“Há dois mil anos
vive a Humanidade inteira
a ouvir,
estupefata, invocações da Cúria
sobre a impura
Judeia, e, mesmo que não queira,
dá crédito a uma
história em tudo ingênua e espúria!”
Sobre o “poeta
acreano” COSTA VICTOR não foi possível apurar dados precisos acerca de sua
biografia. Em nossas pesquisas, apenas duas notas foram encontradas sobre ele,
uma, na revista Fon-Fon, escrita por um pseudônimo chamado Til; e outra, na
revista O Pirralho, de autoria do escritor Carlos de Vasconcelos, autor de Deserdados: romance da Amazônia (1921). Ambas
as notas tratam especificamente do livro A TRAGÉDIA DIVINA, as quais
reproduzimos a seguir:
“TRAGEDIA DIVINA
Em segunda edição
correcta e augmentada, com bellas iluminuras de Kalixto, acaba de vir à luz o
poema anti-religioso do Sr. Costa Victor, poeta acreano independente e
insubmisso. O volume traz um prefacio do brilhante homem de lettras Carlos
Vasconcellos que se limitou a falar no thema aproveitado pelo poeta, com um
certo enthusiasmo, talvez por elaborar nas mesmas opiniões religiosas. Christo,
Judas e Magdalena são os três personagens levados à scena pelo Sr. Costa
Victor, muita vez com alguma felicidade e colorido... É um livro esse digno da
maldicção do Papa e de um grande successo de livraria!
Til”
Revista Fon-Fon,
Rio de Janeiro-RJ, 27 de fevereiro de 1915, Ano IX, N.9
“Deveria dizer que,
estando sobremodo identificado com as idéas do poeta acreano Costa Victor, cujo
livro a “Tragédia Divina”, prefaciei, fiquei mais ou menos responsável pela
campanha proveitoza que semelhante bárbaro
dezabuzado encetou contra a ortodoxia religiosa, contra os gananciozos
industriais da igreja católico-romana...”
Carlos de
Vasconcellos
O Pirralho, São
Paulo-SP, 8 de maio de 1915, Ano IV, N.186
Provavelmente a
primeira edição de “A tragédia divina” saiu em 1914, haja vista que a segunda
edição “aumentada e com quadros novos” saiu em 1915. O livro é dedicado a um
dos grandes seringalistas da época, a saber: “A Childerico Fernandes, valeroso
acreano liberto de religiosidades, hospitaleiro compatriota cujo triunfo, na
vida, atesta o valor da perseverança e do trabalho”, e traz o “Yaco, 1914”, como
local e ano da conclusão do livro. Todos os poemas trazem uma ilustração do
grande caricaturista carioca Calixto Cordeiro ou K. Lixto (1877-1957).
O livro é composto
por trinta poemas, sob a forma de sonetos, todos precedidos por uma epígrafe, que
serve de mote ao poema. De caráter “antirreligioso”, os poemas-narrativas
contam a história de três personagens: Jesus, Judas e Madalena. A romper com a
narrativa canônica dos evangelhos, o poeta apresenta o Cristo humano dos
evangelhos apócrifos. Jesus é amado por Madalena, que é amada por Judas. Judas
é desprezado por Madalena que, por sua vez, é desprezada por Jesus. Para
afastar Madalena de Jesus, Judas, que havia ingressado no grupo só para estar
perto dela, denuncia-o como revolucionário. O Mestre, por sua vez, vê, em sua
condenação, uma maneira de escapar de Madalena, ao fingir a própria morte. Numa
tentativa de livrar Jesus, já crucificado, Madalena se deita com o centurião.
Por fim, os planos dos três fracassam. Judas se enforca, ao perceber que, ao
invés de afastar Jesus, acabou por condená-lo à morte. Madalena, todavia, foge
com o corpo de seu amado, e termina louca, abraçado ao cadáver em decomposição.
É essa a tragédia divina a que se refere o poeta.
Costa Victor fez
uma obra ímpar, digno dos melhores poetas malditos.
JESUS DE NAZARÉ
A tersa psiquiatria
moderna do dr. Binet Sanglé revelou, num exaustivo estudo, a descendência
alcoolista de Jesus. D’aí o seu enfraquecimento genésico, de fora consequência
psicológica o tornar-se místico. Alma esteta, diferençava-se todavia de Boileau,
porque, longe de satirizá-las, gostava de ver as mulheres, à distância, embora
lhes fugisse ao estontear sugestivo dos encantos...
Cresciam em Jesus
os clássicos sintomas
da minaz paranoia,
intensos, patológico;
sem embargo
escandia, em argumentos lógicos,
os abusos dos reis
e os vicíos das Sodomas.
Execrava o Pecado –
escampo às róseas pomas
de hetairas louçãs
– e encomiava ideológicos
fatos de Nazaré,
modos teratológicos
de coevas e
ancestrais metidas em redomas.
Era circuncidado e
opimo descendente
de alcóolatras
plebeus, catalogando estigmas
de uma tara
exequial, completa em paradigmas...
Buscava espairecer
de um desgosto latente:
o de à mulher
fugir, qual Boileau, por defeito,
arcando em
convulsões aos vórtices do peito. p.30
MARIA DE MAGDALA
Magdalena era o
feitiço dos cavalheiros da Judeia: formosa, soberba de linhas, lúbrica nos
gestos, lembrava as irrivaes esculturas do paganismo helênico! Tornou-se inda
mais cobiçada depois que, recolhida à coabitação monógama, se afigurara cercada
de um nimbo quase impenetrável...
Estátua senhoril,
helênica e sublime!
Jovem carne
insaciada, alma de espúmeas taças,
expande-se,
flexuosa, em cambiantes negaças,
quer sorrindo ao
Amor, quer a insinuar-se ao Crime!
Deusa altiva e
pagã, crebro donaire exprime
do talhe na doblez,
e, lesta, aturde as massas;
as núbeis seduções,
a louçania e as graças,
aprimoram-lhe o
corpo às torcias de vime...
Da nudez o
esplendor e do desejo os trenos
no peplum rubro
esconde e oprime na garganta:
sua ideal beleza é
irmã da extreme Vênus!
Quando induzida a
amar, cega, enlouquece: e, então,
emerge-lhe do colo,
e treme, e espasma, e encanta,
fruto de arminho e
rosa, inconho, inda em botão... p.42
ELEIÇÃO
Sabendo tratar-se
de um estranho, a concubina de Hannam alcançou, de pronto, a vantagem de ser
por ele satisfeita. Não possuindo Jesus conhecimentos presumíveis, em Jerusalém,
afastava a possibilidade de jactanciar-se a amigos indiscretos, e desfiar
gabolices àqueles que a conhecem, de modo a fazê-la perder... É notório, na
psicologia humana, que o macho trompeia, leviano e envaidecido, quaisquer
conquistas amorosas, e que, na hermenêutica estratégica das fêmeas, o
recém-chegado a certo meio social lhes merece muito mais ensanchas do que o seu
residente.
Em matéria de
eleição do amor, estranho ou estrangeiro, ainda mesmo inferior, sobreleva, pela
conveniência de não conhecer as gentes ou não falar o idioma, o domiciliário do
lugar. Assum ainda hoje acontece em todas as latitudes e o triunfo dos
estrangeiros nos festins diplomáticos dá a mais eloquente prova disso. A crença
de que, com o ente desconhecido, ela evita o vultuar da revelação do segredo,
tranquiliza-a e a atreve à empreitada de trair o senhor ou amante, sempre que o
prazer material seja o efeito buscado pela dirigente do pleito.
Ser belo, e forte,
e estranho – eis todo o seu problema:
o entre fraco e
senil, que lhe adormece ao lado,
trai o intuito
mendaz de um pobre emasculado
vaidoso de
ostentar-se em fortitude extrema.
Da serpe da luxúria
ela aos anéis se algema
e se contorce e
brame, assim cumprindo um fado;
e ardorosa procura,
e espera, de bom grado,
na trama
espasmodiar da Delícia Suprema!
O nômade Rabino
arvora em candidato:
ele a ninguém
conhece, impõe-se-lhe o recato;
é jovem, tem vigor,
não ama os artifícios...
E à vitória
integral do desejo tirano,
prefere-os aos
chichisbéus e aos cortesãos patrícios,
e à sua carne o
elege amante e soberano! p.48
JUDAS DE ISCARIOTE
Ninfófilo, Judas
consubstanciava a volubilidade. Mal apresava certa deidade por quem mostrava
esgorjar-se, para logo a esquecia, entre risos e galanteios. Fartava-se desse
amor mentido, sempre mascarado com perícia e habilidade... Assim passou através
da Judeia a prodigalizar, sob mesmerismos, o prazer, o ciúme e a tristeza, no
seio odorífero das judias insones...
Tipo másculo e
ousado! estampa varonil,
sedicioso no olhar,
amorável nas vozes,
engenha as seduções
das tredas psicoses
para esturdiar ao
gozo as victrices no ardil!
Arde ao praxial
queimor dos homens do Brasil!
E sempre a rir
ministra, em sorrateiras doses,
de ingênua rapariga
à insonte carne, atrozes
crispações de
Desejo omnimodo e febril...
E consegue
ensinar-lhe a volúpia felina!!
Traquinações
sexuais a seiva não consomem
deste ereo
precursor do ingente Super-Homem!
núbeis moças ao cio
além da Palestina
busca: e frui-lhes
e olvida o seio rosicler,
volúvel, sem
prender-se a lábias de mulher... p.54
SUBVERSÃO
... mas, a
princípio por vaidade de conquistador jamais contrariado em temeroso assalto;
depois, por que a dificuldade acendera em si veementes flamas de luxúria, Judas
teimou vencer a aversão da favorita. De fruto proibido Maria se mostrava, ao
tempo de amásia Hannam, à presente situação de platônica amant-de-coeur de Jesus, tornou-se-lhe ideal à pertinácia.
Subvertido à lei psicológica de que o máximo estímulo existe onde há
inacessibilidade, e atirado à pugna, sob ousio de invencido, ei-lo a urdir
endiabrados planos de triunfo...
Ao saber que Maria
abandonara o amante
miliardário e
cretino, a fim de a um forasteiro
demagogo
prender-se, o Iscariote inconstante,
fogoso e tavanez,
buscou-lhe o paradeiro.
Ouvira encarecer a
magia estonteante
de um celso
galileu, místico e sem dinheiro,
e, ralado de
inveja, entendeu, diletante,
partir a disputa-la
ao mago aventureiro.
Prosélito se faz.
Em breve lhe dessora
o peito, mal se vê
por ela repudiado...
E tanto mais a
quer, mais a bacante o odeia!
Vendo-a nua a
banhar-se e a descantar, à aurora,
corpo formoso assim
jamais tendo estreitado,
delira, subvertido
aos cantos da sereia... p.60
DRAMA AO LUAR
Apóstolo por
conveniência amorosa, anda o Iscariote, entre os discípulos do Messias, às
pegadas da mulher querida. Flirta-a,
hipnotiza-a e canta-a, aos surtos de flamívoma paixão. E apenas sente a
preferência dada ao Mestre que o desinteressa, assoma-se, tigrino no ciúme, a
traquinar meios de enlaçar...
Está o horto em
silêncio... Os sectários do Cristo,
deitados sobre
palha, em mísera alpendrada,
sorriem o fulgor da
promessa irisada
deum Éden de
ouropéis e encantos, entrevisto.
Benção, graça,
indulgência, excelso Deus benquisto
a todos
distribui... À noite enluarada
jesus anda ao
jardim pensando em sua amada –
– da carne o altar
e o filtro em luxuriante misto!
Levanta-se Maria e
sai, a alguém buscando.
Judas segue-a,
hesitante, e arrepia-se, quando
atenta na impostora
agora feita santa.
E ao vê-la
segredar, juntinha ao Bem-amado,
raiva e morde-se,
enquanto o Cristo, algo tentado,
sorvos lhe inflige
à boca... e a excita mais... e a espanta... p.66
ESCÂNDALO
Ferida no
amor-próprio e contristada ante o acanhamento inflito ao predileto, Maria
excede-se na represália e, para mais a fundo estigmatizar o inditoso
apaixonado, debuxa imensurável ardor pelo Rabi. Fora de si, Judas ascende ao
auge, exorta o rival à ação, e, em estupendo gesto de vaidade e impudor,
desnuda-se, deixando aperceberem-lhe da magna fortitude...
Do seio as hóstias
quer-lhe, em comunhão, no altar
do amor! Mas a
beldade insurge-se às insidias
e o declara capaz
de intérminas perfídias
nesse pronubo afã
de encantos seus gozar!
Acoima-o de
falsário, exproba a infâmia, a par
do achincalhe do
Mestre. Arrebata-se e agrige-as,
tão torpes
delações, e, estranha como Fídias,
seu infinito amor
começa a esculturar.
Audacioso e sem
freima, entregue a fero ciúme,
Judas fita Jesus,
apregoa-o inviril
e exorta a que o
desminta à lúbrica bacante;
enquanto, crendo
ser da perfeição o nume,
arranca,
envaidecido, o pallium cor de anil,
à plástica soberba,
à seiva exuberante!... p.78
SOLILOQUIO
Maldizendo a
obstinação de Madalena por segui-lo sempre, o nômade poeta sentia mais acerbo o
mal e mais se atormentava ante a consciência da incurabilidade. Se era o Filho
de Deus humano, porque lhe negava o Pai a mais honorífica faculdade do ser, a
mais altruística prerrogativa da carne?
E solitário, ao
cair nas sugestivas tardes da Palestina, em tristíssimos solilóquios através do
Horto, andava a devanear entre a criança, que diz a perpetuação da vida, pelo
amor, e a mulher, que é o seu altar divino, eternamente fascinante e lindo!...
“Entre criança e
mulher o amor distende a trama
que ao nobre homem
enleia e os louros lhe entretece:
a criança dá-lhe
orgulho e altruísmo lhe reclama,
a mulher ao prazer
lhe acena e o ajoelha em prece.
Criança esperanças
traz de ser Confúcio ou Brahma,
é flor que se abre
em fruto, e expande, viça e cresce;
há na mulher o
ardor do beijo que auriflama,
promessas divinais
de encantadora messe.
Da vida o almo
prazer de em filhos desdobrar-me
e da esposa ao
regaço ouvir um doce carme,
priva-me o Pai
severo, e isso me avessa e enfeza!
Há de saber-me
sempre o travo de amargura...
Se não lhe posso eu
dar o que de mim procura,
porque me atrai e
empolga a feminil beleza?” p.84
INVEJA
Passaram-lhe em
tropel, na mente incendida, os mais voluptuosos festins ao prazer, sob mirífica
orquestração de beijos... E ao verificar a capacidade de Judas para de todos
eles comparticipar, o Místico sentiu-se preso de uma inveja infinita...
A flâmea excitação
de Judas lança-o, presto,
ao mais fundo
pesar, ao golpe mais infausto;
melhor fora
render-se a bárbaro holocausto
à triste humilhação
de seu viver já mesto.
Sabe-lhe amarga a
inveja! Um impudente gesto
anima, instiga e o
deixa estertorante, exausto,
por atro epicurismo
em que, ardentes e em hausto,
espasmam os
sensuais ao mais espurco incesto!
Quer e almeja
abrasar-se à veemência dos beijos
de adúltera
insaciada ou fácil em desejos,
cavalheiro no
prélio, ovante na insistência...
Anseia por possuir
quaisquer criaturas belas,
sejam damas,
vestais, sultanas ou michelas...
Só não deseja
ater-se à mais torva Indigência!! p.90
MARTÍRIO
Maria não lograra
ulteriores carícias; os parcos beijos ao luar, no Horto, selaram-lhe o
equívico. E contristado por sentir-se tanto menos apto quanto mais irrefreável
ela se mostrava na paixão, o filho de José, tendo fugido da presença dos
discípulos, bradou misericórdia aos céus...
Cariciante e gazil
o amima a cortezã:
e o louco
visionário, o incurável Rabino,
percebe o
intumescer do seio alabastrino
quando se lhe
aconchega, ardorosa e louçã.
Mas, frio desde o
ocaso aos lumes da manhã,
começa a maldizer o
mísero destino:
a insânia da
lascívia e o corpo venusino,
nada ao orgasmo o
conduz, sequer em mostra vã...
Aos paramos do gozo
arrebata e acessa
prende-se-lhe inda
mais, través a noite escura,
a excitá-lo e a
sorvê-lo, em denuda beleza!
Morde-lhe a nuca e
a boca em trêfega diabrura...
E, ao ver-se
inútil, Cristo exclama, com tristeza:
“Pai! afasta de mim
tal cálice de amargura!” p.96
SUICÍDIO
Advertido do
desesperado plano do falso discípulo, Cristo tivera a heroicidade estoica dos
grandes abnegados. Viu-lhe na trama vingativa um alívio à desdita, honroso à
inviolabilidade de seu tristíssimo segredo... Seus derradeiros anhelos
prendiam-se àquela que não pôde satisfazer...
O pálido Jesus
buscara um lenitivo
ao mais cruel
sofrer na existência a mais pura:
tornou-se
indiferente ao rancor vingativo
de quem o empurrava
à paz da sepultura.
Imprestável se
vendo, esqueceu ser um divo,
no estoicismo estriando
um traço que perdura:
em vez de
revelar-se humano fugitivo
enveredou da Morte
à impávida procura.
Não quis fugir.
Deixou-se apanhar e prender
a ignominioso
poste, em meio a malfeitores,
escanifrado e nu,
inóxio em seu viver.
inda aspirou libar
da boca da Magdala
– chorosa ao pé da
cruz – o néctar e os olores:
quis hauri-los, mas
só lhe soube o fel de amá-la!... p.108
ESTRATAGEMAS
Os demais apóstolos
assentaram narcotizar a Cristo, depois de pregado à cruz, para que, sob aparência
mortal, fosse logo retirado. Então, dada a magreza irrival e peitados os
centuriões, segundo as conveniências de momento, seria o corpo do Mestre
conduzido a um recanto calmo aonde se operasse a eliminação do filtro. Isso
feito, Madalena, sublimada pelo amor, veio, em silêncio e a sós, roubá-lo, no
afã de vê-lo despertar estreitado à tepidez de seu colo arminhoso...
Do madeiro onde
esteve amarrado o précito
Desceu-lhe o corpo
inerme ao pulso da Centúria.
Fez-se-lhe em
derredor um coro de lamúria,
gritos e
imprecações ao mais audace fito.
Urgia converter-se
a vigília em incúria.
Quando a beber
Jesus pedisse, – estava dito –
ser-lhe-ia
propinado um calmante expedito
para à morte
enquadrar-se a orgânica penúria.
A Arimathéa a
astúcia estatuíra o dever.
E enquanto toda a
guarda, ébria, resfolegava,
Fazia ronda o Amor,
trazendo cheia a aljava...
Cumprido o plano e
posto ao sepulcro, a jazer,
Maria a Cristo
rouba antes que cante o galo,
para, ao torpor do
filtro, a beijos arrancá-lo! p.114
SONHO
Maria carregara o
amado para as margens do Tiberíades, onde o animou com flores e carícias.
Esperançosa de vê-lo em pouco ressuscitar do narcótico ministrado ao alto do
Calvário, exausta adormeceu a seu lado e, louca nos sonhares, sentiu-o para
logo a banqueteá-la num assoberbamento frenético de fauno!...
Exausta de suster o
corpo de Jesus
durante a travessia
em célere carreira
ofega Madalena,
heroica e aventureira,
os braços de marfim
mudados noutra cruz...
A esta lhe
aconchega os magros peitos nus,
quando, a oscular
seu rosto exangue, uma figueira
depara e nela um
vulto hediondo. A forasteira
a Judas reconhece e
alto o esconjura a flux.
Chicoteia o corcel
à rábida vertigem.
Do Tiberíades salta
à margem. Não lhe afligem
do corvo o
crocitar, do abutre os voos planados...
Agasalha-os,
protege-os em profusão de flores
e de ósculos. E
após, extrenua e em estertores,
rola...e sonha-o a
sorver-lhe os seios insuflados!... p.132
FASCINAÇÃO
... e assim, entre
flores e às brisas mansas do lago, Madalena adormecida atraía as borboletas com
a chilre perfectibilidade de formas e de lindeza. Dir-se-ia Fruto do Mal a
espargir tentações à natureza!...
De Jesus presa à
carne uma mulher dormia
sobre virente grama
apinhada de fetos
na esplendidez do
lago, e os sonhos prediletos
sabiam-lhe do amor
à dulciflua ambrosia.
Longos haustos de
quando em quando ela sorvia.
E, alheiada à
desgraça inflita a seus afetos
parecia perdoar os
entes abjetos.
Rubra e entreaberta,
a boca esflorava, sadia...
Ondeava-lhe ao
terral a fulva cabeleira.
Borboletas revéis,
em bandos, cintilantes,
teimavam em
sugar-lhe os lábios porejantes...
A túnica estampava
a nobre, feiticeira
e modelar estátua,
excelsa de beleza.
Era o Verbo divino
em face à Natureza!! p.138
LOUCA
À medida que o
calor aumentava, o ventre de Jesus intumescia, perturbando a Madalena e
atraindo os pássaros necrófagos. Estes, de quando em quando, baixavam a
apresá-los, mas os estremecimentos vitais dela os afugentavam. E logo, tomada
de espanto ante a realidade, esguichando em franca idiotia, entra a dançar em
torno do corpo querido. Num dado instante baixa a oscular-lhe a boca e os
espumarentos gases mefíticos dizem-lhe toda a verdade. a morte tem n’o roubado
ao seu infinito amor! A idiotia muda-se em loucura e a vitima pungente dessa
paixão insatisfeita rasga-se, fere-se, listra-se em sangue ao longo das estrias
na alva carne produzidas pelas unhas e dentes: e, ao fim, horripilada ante a
bruteza dos abutres sobre os despojos do Mestre, corre, toda nua, ao cair do
crepúsculo e à suavidade do luar, a exteriorizar sua desdita à natureza
calma...
Madalena desperta,
o olhar em sobressalto...
Voeja-lhe em
derredor asa negra e sinistra,
bate, se enfurna e
hesita; a retina o registra.
Escancara a pupila,
o horror vence-a de assalto.
Ao corpo cobiçado a
lividez ministra
a necrose fatal.
Espasmea a lúgubre, alto
grita: e desnastra
a coma e se esbagaxa, e, em salto,
dança e lacera e
faz correr o sangue em listra...
Fita, em delírio, a
face algente e empalecida,
canta frases de
amor, chama-o do sonho à vida,
e cócegas lhe
inflige e a boca lhe procura...
Mas o cheiro da
morte ao ledo engano a arranca...
Fero abutre o
desolha... e ela foge, em loucura,
nua, casando ao
luar o luar da carne branca... p.144
CORVOS
Os abutres famintos
devoraram, com poucas bicaradas, a reduzida massa orgânica de Cristo, e, como
que pressentindo seria a loucura de Madalena indício de breve morte naquela
vastidão silente e escampa do lago Tiberíade, rumaram na direção em que ela se
fora.
Sua undivaga
estatua nua, laivada de sangue, prometia mais opíparo banquete. Balizou-lhes o raid. E além, tombando sem vida,
entregou-se-lhes à fome edace, depois de pedir, obstinada, carícias ao
apaixonado reduzido ao tabido esqueleto...
A cruz de seus
braços foi para logo tomada como símbolo de sacrifício altruísta por uma outra
legião de seres lutulentos que, aparentando professar o celibato, fazem da
confissão a armadilha para apanhar o segredo das mulheres e sorver-lhes em
beijos a seiva; da mesma sorte que a substância de Jesus, declarada imortal,
ficou a servir-lhe de pasto, em jejum, à teofagia escandalosa. Laminado em
hóstias de pão ázimo e afogado em vinho, como sendo carne e sangue do humanado
Filho de Deus, ainda hoje os histriões da Igreja por tal forma asquerosa
ensinam a antrofagia às crianças e aos pascácios...
Foi rápido o
banquete aos pássaros funéreos.
E como a prelibar
uma outra ensancha igual,
os abutres se vão,
além dos cemitérios,
seguindo-lhe a
corrida, arvorando-a em fanal.
A carnação viçosa,
e macia, e aromal,
ainda melhor lhes
sabe e no desejo fere-os;
a vertigem a exaure
e ao prado a tomba, qual
embriagada bacante
egressa de mistérios...
Finaliza-se então o
drama singular:
beijos Maria
implora, amorosa, a expirar,
a quem jaz
reduzidos aos magros ossos torvos!
De seu corpo
venusto a esplendorosa cruz
fizeram-n’a
apanágio outros horrendos corvos,
que se nutrem da
carne e sangue de Jesus!! p.150
VERDADE
E a essa tragédia
de amor caprichoso e insatisfeito, por demais celebrada, fez erguer templos
faustosos e ainda vai assoalhando uma indústria odiosa e nefária ao progresso
da Humanidade, em virtude da inescrupulosa deturpação que de seus pormenores e
de sua moral tem feito aos munificentes que a exploraram!!
Judas, Magdala, e
Cristo! – heróis do verso e prosa,
expoentes agourais
de amor febricitante
e de um nacibo
atroz, estúpido e humilhante –
ativeram-se ao fim
de comédia engenhosa
em que o Ciúme
envenena e deixa lacrimosa
a aldeia, que os
ouviu em fervido descante,
com as pessoas
banais, empolgada de instante...
Idílio original
entre o pássaro e a rosa;
indivisível paixão;
almo surto da carne
em busca de outra
carne em crise!; todo o poema
de um beijo
oferecido em acinte a um rival
que ama sem ser
amada! – eis o exclusivo tema
que a Igreja
adultera, e, com supremo escarne,
há milênios explora
à Inércia Universal!! p.144
CRUZ EBURNEA
Verdadeiro símbolo
de glória e de pesadelo até presente oferecido aos ávidos olhos do homem, a
figura da mulher ora serve de fautor à alegria ou ao agridume de seu viver.
Na ebúrnea cruz
letal dos braços de Hetairas
ou de Virgens da
Terra, Homem! tens o suplicio:
vejas em seu regaço
encantadoras miras,
sintas-lhes no
aconchego o insofismado indício...
Em seu colo acharás
o teu Calvário! – disse-o
a experiência do
ancião, em sugestivas diras;
mas do gosto ao
fastígio e, após, ao sacrifício,
seu morno seio em
flor nem renegues nem firas!
Ser-te-á flâmeo
incentivo – a ti e às gentes zoilas –
a beleza imortal
das Ménades, que têm
o corpo de camélia
enflorado em papoilas...
E a obra-prima
genial dos idos tempos jônios
ou a venustade êxul
das plagas de Belém,
é a cruz dos braços
teus, Mulher de mil demônios!! p.150
VICTOR, Costa. A
tragédia divina. Rio de Janeiro: s/e, 1915.