometro 25, distante 4 horas, occupado com uma empreitada de limpeza de estrada, João Gretinha, surprehendendo dona Izabel no roçado, com 3 filhos, desfechou-lhe friamente 4 tiros de rifle certeiros que a prostraram sem vida. Em seguida, ameaçando matar também Maria si não o quizesse acompanhar, carregou a infeliz jovem, pela floresta a dentro, para logar ignorado.
Nenen refugiou-se na matta onde passou a noite daquelle lúgubre dia, guardada por uma enorme anta, que ali aparecera, sahindo no dia seguinte na casa do sr. Eufrosino Silva, immediações do kilometro 9.
Toda esta horrível scena durou poucos minutos e foi testemunhada pelo irmãozinho de Maria, Antonio, de 8 annos de idade, que, fugindo, apavorado, à sanha do raptor de sua irmã, refugiou-se na matta, donde presenciou tudo. Passado os primeiros instantes de terror, voltou sozinho para casa onde foi encontrar a pessoa que veio communicar o facto à policia no outro dia.
Causou geral admiração a coragem desse pequeno que, como um verdadeiro heróe, não se afastou do local do crime, permanecendo trez dias e duas noites naquella solidão, impressionado com a desgraça dos entes queridos, e vagando, – coitadinho!... – entre a sua barraquinha, agora triste e abandonado, e o cadáver de sua infeliz mãe que elle vira cahir crivado de balas...
Logo que a triste notícia chegou a esta cidade, todas as autoridades, policiaes e judiciarias, em acção conjuntas, tomaram immediatas providencias, seguindo na mesma noite uma diligencia em busca do criminoso. No dia seguinte, pela manhã, seguiram também para o local do crime o sr. Antonio Theophilo Lessa, delegado de Policia, e o sr. dr. Leoncio José Rodrigues, médico legista e Delegado de Hygiene, que, acompanhado do sr. Irineu Catão, fez o corpo de delicto, dando-lhe em seguida, sepultura ao cadáver da desditosa senhora.
Infelizmente, até agora, não se sabe, com certeza, o paradeiro do criminoso e da infeliz menina por elle raptada.
Ante-hontem seguio uma segunda diligencia para auxiliar a primeira nas pesquisas, e diante das enérgicas e acertadas medidas tomadas pelas autoridades, empenhadas na captura dessa fera humana, confiamos em que os esforços da polícia serão coroados de prompto êxito.
A família de Seabra e a população em geral, justamente revoltada com a selvageria desse horrível crime, aguardam anciosas o regresso das duas diligencias, trazendo o miserável raptor e homicida para receber o severo castigo que bem merece.

A Reforma, Tarauacá-AC, 13 de abril de 1930, Ano XIII, N. 597, p.1


NOS VÓRTICES DO CRIME

João Pereira Lima, alcunha “Gretinha”, é um criminoso nato, na extensão do vocábulo!
Desde a sua meninice denunciou-se nas menores acções e, na adolescência, empunhou armas “lampionicas”, pronunciando-se um Ferrabraz de nova espécie.
Se o grande Lombroso o visse, diria: – “Eis aqui o typo que eu preciso para retratar nas minhas obras criminalistas.”
Enamorou-se da jovem Maria Alves Corrêa, moradora em casa de seus progenitores, João Alves Corrêa e Maria Alves Corrêa, no kilometro 14 da “Estrada Dr. Agnello de Souza”.
Em a noite de 6 deste mez, pernoitou em casa de seu pae no subúrbio da cidade e, pela manhã, tendo concebido e planejado o crime, dirigiu-se ao local. Chegou à casa da predilecta, encontrou sem gente; dirigiu-se ao roçado, onde trabalhava a mãe da moça com outros filhos.
– Venho pedir Maria em casamento.
– Não dou; é muito creança ainda para casar-se.
Recebida a negativa o monstro respondeu com 4 tiros de rifle empregados na pobre senhora por defender a innocência da filha.
Os dois irmãos João e Nenen, evadiram-se amedrontados, ficando aquelle escondido, donde presenciou o cannibalismo. Acto contínuo, “Gretinha” seguiu com Maria, matta a dentro.
João passou dois dias e duas noites velando o cadáver de sua mãe para não o devorarem os corvos, emquanto chegavam providencias.
Alli compareceu o médico legista, dr. Leoncio Rodrigues que fez o levantamento do cadáver e identificação pelo delegado Auxiliar, Antonio Lessa.
Diversas diligencias andam no encalço dos fugitivos, mas até hoje tudo tem sido infructifero.
“Gretinha” é emérito caçadpr, verdadeiro fura-matto. Quantas vezes não terão passado perto dele, occulto nalguma sapupema, de index no gatilho do 44, as diligencias?!

O MUNICÍPIO, Tarauacá-AC, 20 de abril de 1930, Ano XXI, N.777, p.3


O crime do kilometro 14
Regressaram a esta cidade, as diligencias que foram ao encalço do covarde e perverso assassino João Pereira Lima (vulgo João Gretinha), internado pelas nossas florestas, sem que tenham encontrado noticias do seu paradeiro, ou ao menos vestígios daquelle criminoso.
As autoridades continuam agindo perante as dos nossos visinhos municípios, no sentido de ver se conseguem capturar o terrível facínora.

A Reforma, Tarauacá-AC, 4 de maio de 1930, Ano XIII, N. 600, p.4


Falleceu nesta cidade, no dia 3, na casa de residência do sr. dr. Joaquim Copke, a mulher de nome Maria Alves Corrêa, cumplice de João Pereira Lima, “Gretinha”, no assassinato de sua mãe, no kilometro 14 da estrada de Villa Feijó. Esse óbito verificou-se depois de haver ella tido um móvito no dia anterior.

O MUNICÍPIO, Tarauacá-AC, 8 de março de 1931, Ano XXII, N.822, p.3


EVADIU-SE DA PRISÃO

Da Cadeia Publica desta cidade evadiu-se, das duas às três da madrugada do dia 25 do mez próximo findo, o criminoso João Pereira Lima, vulgarmente conhecido por “Gretinha”, autor do bárbaro crime de que foi theatro a collocação “Kilômetro 18” da “Estrada Dr. Agnello de Souza”.
Conseguiu fugir serrando as grades do cárcere, aproveitando-se dessa noite chuvosa.
Não poudemos colher mais dados a respeito desse facto, sabendo, apenas, que está sendo aberto inquérito na Delegacia Auxiliar de Policia.

O MUNICÍPIO, Tarauacá-AC, 13 de março de 1932, Ano XXIII, N.865, p.3


Continua a circular a noticia de que se acha homisiado no seringal Consulta o celebre bandido João Gretinha. Tem sido visto por diversas pessoas! Consta que o acompanham mais quatro criminosos, sendo dois foragidos da Cadeia de Seabra e dois do Purús. Existe como morador daquelle seringal, um indivíduo de nome Xenofontes, que teve em sua casa, hospedado occultamente, o referido criminoso; e, como tivesse serias desavenças com sua esposa, expulsara-a de casa (dizem que sem motivos), razão por que o pae della a recebeu em sua residência, constando que, por isto, o referido Xenofontes se unira agora ao bando sinistro com o intuito de assassinar seu sogro! Dizem que há dias esse indivíduo foi a Novo Porto com o fim de comprar cem balas ao sr. Raymundo Quirino, o qual, previdente como é, não lh’as vendeu por desconhecê-lo e presumir que se tratasse de algum criminoso foragido; porém conseguiu sempre comprar vinte e cinco, no seringal Nazareth. A Polícia deve agir com precaução, para a captura dos bandidos, o que não será diffícil se fôr possível lançar nas malhas o tal Xenofontes, que sabe bem onde está oculto o criminoso e seus comparsas e não anda prevenido para que não possa ser visto por quem o deseje prender. Aqui fica o aviso que poderá servir a quem tem o dever de zelar pela vida dos cidadãos e do socego das famílias.
Alves dos Santos

O MUNICÍPIO, Tarauacá-AC, 26 de junho de 1932, Ano XXIII, N.877, p.2


Como dissemos há dias, o celebre bandido João Gretinha permaneceu por algum tempo occulto no seringal Consulta, onde, apezar disso, era visto, diariamente, por várias pessoas. Ao ter conhecimento da approximação da força policial que ia no seu encalço, pôz-se ao fresco (que elle não é maluco!) Acompanhou-o na sinistra viagem o tal Xenefontes, a quem já nos referimos. Ao passarem no seringal Riachuelo deu Gretinha, ao que dizem, um tiro de rifle num pobre homem, que, descuidado, no terreiro de sua barraca, cortava lenha! Consta que o fim colimado pelo bandido era assassinar o referido cidadão, para conduzir, pela violência, a esposa do mesmo! Parece que o rifle não é novo, porque, ao conhecer que errara o alvo, deu às de Villa Diogo! Certamente, se o rifle podesse repetir o tiro, elle não pouparia aquelle pobre homem que cuidava de sua vida muito tranquilamente! E assim, vae elle, fazendo das suas! Joaquim de Oliveira, um preto que reside no seringal Consulta e é padrasto do tal Xenefontes, é muito cúmplice da fuga, desse seringal do bando sinistro, pois sabia bem onde elle pernoitava e com elle mantinha relações de amizade! Gretinha e Xenefontes subiram o Embira por terra e no seu encalço seguiu uma força policial commandada pelo cabo Bispo e é, até, possível que se aviste com os bandidos. Consta que o intuito destes é regressar pelas bandas do Jurupary, afim de se encontrarem, lá pelo baixo Tarauacá ou Juruá com o referido Joaquim de Oliveira que está se preparando para descer em canoa, de mudança para o baixo Amazonas! Não seria de bom resultado prender Oliveira, para descobrir o plano, caso Gretinha escape, mais esta vez, à acção policial?
É verdade que não existe, infelizmente, entre nós, a pena de morte. Mas, para um indivíduo como Gretinha e Lampeão, só mesmo umas bananas temperadas ou um café bem doce, poriam termo a tão grande calamidade, que, aliás, serviria para exemplo a quem tem propensões a bandido!
Alves dos Santos

O MUNICÍPIO, Tarauacá-AC, 17 de julho de 1932, Ano XXIII, N.879, p.1-2


O famigerado bandido, João Gretinha, fugido da cadeia publica desta cidade, anda assombrando as populações do Embira e do Murú, por saberem-no homisiado nas matas de um destes rios

Sabemos por notícia trazidas do Rio Embira que o famigerado bandido “João Gretinha” fugido da cadeia desta Cidade anda naquelas matas, causando terror aos moradores dali.
Torna-se necessário a sua pronta captura, para socego daquele povo ora ameaçado.
Sabemos que o Sr. Delegado Geral do Território, já transmitira ordem de prisão do celebre criminoso e que uma diligencia policial já seguiu à sua captura.

A Reforma, Tarauacá-AC, 31 de julho de 1932, Ano XV, N. 688, p.4


PRISÃO DE FUGITIVOS
Depois de haver-se evadido da cadeia desta cidade, na madrugada de 25 de fevereiro último, foi preso, já nas águas do rio Purús, João Pereira Lima, protagonista da tragédia do “Kilometro 18”, da “Estrada Dr. Agnello de Souza”, na qual tombou inerte uma pobre mãe!...
Conforme notícias publicadas nesta folha pelo nosso esforçado correspondente em Feijó, “Gretinha”, como é vulgarmente conhecido, esteve sempre nas cercanias daquella localidade, não indo além do seringal Consulta, de onde, afinal, sentindo-se perseguido por alguns soldados da Força Policial desta cidade, seguiu acompanhado de um tal Xenofontes, rumo ao Purús, sendo alcançados e presos entre a villa Castello e a cidade Senna Madureira.
***
Com a chegada desse criminoso, de hoje para amanhã, será aberto, na Delegacia Auxiliar de Policia, rigoroso inquérito para apurar o modo pelo qual e por quem foi introduzida, na prisão, uma serra com que o presidiário conseguiu serrar os varões da janella, conforme já noticiamos.

O MUNICÍPIO, Tarauacá-AC, 25 de agosto de 1932, Ano XXIII, N.882, p.3


PRÊMIO
O Exmo. Snr. Dr. Interventor do Território, instituiu o premio de um conto de reis para quem capturar o celebre bandido e assassino João Gretinha, como se infere do seguinte radio:
Prefeito Tarauacá – Rio Branco 12 – 1014 Acordo alvitrado vosso radio 236 autorizo-vos instituir premio um conto reis que será pago esta administração quem capturar criminoso Gretinha. Sauds ASSIS VASCONCELLOS – Interventor.

A Reforma, Tarauacá-AC, 27 de novembro de 1932, Ano XV, N. 700, p.4



Está “Gretinha” denunciado criminalmente

Pronunciado pelos crimes de morte e rapto nas pessoas, respectivamente, de Izabel Alves Correia e Maria Alves Correia, menor, filha da primeira, foi João Pereira Lima, por alcunha “Gretinha”, denunciado perante o exmo. sr. dr. Juiz de Direito da Comarca, pelo digníssimo Promotor Publico, exmo. sr. dr. Raphael Dornellas Camara, conforme copia da referida denuncia que abaixo transcrevemos para conhecimento dos nossos leitores:
“O Promotor Publico da Comarca, usando das atribuições de seu ministério, vem denunciar João Pereira Lima, conhecido pelo vulgo de Gretinha, brasileiro, maior, solteiro, actualmente sem occupação e sem domicilio certo, pelos factos criminosos que passa a expor:
O individuo João Pereira Lima, que está pronunciado por crime de morte e consequente rapto, conforme a certidão a esta junto, achava-se foragido, tendo sahido em seu encalço uma diligencia policial, da qual fazia parte o soldado Manoel Martins da Silva, por antonomásia Bôaagua, – diligencia que conseguiu capturar Gretinha, conduzindo-o até à collocação Jutahy, do seringal Boa-Vista, no 2.º Termo desta Comarca.
No dia 20 de agosto p.p., quando, pelas 6 horas, a diligencia se aprestava para continuar a viagem, o denunciado pediu para ir à “sentina”, à qual foi, acompanhado pelo soldado Manoel Martins. Achando-se na privada, João Pereira Lima pediu ao Boaagua que o deixasse arrancar umas raízes de sanango “para fazer um chá”; e, para tal fim, o soldado Martins gritou a José Xenofonte de Oliveira, pedindo-lhe uma faca. Como Xenofonte ignorasse aonde iria buscar a faca pedida, perguntou a Martins, respondendo, pressurosamente, Gretinha que a faca estava “dentro do forno”, a qual foi por Xenofonte entregue ao soldado Martins, e este, por sua vez, a entregou ao denunciado, dirigindo-se, em seguida, os três para o aceiro em que se encontravam, aonde Pereira Lima se acocorou, cavando no chão, e pediu a Xenofonte que fosse procurar a mesma planta junto a umas bananeiras, afastadas daquelle local. Tendo se retirado Xenofonte, foi logo depois chamado por Martins; e na occasião em que Xenofonte se dirigia ao encontro de Martins e do denunciado, viu este avançar de faca em punho para Martins, em quem desfechou três golpes com dita faca, o primeiro dos quaes, vibrado no ventre, expoz os intestinos da victima.
Manoel Martins falleceu no dia seguinte ao dos ferimentos e em consequência dos mesmos.
Praticado o homicídio para a premeditada fuga, Gretinha se evadiu acto continuo, internando-se na mata.
Do exposto, que se baseia no inquérito policial junto, vê-se que o único responsável pela fuga do denunciado foi o próprio soldado Manoel Martins da Silva, que o acompanhava, pagando com sua vida a inépcia de se ter afastado só, para o aceiro do roçado, à orla da mata – labirinto indistrinçavel –, com tão terrível quanto ardiloso homicida. E o que é mais: – armando-o com uma faca!
O desfecho de tão temerário procedimento, por parte do Boaagua, só podia ser mesmo o que se verificou.”

O MUNICÍPIO, Tarauacá-AC, 4 de dezembro de 1932, Ano XXIII, N.894, p.2


O bandido João Pereira Lima, vulgo Gretinha

Por noticia recente publicada por um jornal da terra, sabíamos estar perambulando pelo rio Gregorio, deste Municipio, com o pomposo nome de Antonio Albertino de Irineu Campos e dizendo-se tenente de nossa milícia territorial em comissão do governo, famanaz bandido autor de três mortes e de outras que não sabemos.
Agora por cartas vindas do Rio Acuraua, e remetidas pelo Dr. Manoel Tomé da Frota, para as autoridades locaes, sabemos haver se passado para esse rio, onde começa a atemorisar a população com a historia hedionda de seus hediondos crimes.
As autoridades sendo inteiradas do acontecido, e solicitas como são, trataram de dar providencias imediatas para a captura de tão célebre bandido, já tendo feito seguir diligencias ao seu encalço, e que esperam serem coroadas de êxito, dada a veracidade sua estada ali.

A Reforma, Tarauacá-AC, 5 de março de 1933, Ano XVI, N. 710, p.1


Gretinha
(Escripto para A REFORMA por J. CONRADO)

O João Gretinha não foi sem sobrados motivos que se fez senhor deste apellido sugestivo.
Os diccionários dão Gretinha como: abertura pequena; fenda estreita; que no fim de tudo vem a ser – uma brecha.
Ahi está o segredo e o “cabórge” da intangibilidade desse famoso e alampeonado bandido, que sem possuir as artimanhas de Antonio Silvino em occultar-se no canudo de um cachimbo ou entre a tampa de um corrimbóque, possue no entretanto, o grande privilegio de uma brecha diabolicamente providencial.
Gretinha encontrando uma fenda na ignorância e ingenuidade dos seringueiros do Gregório, e com a circunstância da actual ascendência do tenentismo, uma rachadela segura para por seu turno, exercer sua autoridade improvisada, bancou o Tenente e banqueteado e festejado pela inexperiência supersticiosa dos caboclos, dançou e até fallou em Getulio e acollegou-se com Juarez...
E o ardiloso scelerado encontrando dessas gretinhas vulneráveis no desavisado espírito de nossa gente, vae tirando partido e furando mattos enquanto a soldadesca vacilante, ante uma brechinha de receio, em que assoma o medo e a indecisão, encontra sempre uma aberturasinha para involuntariamente proporcionar a impunidade ao bandoleiro.
Preso, Gretinha não amofinou-se num desespero inútil à sua razzia e à sua tára.
Aguardando o momento preciso encontrou na perversidade anonyma de um seu par, a serra salvadora que cerceando as grades do cárcere, lhe offereceu uma brecha para a evasão.
Conduzido pelo policial que o capturara, ao perverso matador, ocorre num assomo de sua lombrosiana morbidezza, a gretinha inspiradora de sua traiçoeira perversidade e o soldado tomba inerte porque não olhou com a necessária precaução, pela brecha da desconfiança.
O Governo do Acre, atacando a gretinha mais vulnerável do povo, que é a do interessem offerece um conto ao portador do assassino.
Mas Gretinha continua a desafiar a argucia das milícias e os tremedaes das florestas na sua marcha volante.
As diligencias que os perseguem chegam perseguidas pelo fracasso.
E agora que o Gretinha muito mais caro que Jesus, está valendo um conto, no mínimo succederá que de futuro, os que lhe seguirem ao encalço, voltarão; não contado as pelegas do conto dos dinheiros, mas as costumadas historias de um conto de vigário...

A Reforma, Tarauacá-AC, 23 de abril de 1933, Ano XVI, N. 715, p.2

***

FLOR NO CHARCO
José Potyguara (1909-1991)

– Quilômetro 14!
Unindo o gesto às palavras, meu companheiro bateu com a coronha do rifle na velha placa carcomida e limosa. Com a pancada, a tábua quebrou-se. A banda inferior caiu, esfarelando-se, desfeita em paúl. Na outra, presa à ponta da estaca, ficaram os restos do 1 e do 4, numa tentativa de utilidade aos viajantes.
Saindo do embrenhado escuro da mata, a estrada ladeia, agora, grande roçado. Agrada à vista a simetria das pequenas moitas de roça nova, estendidas em fileiras paralelas que descambam na aba de lá da terra firme. Por cima daquele tapete de verdura, o milharal desfralda ao vento as farripas louras dos pendões.
– Todo esse roçadão que você está vendo, pertence ao velho João Alves – informa meu companheiro. – É velho danado de trabalhador. E as filhas?... Chi! Cada moça daquela é um homem, no cabo do machado!
Um cheiro forte de café torrado denuncia a proximidade da barraca onde pernoitaremos.
Com água pelos joelhos, atravessamos largo igarapé. É o Esperança. Na outra margem, retomamos a estrada, por entre um bananal sombrio, e saímos no terreiro.
Um cão amarelo, de olhos esgazeados, corre ao nosso encontro, ladrando fortemente. Logo, uma voz de mulher ralha, dentro da barraca:
– Cachooorro!... Passa p’ra dentro, Tubarão!
E aparece na porta a dona da casa, uma velha simpática e alegre, que nos recebe com demonstrações de mais franca hospitalidade:
– Façam favor de subir. A barraca é de pobre, mas’tá às ordens.
Perguntamos pelo marido, e ela:
– O João tá no roçado, com as meninas. Mas não tarda.
Entramos. A sala, larga e espaçosa, ocupa toda a frente da barraca. Não obstante a simplicidade rústica do ambiente, nota-se, logo, que ali mora mulher, e mulher nova. Pequenas latas, repletas de violetas, sobre o peitoril da janela, dois laçarotes de fita vermelha, arrepanhando a cortina de filó, um ramo de lindos cravos, junto ao nicho de São Francisco de Canindé, – pequenos detalhes, um nada que diz muito, denunciando a peculiar delicadeza, a inconfundível interferência de mão feminina.
Chama também a atenção a parede do fundo, completamente coberta de folhas de jornais e capas de revistas, ali coladas para tapar as frinchas da paxiúba.
Além dessa finalidade prática, nada mais recomenda tão original e caótica exposição. Com boa vontade, talvez fosse possível reconhecer uma dose ínfima de senso artístico, no colorido vistoso das gravuras.
Denunciando o grau de ignorância de quem fez aquele paciente trabalho, ali está, bem ao centro da parede, um grande reclame da Saúde da Mulher, ladeado por duas policromias: uma de Pasteur, outra de “Lampião”.
Só mesmo o ocaso, com sua acentuada ironia, poderia reunir, na ornamentação de uma sala de seringal, um filantropo e um bandido.
O grande sábio francês não deve sentir-se bem naquela promiscuidade com o famigerado rei do cangaço, nem em prestar seu testemunho à propalada eficácia do conhecido remédio das senhoras.
Enquanto esperamos o dono da casa, nos distraímos conversando com a velha,
D. Isabel é uma sertaneja ainda forte, muito expansiva e, ao contrário do comum das mulheres de pouca instrução, bastante expedita. Ataca os assuntos sem acanhamento. Parece dotada, também, de grande energia, revelada no olhar firme, no timbre de voz, na franqueza com que expende seus pontos de vista.
Mas, sobre todas essas qualidades, é extraordinariamente trabalhadora, e nessa escola soube criar as duas filhas.
Como o casal não tem filho homem, as três mulheres ajudam o velho nos mais árduos trabalhos: cortam seringa, defumam o leite, brocam roçado e capinam de enxada.
Ali, todos produzem, concorrendo para o mesmo fim. Vivem modestamente, porém felizes. No comércio de Seabra, o velho João Alves tem crédito ilimitado. Compra quanto quer e paga pontualmente, em borracha ou cereais. Todos o respeitam como cidadão honesto e trabalhador.
A velha e as duas filhas, quando vão à cidade, são bem acolhidas pelas principais famílias, em cujo seio desfrutam sincera estima.
Para puxar conversa, elogio a sólida construção da barraca, toda coberta de novo.
D. Isabel explica:
– O senhor sabe: a gente vem do Ceará, na intenção de voltar logo. Mas... isto aqui é uma ilusão. O tempo passa e não se ganha com que voltar. Depois, vêm os filhos. A gente vai se acostumando e querendo bem à terra. A barraca fica velha, é preciso levantar outra melhor, que dure mais.
Puxa uma cadeira, senta-se e continua:
– Hoje, já nem posso pensar em voltar ao meu sertão. Vontade, muita! Mas, as filhas estão moças. Daqui a pouco, casam. Não tenho coragem de me separar delas. O jeito é enterrar os ossos por aqui mesmo.
– Estão noivas as duas, não é assim? – Indaga meu companheiro.
D. Isabel não gostou da pergunta um tanto indiscreta. Visivelmente aborrecida, responde, franzindo o sobrolho:
– As duas?... Que eu saiba, está noiva a mais velha, a Chiquinha.
Antigo conhecido da família, meu companheiro bisbilhota:
– Pois, ouvi dizer que a Maria também está noiva do João Gretinha...
Foi o mesmo que tocar uma ferida com ferro em brasa. A velha remexe-se toda, o rosto transfigurado por súbita raiva, e explode:
– Que Gretinha!... Que nada! Então, eu vou criar uma filha, p’ra ela casar com um mequetrefe?... um reles soldado da polícia?... Prefiro ver o enterro dela!
Depois, mais calma:
– Esse sujeito andava aqui influído p’rô lado da Maria. Teve até o atrevimento de me falar sobre casamento. Mas, eu corri com ele de casa. Disse-lhe, na cara, que se enxergasse. Minha filha não é p’rô bico dele!
E arrematou, num muxoxo desdenhoso:
– Ahn!... Tá besta, cabra!
Vozes no terreiro.
Tubarão, que modorrava debaixo da cadeira da dona, levanta-se, rosnando, e vai espreitar à porta. Reconhecendo as pessoas que vêm chegando, abana alegremente a cauda e dispara em vertiginosa carreira.
À luz pardacenta do crepúsculo, vejo duas moças, de enxada ao ombro, e, mais atrás, um velho com enorme cacho de bananas.
As abas dos grandes chapéus de carnaúba me impedem de ver os rostos das moças. Percebendo gente de fora, elas contornam a barraca e vão entrar pela porta cozinha.
O velho João Alves vem direto à sala. Entra, dá um “boa tarde” cansado, arreia a um canto o cacho de bananas e vem nos cumprimentar, limpando a mão nas calças enodoadas.
Meia hora depois, d. Isabel chama para jantar.
A sala de refeições é também cozinha. Sobre alvíssima toalha de algodão, bem ao centro da mesa, uma travessa de galinha guisada e duas outras com arroz e farofa desafiam nosso apetite.
Delicado e hospitaleiro, o velho João Alves insiste por que eu me sente à cabeceira. Obedeço. Enquanto me serve, d. Isabel pede desculpas pela simplicidade do jantar, alegando que não esperava hóspedes.
Desfaço-me em elogios, aliás bem merecidos, ao tempero da deliciosa galinha. E ela responde:
– Bondades do senhor! Mas, se gostou mesmo, coma à vontade. Eu janto depois, com as meninas, que foram ao banho.
De fato, desde que me sentei à mesa, ouço as gargalhadas cristalinas das duas moças e o escachoar da água, no poço do igarapé que corre por trás da cozinha.
O velho João Alves come em silêncio. Em compensação, d. Isabel tagarela todo o tempo. Mesmo quando se afasta da mesa, para ir ao fogão ou lavar algum prato, alteia a voz, mas não interrompe o assunto.
Quase ao fim da refeição, as moças voltam do banho.
É a velha quem apresenta:
– Esta é a Chiquinha, a noiva. Esta é a Maria, a mais moça.
Chiquinha é o tipo comum de mulher que, sem ser bonita, não é propriamente feia. Tem o viço e a graça naturais da mocidade.
A outra, porém, é um impressionante padrão de beleza, em pleno desabrochar dos quinze anos. Esbelta, de regular estatura, ainda conserva um cunho de acentuada infantilidade na delicadeza dos traços, na inocente expressão do olhar, no indisfarçável acanhamento com que nos estende a mão pequenina e bem talhada.
O rosto oval, róseo-acetinado, é de uma formosa criança. Mas a florescência da puberdade já se manifesta no contorno dos seios modelares, dando ao seu busto o acabamento de mulher feita.
Os cabelos, castanhos e ondeados, soltos obre as espáduas, estão ainda salpicados de aljôfar do banho recente.
Mal nos cumprimentaram, as duas moças sentam-se para jantar, enquanto nós voltamos para a sala da frente.
Chiquinha, mais desenvolta, reapareceu, depois, na sala, onde palestramos com os velhos até alta noite. Maria, enleada com os “moços da cidade”, preferiu ficar dentro do quarto e satisfez sua curiosidade espiando pelas frinchas da parede.
Na manhã seguinte, levanto-me cedo, para prosseguir a viagem. Desço ao terreiro e encontro Maria acocorada junto a uma grande pedra de amolar, afiando o gume de um machado.
Ao ver-me, ruboriza-se e, num gracioso gesto de pudicícia, puxa a beira da saia e cobre os joelhos.

***

Correram meses.
Um dia, a cidade amanhece cheia de comentários sobre a grande tragédia: “João Gretinha matou a velha Isabel e raptou Maria”, – é a notícia que corre de boca e boca.
Segundo um portador vindo do quilômetro 14, o triste fato ocorrera na véspera, à tardinha, quando a velha voltava do roçado, em companhia das filhas.
Fazendo parte de uma diligência que conduzia um preso, o policial afastou-se da escolta, sob pretexto de beber água na barraca do João Alves. Aproximando-se cautelosamente, viu que não havia ninguém em casa. Mas, conhecia os hábitos da família. Sabia estarem todos no roçado. Dirigiu-se para lá. Por uma dessas coincidências que o diabo prepara, o velho João Alves estava ausente.
Encontrando apenas as mulheres, João Gretinha interpelou a velha sobre o motivo porque se opunha ao seu casamento com Maria.
Usando a franqueza e a energia que lhe eram habituais, d. Isabel respondeu:
– Seu João, já lhe disse que nem eu nem meu marido queremos tal casamento. Minha filha, além de muito nova, não é p’ra casar com soldado! Não insista! Se o senhor tivesse sentimentos, nem aparecia mais em nossa barraca!
Indignado com as palavras da velha, o perverso policial retrucou:
Pois eu vim, hoje, resolvido liquidar este assunto! A Maria há de ser minha, quer a senhora queira, quer não!
E, incontinenti, puxando a bala p’ra agulha, matou a infeliz senhora, com dois tiros de fuzil, e embrenhou-se na mata, levando a moça.
A dolorosa notícia corre célere, estarrecendo e penalizando. Todos invectivam a conduta do soldado, que não trepidara em causar o desmoronamento de um lar pobre, mas honrado e feliz.
As autoridades tomam imediatas providências. Sob o comando do próprio delegado, numerosa diligência segue para o local do crime, levando também um médico, a fim de proceder corpo de delito.
O cadáver é encontrado na mesma posição em que caíra a vítima, prostrada pelas balas. O exame pericial constata dois ferimentos, ambos mortais: um, sobre o peito esquerdo, ficando o projétil alojado no pulmão; outro, no pescoço, rasgando a carótida.
Durante vários dias, a escolta policial percorreu a mata dos seringais vizinhos, a procura do criminoso e de sua infeliz companheira.
Tudo debalde.
Encerrado o inquérito policial, coube-me, como promotor público, apresentar a denúncia, à revelia do réu.
A primeira testemunha arrolada foi o velho João Alves. Apesar de suspeito, pelo próximo parentesco com as duas vítimas, julguei indispensável ouvi-lo, como informante, sobre os antecedentes do crime e as relações do criminoso com sua família.
Depois daquela noite em que me hospedei em sua barraca, não mais o tinha visto.
Atendendo ao pregão do oficial de justiça, ele entra na sala de audiências. Quase não o reconheço. Escaveirado, a barba crescida, traz o estigma do sofrimento estampado na palidez do rosto, no sombreado das olheiras.
Feita a qualificação e lida a denúncia, o juiz começa a inquirição:
– Desde quando conhece João Gretinha?
Em voz sumida, quase inaudível, João Alves responde:
– Mais ou menos, há dois anos.
– É verdade que João Gretinha frequentava sua casa?
– Frequentou, até o dia em que minha mulher correu com ele de lá. Minha barraca fica na beira da estrada. Nunca neguei hospedagem a qualquer viajante. Ele também, quando passava por lá, descansava, às vezes dormia.
O juiz prossegue:
– É verdade que sua filha, Maria, amava João Gretinha?
A essa pergunta, o velho hesita. Baixa os olhos, emocionado. Afinal, diz:
– Seu doutor, p’ra falar verdade, nunca desconfiei nada, da parte dela. Nem eu julgava minha filha capaz de amar um monstro!
Respira com força e continua, em voz trêmula pela grande comoção:
– Mas, agora... depois do que aconteceu...
Não pode concluir. Os soluços trancam-lhe a garganta e as lágrimas rolam-lhe pela face abaixo. À sua consciência de homem de bem repugna negar uma convicção que, aos poucos, nele se firmara. Mas, ao seu coração de pai é por demais doloroso reconhecer a ingratidão que levara a filha a preferir, ao carinho da família, o funesto amor de um sicário.

***

Com o correr do tempo, começam a surgir vagos indícios do casal fugitivo. Ora, é um rifle desaparecido de uma barraca; ora, é um seringueiro que, voltando do trabalho, tem a decepção de não encontrar o jantar que guardara.
Ao lado da panela vazia, um pedaço de papel com um nome, garatujado em péssimo cursivo, – “João Gretinha”.
Esses boatos, enfeitados de pormenores que os comentários sempre acrescentam, vão tomando vulto e criando um ambiente de mistério em torno da vida errante do casal.
Todo roubo, qualquer objeto desaparecido das barracas, é logo atribuído a João Gretinha.
Muito tímido, a princípio, ele vai, aos poucos, se tornando mais ousado. A impunidade estimula-o. Já é visto, em pleno dia, pelas estradas, e chega à petulância de mandar recados desafiando a polícias e as autoridades.
Tal abuso não podia continuar. Além da impunidade, a afronta à Justiça e o desrespeito aos seus agentes.
Outra diligência, sob o comando de um cabo, é enviada ao encalço do réu. Após dias de cautelosas pesquisas pela mata, conseguem descobri-lo numa velha barraca abandonada. Ao contrário do que se esperava, ele não reage. Vendo-se cercado, entrega-se, com a mais vergonhosa pusilanimidade. Mas, está só. Não houve meio de confessar o esconderijo da moça.
Preso e algemado, é conduzido com máxima prudência. Durante os pernoites na mata, um soldado fica de sentinela, ao lado dele.
Na manhã do dia em que deveria chegar à cidade, Gretinha, mostrando ao sentinela os pulsos inchados pela pressão das algemas, pede-lhe, por caridade, que retire os ferros, alguns momentos, para aliviar um pouco.
Compadecido, o outro atende. Apenas se vê livre, Gretinha, de um pulo, arranca o sabre da cinta do próprio soldado, vibra-lhe tremendo golpe no ventre e desaparece na mata, em desabalada carreira.
Ouvindo gemidos, os outros soldados despertam e encontram o companheiro com forte hemorragia, já moribundo.
Essa façanha, misto de covardia, perversidade e ingratidão, propala-se de seringal em seringal, adulterada, sob um falso aspecto de coragem e audácia, emprestando à figura do reles policial uma triste celebridade de Lampião-mirim daquelas matas.
E dele não se teve notícia, durante alguns meses.
Um dia, o juiz de direito da Comarca recebe uma carta do Coronel Maia, proprietário do seringal Manixy, comunicando haver aparecido lá, pedindo trabalho, um homem acompanhado de uma jovem.
Suspeitando tratar-se de Gretinha – cuja triste fama chegara até àquele longínquo seringal, – o coronel Maia prendeu-o e conservou-o trancado, à disposição das autoridades.
Imediatamente, foi enviado um batelão com dez soldados, sob o comando de um sargento, para trazer o casal.
E quando, dias depois, volta a diligência, abala-se a pequena cidade. Várias pessoas acorrem ao porto, levadas pela curiosidade de ver o preso, e a curiosidade, talvez maior, de rever a infeliz mulher que desprezara a paz do lar paterno, o seio acolhedor daquela sociedade que tanto a estimava, sacrificara o futuro, a mocidade, a própria reputações, chafurdando sua pureza no charco de um desgraçado amor. E, para isso, suporta, durante meses, em plena floresta, uma vida de constantes perigos e sobressaltos.
Entre janelas repletas de famílias, o triste cortejo desfila pela principal rua da cidade.
Adiante, algemado, entre soldados embalados, João Gretinha encara a população, ostentando um sorriso cínico.
Mais atrás, apoiada ao braço de um oficial de justiça, a desventurada Maria, muito pálida, a cabeça baixa, o andar trôpego, ao peso do ventre avolumado pela adiantada gravidez. Além disso, terrível impaludismo vai, aos poucos, minando o seu organismo. Tem as pernas inchadas e os pés feridos pelos espinhos, nas longas caminhadas através da mata. É uma sombra da linda menina que eu conheci em casa dos pais.
Recolhida a uma casa de família, vive solitária, dentro de um quarto. Pouco fala. Limita-se a responder o que se lhe pergunta. Se alguém alude ao seu caso, ela chora e permanece muda. Não obstante os cuidados que lhe dispensam famílias caridosas, sua saúde se agrava celeremente. Tem vertigens e febre. Recusa os remédios, mal toca nos alimentos. A fraqueza se acentua, até que, certa madrugada, morre, sem pronunciar uma queixa.
Ao enterro compareceram várias famílias e pessoas amigas da infeliz Maria.
No cemitério, encontro o velho João Alves. Está pálido, barbado, a cabeça mais encanecida. Noto-o, porém, muito calmo. Assiste ao enterro com fria serenidade, um quase indiferentismo, como se aquilo fosse um ato banal, ou não fosse ele o pai da morta.
Aproximo-me para dar-lhe pêsames. E ele recebe meu abraço com a mesma calma, sem uma lágrima, e diz:
– Hoje, foi apenas o enterro. P’ra mim, ela morreu desde o dia em que fugiu de casa.
Depois, olhando a terra que os coveiros atiram sobre o caixão:
– Foi mesmo assim. P’ra que chorar? Estou satisfeito: ela morreu antes do filho nascer!
E diante da surpresa causada por suas palavras, o velho explica, cerrando os dentes, num timbre de voz que traduz todo o ódio concentrado:
– Sim. Porque, ao menos, não ficou raça daquele bandido na minha família!


POTYGUARA, José. Sapupema: contos amazônicos. Manaus: Imprensa Oficial do Estado do Amazonas, 1978.  p.73-82

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