segunda-feira, 25 de fevereiro de 2019

TARAUACÁ E O PREFEITO “SURUCUCU”

José Higino de Souza Filho (1929-2010)


O fato aconteceu com o dr. José Tomaz da Cunha de Vasconcelos, chegado a Tarauacá em 1916, como prefeito do Departamento, nomeado pelo Presidente da República. Homem enérgico e trabalhador, porém de um autoritarismo adentrando às raias da violência, o novo governante, durante a sua gestão, procurou pôr um freio aos abusos cometidos por alguns coronéis, cuja fama de prática de maus tratos contra seringueiros era de todos conhecidos.
Com tal postura, em pouco tempo, o prefeito conseguiu arregimentar contra ele a maioria dos coronéis locais, que inclusive, lhe deram logo o apelido de “Surucucu”, face a certas atitudes atrabiliárias tomadas contra tais seringalistas.
Conta-se, por exemplo, que um desses coronéis, habituado que era a pôr seringueiros no tronco e açoitar, certa vez, não satisfeito apenas com essa forma de castigo, obrigou a uma de suas vítimas a correr no campo em volta do barracão, com um chocalho pendurado no pescoço, como se um burro fosse.
Chegando o fato ao conhecimento de tal governante, este, indignado, determinou que tão logo o tal coronel viesse à cidade, o levassem à sua presença, pois que ele o iria obrigá-lo a caminhar, da mesma maneira, pelas ruas do ainda pequeno vilarejo. Ignorando a humilhante ameaça que pairava sobre a sua pessoa, um belo dia o coronel deixa o seu seringal no rio Muru, com destino à sede do município, onde pretendia tratar de negócios e desenfastiar-se do isolamento em que vivia.
Alertado, porém, por um amigo, a quem quis visitar já bem próximo à cidade, de que o “Surucucu” estava querendo acertar contas com ele, o coronel desceu às pressas o barranco que mal acabara de subir e, retomando, rapidamente, a embarcação, tão fortes e rápidas foram suas remadas rio acima, que jamais, a um transporte daquela espécie, velocidade tamanha fora imprimida contra a corredeira.
Durante o tempo em que o dr. Cunha permaneceu na Prefeitura, o coronel, por precaução, não mais saiu do seringal.
Verdade é que, na gestão do tão temido prefeito, pessoas importantes foram postas a rolar cumaru-ferro com machado cego, enquanto outras, vestida de fraque e cartola, capinaram ruas da cidade, sem falar das vezes que saíam corridas e se valiam da proteção de algum coronel mais respeitado, como aconteceu, por mais de uma vez, com o jornalista Pedro Leite, dono do jornal “O Município”.
O clima contra o prefeito, no entanto, ficava cada vez mais tenso e, um certo dia, uma bomba havia explodido, debaixo da sua residência, ferindo gravemente sua esposa. Um modesto comerciante de nome Amin Kontar, tendo sido preso como suspeito por um delegado que já era seu inimigo, foi torturado até a morte na prisão, sendo que, só muitos anos mais tarde, veio se saber quem foram os verdadeiros autores da façanha.
Quando, chamado, tempos depois, ao Rio de Janeiro, pelo Ministro da Justiça, em virtude de seguidas denúncias à sua pessoa, deveria substituí-lo na Prefeitura, na qualidade de primeiro suplente, o seu genro dr. Rafael Guedes Correa Godim, cuja posse, todavia, não aconteceu, impedida foi por um levante armado liderado pelo cel. Júlio Pereira Roque, o segundo suplente, sendo intenção ainda do movimento, colocar o impedido numa canoa, rio abaixo, coisa que só não chegou a se concretizar, graças ao prestígio e coragem do coronel e seringalista Joaquim Pinheiro Cavalcante, que o tomou sob sua proteção, levando-o para sua residência, na chácara “Corcovado”, onde o mesmo permaneceu até o dia em que, desanimado, deixou de vez o município. Por ironia do destino, tempos depois deu-se a sua volta à Tarauacá, dessa feita como juiz de Direito do lugar. Educado como era, nunca demonstrou, contudo, qualquer interesse de vingança contra os seus inimigos. O dr. Cunha, por sua vez, anos depois (1930), voltou ao Acre, como governador do Território, já na vigência da nova organização administrativa, adotada a partir de 1920, elegendo-se, em 1934, deputado federal pela Chapa Popular.


FILHO, José Higino de Souza. A LUTA CONTRA OS ASTROS. Rio Branco: edição do autor, 1994.

JOSÉ HIGINO DE SOUZA FILHO (1929–2010) escritor, membro da Academia Acreana de Letras. Era filho de José Higino de Souza, então grande pecuarista de Tarauacá, dono da Fazenda São José. Foi o fundador do SESI e SENAI no Estado do Acre, o qual esteve à frente por 17 anos. Escreveu SENAI – 10 anos contribuindo para o desenvolvimento do Acre; O trabalho vence tudo (1993); A Luta Contra os Astros (1994); e Segundo Hound (2009).

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2019

POEMAS DE MÁRIO FAUSTINO

ROMANCE
Mário Faustino (1930-1962)

Para as Festas da Agonia
Vi-te chegar, como havia
Sonhado já que chegasses:
Vinha teu vulto tão belo
Em teu cavalo amarelo,
Anjo meu, que, se me amasses,
Em teu cavalo eu partira
Sem saudade, pena, ou ira;
Teu cavalo, que amarraras
Ao tronco de minha glória
E passava-me a memória,
Feno de ouro, gramas raras.
Era tão cálido o peito
Angélico, onde meu leito
Me deixaste então fazer,
Que pude esquecer a cor
Dos olhos da Vida e a dor
Que o Sono vinha trazer.
Tão celeste foi a Festa,
Tão fino o Anjo, e a Besta
Onde montei tão serena,
Que posso, Damas, dizer-vos
E a vós, Senhores, tão servos
De outra Festa mais terrena –

Não morri de mala sorte,
Morri de amor pela Morte. p.15-16


VIDA TODA LINGUAGEM

Vida toda linguagem,
frase perfeita sempre, talvez verso,
geralmente sem qualquer adjetivo,
coluna sem ornamento, geralmente partida.
Vida toda linguagem,
há entretanto um verbo, um verbo sempre, e um nome
aqui, ali, assegurando a perfeição
eterna do período, talvez verso,
talvez interjetivo, verso, verso.
Vida toda linguagem,
feto sugando em língua compassiva
o sangue que criança espalhará – oh metáfora ativa!
leite jorrado em fonte adolescente,
sêmen de homens maduros, verbo, verbo.
Vida toda linguagem,
bem o conhecem velhos que repetem,
contra negras janelas, cintilantes imagens
que lhes estrelam turvas trajetórias.
Vida toda linguagem –
                                     Como todos sabemos
Conjugar esses verbos, nomear
esses nomes:
                        amar, fazer, destruir,
homem, mulher e besta, diabo e anjo
e deus talvez, e nada.
Vida toda linguagem,
vida sempre perfeita,
imperfeitos somente os vocábulos mortos
com que um homem jovem, nos terraços do inverno, contra a chuva,
tenta fazê-la eterna – como se lhe faltasse
outra, imortal sintaxe
à vida que é perfeita
                                  língua
                                             eterna. p.17-18


SINTO QUE O MÊS PRESENTE ME ASSASSINA

Sinto que o mês presente me assassina,
As aves atuais nasceram mudas
E o tempo na verdade tem domínio
Sobre homens nus ao sul de luas curvas.
Sinto que o mês presente me assassina,
Corro despido atrás de um cristo preso,
Cavalheiro gentil que me abomina
E atrai-me ao despudor da luz esquerda
Ao beco de agonia onde me espreita
A morte espacial eu me ilumina.
Sinto que o mês presente me assassina
E o temporal ladrão rouba-me as fêmeas
De apóstolos marujos que me arrastam
Ao longo da corrente onde blasfemas
Gaivotas provam peixes de milagre.
Sinto que o mês presente me assassina,
Há luto nas rosáceas desta aurora,
Há sinos de ironia em cada hora
(Na libra escorpiões pesam-me a sina)
Há panos de imprimir a dura face
À força de suor, de sangue e chaga.
Sinto que o mês presente me assassina,
Os derradeiros astros nascem tortos
E o tempo na verdade tem domínio
Sobre o morto que enterra os próprios mortos.
O tempo na verdade tem domínio,
Amen, amen vos digo, tem domínio
E ri do que desfere verbos, dardos
De falso eterno que retornam para
Assassinar-nos num mês assassino. p.19-20


O MUNDO QUE VENCI DEU-ME UM AMOR

O mundo que venci deu-me um amor,
Um troféu perigoso, este cavalo
Carregado de infantes couraçados.
O mundo que venci deu-me um amor
Alado galopando em céus irados,
Por cima de qualquer muro de credo,
Por cima de qualquer fosso de sexo.
O mundo que venci deu-me um amor
Amor feito de insulto e pranto e riso,
Amor que força as portas dos infernos,
Amor que galga o cume ao paraíso.
Amor que dorme e treme. Que desperta
E torna contra mim, e me devora
E me rumina em cantos de vitória... p.21


CARPE DIEM

Que faço deste dia, que me adora?
Pegá-lo pela cauda, antes da hora
Vermelha de furtar-se ao meu festim?
Ou colocá-lo em música, em palavra,
Ou gravá-lo na pedra, que o sol lavra?
Força é guarda-lo em mim, que um dia assim
Tremenda noite deixa se ela ao leito
Da noite precedente o leva, feito
Escravo dessa fêmea a quem fugira
Por mim, por minha voz e minha lira.

(Mas já de sombras vejo que se cobre
Tão surdo ao sonho de ficar – tão nobre.
Já nele a luz da lua – a morte – mora,
De traição foi feito: vai-se embora.) p.39


BALADA
(Em memória de um poeta suicida)

Não conseguiu firmar o nobre pacto
Entre o cosmos sangrento e a alma pura.
Porém, não se dobrou perante o facto
Da vitória do caos sobre a vontade
Augusta de ordenar a criatura
Ao menos: luz ao sul da tempestade.
Gladiador defunto mas intacto
(Tanta violência, mas tanta ternura)

Jogou-se contra um mar de sofrimentos
Não para pôr-lhes fim, Hamlet, e sim
Para afirmar-se além de seus tormentos
De monstros cegos contra um só delfim,
Frágil porém vidente, morto ao som
De vagas de verdade e de loucura.
Bateu-se delicado e fino, com
Tanta violência, mas tanta ternura!

Cruel foi teu triunfo, torpe mar.
Celebrara-te tanto, te adorava
Do fundo atroz à superfície, altar
Doe seus deuses solares – tanto amava
Teu torso cavalgado de tortura!
Com que fervor enfim te penetrou
No mergulho fatal com que mostrou
Tanta violência, mas tanta ternura!

                    Envoi

Senhor, que perdão tem o meu amigo
Por tão clara aventura, mas tão dura?
Não está mais comigo. Nem contigo:
Tanta violência. Mas tanta ternura. p.42-43


FAUSTINO, Mário. Melhores poemas de Mário Faustino. Seleção de Benedito Nunes. São Paulo: Global, 2000.

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2019

COSTA VICTOR: A TRAGÉDIA DIVINA

“Há dois mil anos vive a Humanidade inteira
a ouvir, estupefata, invocações da Cúria
sobre a impura Judeia, e, mesmo que não queira,
dá crédito a uma história em tudo ingênua e espúria!”


Sobre o “poeta acreano” COSTA VICTOR não foi possível apurar dados precisos acerca de sua biografia. Em nossas pesquisas, apenas duas notas foram encontradas sobre ele, uma, na revista Fon-Fon, escrita por um pseudônimo chamado Til; e outra, na revista O Pirralho, de autoria do escritor Carlos de Vasconcelos, autor de Deserdados: romance da Amazônia (1921). Ambas as notas tratam especificamente do livro A TRAGÉDIA DIVINA, as quais reproduzimos a seguir:

“TRAGEDIA DIVINA
Em segunda edição correcta e augmentada, com bellas iluminuras de Kalixto, acaba de vir à luz o poema anti-religioso do Sr. Costa Victor, poeta acreano independente e insubmisso. O volume traz um prefacio do brilhante homem de lettras Carlos Vasconcellos que se limitou a falar no thema aproveitado pelo poeta, com um certo enthusiasmo, talvez por elaborar nas mesmas opiniões religiosas. Christo, Judas e Magdalena são os três personagens levados à scena pelo Sr. Costa Victor, muita vez com alguma felicidade e colorido... É um livro esse digno da maldicção do Papa e de um grande successo de livraria!
Til”

Revista Fon-Fon, Rio de Janeiro-RJ, 27 de fevereiro de 1915, Ano IX, N.9

“Deveria dizer que, estando sobremodo identificado com as idéas do poeta acreano Costa Victor, cujo livro a “Tragédia Divina”, prefaciei, fiquei mais ou menos responsável pela campanha proveitoza que semelhante bárbaro dezabuzado encetou contra a ortodoxia religiosa, contra os gananciozos industriais da igreja católico-romana...”

Carlos de Vasconcellos
O Pirralho, São Paulo-SP, 8 de maio de 1915, Ano IV, N.186

Provavelmente a primeira edição de “A tragédia divina” saiu em 1914, haja vista que a segunda edição “aumentada e com quadros novos” saiu em 1915. O livro é dedicado a um dos grandes seringalistas da época, a saber: “A Childerico Fernandes, valeroso acreano liberto de religiosidades, hospitaleiro compatriota cujo triunfo, na vida, atesta o valor da perseverança e do trabalho”, e traz o “Yaco, 1914”, como local e ano da conclusão do livro. Todos os poemas trazem uma ilustração do grande caricaturista carioca Calixto Cordeiro ou K. Lixto (1877-1957).
O livro é composto por trinta poemas, sob a forma de sonetos, todos precedidos por uma epígrafe, que serve de mote ao poema. De caráter “antirreligioso”, os poemas-narrativas contam a história de três personagens: Jesus, Judas e Madalena. A romper com a narrativa canônica dos evangelhos, o poeta apresenta o Cristo humano dos evangelhos apócrifos. Jesus é amado por Madalena, que é amada por Judas. Judas é desprezado por Madalena que, por sua vez, é desprezada por Jesus. Para afastar Madalena de Jesus, Judas, que havia ingressado no grupo só para estar perto dela, denuncia-o como revolucionário. O Mestre, por sua vez, vê, em sua condenação, uma maneira de escapar de Madalena, ao fingir a própria morte. Numa tentativa de livrar Jesus, já crucificado, Madalena se deita com o centurião. Por fim, os planos dos três fracassam. Judas se enforca, ao perceber que, ao invés de afastar Jesus, acabou por condená-lo à morte. Madalena, todavia, foge com o corpo de seu amado, e termina louca, abraçado ao cadáver em decomposição. É essa a tragédia divina a que se refere o poeta.
Costa Victor fez uma obra ímpar, digno dos melhores poetas malditos.



JESUS DE NAZARÉ

A tersa psiquiatria moderna do dr. Binet Sanglé revelou, num exaustivo estudo, a descendência alcoolista de Jesus. D’aí o seu enfraquecimento genésico, de fora consequência psicológica o tornar-se místico. Alma esteta, diferençava-se todavia de Boileau, porque, longe de satirizá-las, gostava de ver as mulheres, à distância, embora lhes fugisse ao estontear sugestivo dos encantos...


Cresciam em Jesus os clássicos sintomas
da minaz paranoia, intensos, patológico;
sem embargo escandia, em argumentos lógicos,
os abusos dos reis e os vicíos das Sodomas.

Execrava o Pecado – escampo às róseas pomas
de hetairas louçãs – e encomiava ideológicos
fatos de Nazaré, modos teratológicos
de coevas e ancestrais metidas em redomas.

Era circuncidado e opimo descendente
de alcóolatras plebeus, catalogando estigmas
de uma tara exequial, completa em paradigmas...

Buscava espairecer de um desgosto latente:
o de à mulher fugir, qual Boileau, por defeito,
arcando em convulsões aos vórtices do peito. p.30



MARIA DE MAGDALA

Magdalena era o feitiço dos cavalheiros da Judeia: formosa, soberba de linhas, lúbrica nos gestos, lembrava as irrivaes esculturas do paganismo helênico! Tornou-se inda mais cobiçada depois que, recolhida à coabitação monógama, se afigurara cercada de um nimbo quase impenetrável...


Estátua senhoril, helênica e sublime!
Jovem carne insaciada, alma de espúmeas taças,
expande-se, flexuosa, em cambiantes negaças,
quer sorrindo ao Amor, quer a insinuar-se ao Crime!

Deusa altiva e pagã, crebro donaire exprime
do talhe na doblez, e, lesta, aturde as massas;
as núbeis seduções, a louçania e as graças,
aprimoram-lhe o corpo às torcias de vime...

Da nudez o esplendor e do desejo os trenos
no peplum rubro esconde e oprime na garganta:
sua ideal beleza é irmã da extreme Vênus!

Quando induzida a amar, cega, enlouquece: e, então,
emerge-lhe do colo, e treme, e espasma, e encanta,
fruto de arminho e rosa, inconho, inda em botão... p.42



ELEIÇÃO

Sabendo tratar-se de um estranho, a concubina de Hannam alcançou, de pronto, a vantagem de ser por ele satisfeita. Não possuindo Jesus conhecimentos presumíveis, em Jerusalém, afastava a possibilidade de jactanciar-se a amigos indiscretos, e desfiar gabolices àqueles que a conhecem, de modo a fazê-la perder... É notório, na psicologia humana, que o macho trompeia, leviano e envaidecido, quaisquer conquistas amorosas, e que, na hermenêutica estratégica das fêmeas, o recém-chegado a certo meio social lhes merece muito mais ensanchas do que o seu residente.
Em matéria de eleição do amor, estranho ou estrangeiro, ainda mesmo inferior, sobreleva, pela conveniência de não conhecer as gentes ou não falar o idioma, o domiciliário do lugar. Assum ainda hoje acontece em todas as latitudes e o triunfo dos estrangeiros nos festins diplomáticos dá a mais eloquente prova disso. A crença de que, com o ente desconhecido, ela evita o vultuar da revelação do segredo, tranquiliza-a e a atreve à empreitada de trair o senhor ou amante, sempre que o prazer material seja o efeito buscado pela dirigente do pleito.


Ser belo, e forte, e estranho – eis todo o seu problema:
o entre fraco e senil, que lhe adormece ao lado,
trai o intuito mendaz de um pobre emasculado
vaidoso de ostentar-se em fortitude extrema.

Da serpe da luxúria ela aos anéis se algema
e se contorce e brame, assim cumprindo um fado;
e ardorosa procura, e espera, de bom grado,
na trama espasmodiar da Delícia Suprema!

O nômade Rabino arvora em candidato:
ele a ninguém conhece, impõe-se-lhe o recato;
é jovem, tem vigor, não ama os artifícios...

E à vitória integral do desejo tirano,
prefere-os aos chichisbéus e aos cortesãos patrícios,
e à sua carne o elege amante e soberano! p.48



JUDAS DE ISCARIOTE

Ninfófilo, Judas consubstanciava a volubilidade. Mal apresava certa deidade por quem mostrava esgorjar-se, para logo a esquecia, entre risos e galanteios. Fartava-se desse amor mentido, sempre mascarado com perícia e habilidade... Assim passou através da Judeia a prodigalizar, sob mesmerismos, o prazer, o ciúme e a tristeza, no seio odorífero das judias insones...


Tipo másculo e ousado! estampa varonil,
sedicioso no olhar, amorável nas vozes,
engenha as seduções das tredas psicoses
para esturdiar ao gozo as victrices no ardil!

Arde ao praxial queimor dos homens do Brasil!
E sempre a rir ministra, em sorrateiras doses,
de ingênua rapariga à insonte carne, atrozes
crispações de Desejo omnimodo e febril...

E consegue ensinar-lhe a volúpia felina!!
Traquinações sexuais a seiva não consomem
deste ereo precursor do ingente Super-Homem!

núbeis moças ao cio além da Palestina
busca: e frui-lhes e olvida o seio rosicler,
volúvel, sem prender-se a lábias de mulher... p.54



SUBVERSÃO

... mas, a princípio por vaidade de conquistador jamais contrariado em temeroso assalto; depois, por que a dificuldade acendera em si veementes flamas de luxúria, Judas teimou vencer a aversão da favorita. De fruto proibido Maria se mostrava, ao tempo de amásia Hannam, à presente situação de platônica amant-de-coeur de Jesus, tornou-se-lhe ideal à pertinácia. Subvertido à lei psicológica de que o máximo estímulo existe onde há inacessibilidade, e atirado à pugna, sob ousio de invencido, ei-lo a urdir endiabrados planos de triunfo...


Ao saber que Maria abandonara o amante
miliardário e cretino, a fim de a um forasteiro
demagogo prender-se, o Iscariote inconstante,
fogoso e tavanez, buscou-lhe o paradeiro.

Ouvira encarecer a magia estonteante
de um celso galileu, místico e sem dinheiro,
e, ralado de inveja, entendeu, diletante,
partir a disputa-la ao mago aventureiro.

Prosélito se faz. Em breve lhe dessora
o peito, mal se vê por ela repudiado...
E tanto mais a quer, mais a bacante o odeia!

Vendo-a nua a banhar-se e a descantar, à aurora,
corpo formoso assim jamais tendo estreitado,
delira, subvertido aos cantos da sereia... p.60



DRAMA AO LUAR

Apóstolo por conveniência amorosa, anda o Iscariote, entre os discípulos do Messias, às pegadas da mulher querida. Flirta-a, hipnotiza-a e canta-a, aos surtos de flamívoma paixão. E apenas sente a preferência dada ao Mestre que o desinteressa, assoma-se, tigrino no ciúme, a traquinar meios de enlaçar...


Está o horto em silêncio... Os sectários do Cristo,
deitados sobre palha, em mísera alpendrada,
sorriem o fulgor da promessa irisada
deum Éden de ouropéis e encantos, entrevisto.

Benção, graça, indulgência, excelso Deus benquisto
a todos distribui... À noite enluarada
jesus anda ao jardim pensando em sua amada –
– da carne o altar e o filtro em luxuriante misto!

Levanta-se Maria e sai, a alguém buscando.
Judas segue-a, hesitante, e arrepia-se, quando
atenta na impostora agora feita santa.

E ao vê-la segredar, juntinha ao Bem-amado,
raiva e morde-se, enquanto o Cristo, algo tentado,
sorvos lhe inflige à boca... e a excita mais... e a espanta... p.66



ESCÂNDALO

Ferida no amor-próprio e contristada ante o acanhamento inflito ao predileto, Maria excede-se na represália e, para mais a fundo estigmatizar o inditoso apaixonado, debuxa imensurável ardor pelo Rabi. Fora de si, Judas ascende ao auge, exorta o rival à ação, e, em estupendo gesto de vaidade e impudor, desnuda-se, deixando aperceberem-lhe da magna fortitude...


Do seio as hóstias quer-lhe, em comunhão, no altar
do amor! Mas a beldade insurge-se às insidias
e o declara capaz de intérminas perfídias
nesse pronubo afã de encantos seus gozar!

Acoima-o de falsário, exproba a infâmia, a par
do achincalhe do Mestre. Arrebata-se e agrige-as,
tão torpes delações, e, estranha como Fídias,
seu infinito amor começa a esculturar.

Audacioso e sem freima, entregue a fero ciúme,
Judas fita Jesus, apregoa-o inviril
e exorta a que o desminta à lúbrica bacante;

enquanto, crendo ser da perfeição o nume,
arranca, envaidecido, o pallium cor de anil,
à plástica soberba, à seiva exuberante!... p.78



SOLILOQUIO

Maldizendo a obstinação de Madalena por segui-lo sempre, o nômade poeta sentia mais acerbo o mal e mais se atormentava ante a consciência da incurabilidade. Se era o Filho de Deus humano, porque lhe negava o Pai a mais honorífica faculdade do ser, a mais altruística prerrogativa da carne?
E solitário, ao cair nas sugestivas tardes da Palestina, em tristíssimos solilóquios através do Horto, andava a devanear entre a criança, que diz a perpetuação da vida, pelo amor, e a mulher, que é o seu altar divino, eternamente fascinante e lindo!...


“Entre criança e mulher o amor distende a trama
que ao nobre homem enleia e os louros lhe entretece:
a criança dá-lhe orgulho e altruísmo lhe reclama,
a mulher ao prazer lhe acena e o ajoelha em prece.

Criança esperanças traz de ser Confúcio ou Brahma,
é flor que se abre em fruto, e expande, viça e cresce;
há na mulher o ardor do beijo que auriflama,
promessas divinais de encantadora messe.

Da vida o almo prazer de em filhos desdobrar-me
e da esposa ao regaço ouvir um doce carme,
priva-me o Pai severo, e isso me avessa e enfeza!

Há de saber-me sempre o travo de amargura...
Se não lhe posso eu dar o que de mim procura,
porque me atrai e empolga a feminil beleza?” p.84



INVEJA

Passaram-lhe em tropel, na mente incendida, os mais voluptuosos festins ao prazer, sob mirífica orquestração de beijos... E ao verificar a capacidade de Judas para de todos eles comparticipar, o Místico sentiu-se preso de uma inveja infinita...


A flâmea excitação de Judas lança-o, presto,
ao mais fundo pesar, ao golpe mais infausto;
melhor fora render-se a bárbaro holocausto
à triste humilhação de seu viver já mesto.

Sabe-lhe amarga a inveja! Um impudente gesto
anima, instiga e o deixa estertorante, exausto,
por atro epicurismo em que, ardentes e em hausto,
espasmam os sensuais ao mais espurco incesto!

Quer e almeja abrasar-se à veemência dos beijos
de adúltera insaciada ou fácil em desejos,
cavalheiro no prélio, ovante na insistência...

Anseia por possuir quaisquer criaturas belas,
sejam damas, vestais, sultanas ou michelas...
Só não deseja ater-se à mais torva Indigência!! p.90



MARTÍRIO

Maria não lograra ulteriores carícias; os parcos beijos ao luar, no Horto, selaram-lhe o equívico. E contristado por sentir-se tanto menos apto quanto mais irrefreável ela se mostrava na paixão, o filho de José, tendo fugido da presença dos discípulos, bradou misericórdia aos céus...


Cariciante e gazil o amima a cortezã:
e o louco visionário, o incurável Rabino,
percebe o intumescer do seio alabastrino
quando se lhe aconchega, ardorosa e louçã.

Mas, frio desde o ocaso aos lumes da manhã,
começa a maldizer o mísero destino:
a insânia da lascívia e o corpo venusino,
nada ao orgasmo o conduz, sequer em mostra vã...

Aos paramos do gozo arrebata e acessa
prende-se-lhe inda mais, través a noite escura,
a excitá-lo e a sorvê-lo, em denuda beleza!

Morde-lhe a nuca e a boca em trêfega diabrura...
E, ao ver-se inútil, Cristo exclama, com tristeza:
“Pai! afasta de mim tal cálice de amargura!” p.96



SUICÍDIO

Advertido do desesperado plano do falso discípulo, Cristo tivera a heroicidade estoica dos grandes abnegados. Viu-lhe na trama vingativa um alívio à desdita, honroso à inviolabilidade de seu tristíssimo segredo... Seus derradeiros anhelos prendiam-se àquela que não pôde satisfazer...


O pálido Jesus buscara um lenitivo
ao mais cruel sofrer na existência a mais pura:
tornou-se indiferente ao rancor vingativo
de quem o empurrava à paz da sepultura.

Imprestável se vendo, esqueceu ser um divo,
no estoicismo estriando um traço que perdura:
em vez de revelar-se humano fugitivo
enveredou da Morte à impávida procura.

Não quis fugir. Deixou-se apanhar e prender
a ignominioso poste, em meio a malfeitores,
escanifrado e nu, inóxio em seu viver.

inda aspirou libar da boca da Magdala
– chorosa ao pé da cruz – o néctar e os olores:
quis hauri-los, mas só lhe soube o fel de amá-la!... p.108




ESTRATAGEMAS

Os demais apóstolos assentaram narcotizar a Cristo, depois de pregado à cruz, para que, sob aparência mortal, fosse logo retirado. Então, dada a magreza irrival e peitados os centuriões, segundo as conveniências de momento, seria o corpo do Mestre conduzido a um recanto calmo aonde se operasse a eliminação do filtro. Isso feito, Madalena, sublimada pelo amor, veio, em silêncio e a sós, roubá-lo, no afã de vê-lo despertar estreitado à tepidez de seu colo arminhoso...


Do madeiro onde esteve amarrado o précito
Desceu-lhe o corpo inerme ao pulso da Centúria.
Fez-se-lhe em derredor um coro de lamúria,
gritos e imprecações ao mais audace fito.

Urgia converter-se a vigília em incúria.
Quando a beber Jesus pedisse, – estava dito –
ser-lhe-ia propinado um calmante expedito
para à morte enquadrar-se a orgânica penúria.

A Arimathéa a astúcia estatuíra o dever.
E enquanto toda a guarda, ébria, resfolegava,
Fazia ronda o Amor, trazendo cheia a aljava...

Cumprido o plano e posto ao sepulcro, a jazer,
Maria a Cristo rouba antes que cante o galo,
para, ao torpor do filtro, a beijos arrancá-lo! p.114



SONHO

Maria carregara o amado para as margens do Tiberíades, onde o animou com flores e carícias. Esperançosa de vê-lo em pouco ressuscitar do narcótico ministrado ao alto do Calvário, exausta adormeceu a seu lado e, louca nos sonhares, sentiu-o para logo a banqueteá-la num assoberbamento frenético de fauno!...


Exausta de suster o corpo de Jesus
durante a travessia em célere carreira
ofega Madalena, heroica e aventureira,
os braços de marfim mudados noutra cruz...

A esta lhe aconchega os magros peitos nus,
quando, a oscular seu rosto exangue, uma figueira
depara e nela um vulto hediondo. A forasteira
a Judas reconhece e alto o esconjura a flux.

Chicoteia o corcel à rábida vertigem.
Do Tiberíades salta à margem. Não lhe afligem
do corvo o crocitar, do abutre os voos planados...

Agasalha-os, protege-os em profusão de flores
e de ósculos. E após, extrenua e em estertores,
rola...e sonha-o a sorver-lhe os seios insuflados!... p.132



FASCINAÇÃO

... e assim, entre flores e às brisas mansas do lago, Madalena adormecida atraía as borboletas com a chilre perfectibilidade de formas e de lindeza. Dir-se-ia Fruto do Mal a espargir tentações à natureza!...


De Jesus presa à carne uma mulher dormia
sobre virente grama apinhada de fetos
na esplendidez do lago, e os sonhos prediletos
sabiam-lhe do amor à dulciflua ambrosia.

Longos haustos de quando em quando ela sorvia.
E, alheiada à desgraça inflita a seus afetos
parecia perdoar os entes abjetos.
Rubra e entreaberta, a boca esflorava, sadia...

Ondeava-lhe ao terral a fulva cabeleira.
Borboletas revéis, em bandos, cintilantes,
teimavam em sugar-lhe os lábios porejantes...

A túnica estampava a nobre, feiticeira
e modelar estátua, excelsa de beleza.
Era o Verbo divino em face à Natureza!! p.138



LOUCA

À medida que o calor aumentava, o ventre de Jesus intumescia, perturbando a Madalena e atraindo os pássaros necrófagos. Estes, de quando em quando, baixavam a apresá-los, mas os estremecimentos vitais dela os afugentavam. E logo, tomada de espanto ante a realidade, esguichando em franca idiotia, entra a dançar em torno do corpo querido. Num dado instante baixa a oscular-lhe a boca e os espumarentos gases mefíticos dizem-lhe toda a verdade. a morte tem n’o roubado ao seu infinito amor! A idiotia muda-se em loucura e a vitima pungente dessa paixão insatisfeita rasga-se, fere-se, listra-se em sangue ao longo das estrias na alva carne produzidas pelas unhas e dentes: e, ao fim, horripilada ante a bruteza dos abutres sobre os despojos do Mestre, corre, toda nua, ao cair do crepúsculo e à suavidade do luar, a exteriorizar sua desdita à natureza calma...


Madalena desperta, o olhar em sobressalto...
Voeja-lhe em derredor asa negra e sinistra,
bate, se enfurna e hesita; a retina o registra.
Escancara a pupila, o horror vence-a de assalto.

Ao corpo cobiçado a lividez ministra
a necrose fatal. Espasmea a lúgubre, alto
grita: e desnastra a coma e se esbagaxa, e, em salto,
dança e lacera e faz correr o sangue em listra...

Fita, em delírio, a face algente e empalecida,
canta frases de amor, chama-o do sonho à vida,
e cócegas lhe inflige e a boca lhe procura...

Mas o cheiro da morte ao ledo engano a arranca...
Fero abutre o desolha... e ela foge, em loucura,
nua, casando ao luar o luar da carne branca... p.144



CORVOS

Os abutres famintos devoraram, com poucas bicaradas, a reduzida massa orgânica de Cristo, e, como que pressentindo seria a loucura de Madalena indício de breve morte naquela vastidão silente e escampa do lago Tiberíade, rumaram na direção em que ela se fora.
Sua undivaga estatua nua, laivada de sangue, prometia mais opíparo banquete. Balizou-lhes o raid. E além, tombando sem vida, entregou-se-lhes à fome edace, depois de pedir, obstinada, carícias ao apaixonado reduzido ao tabido esqueleto...
A cruz de seus braços foi para logo tomada como símbolo de sacrifício altruísta por uma outra legião de seres lutulentos que, aparentando professar o celibato, fazem da confissão a armadilha para apanhar o segredo das mulheres e sorver-lhes em beijos a seiva; da mesma sorte que a substância de Jesus, declarada imortal, ficou a servir-lhe de pasto, em jejum, à teofagia escandalosa. Laminado em hóstias de pão ázimo e afogado em vinho, como sendo carne e sangue do humanado Filho de Deus, ainda hoje os histriões da Igreja por tal forma asquerosa ensinam a antrofagia às crianças e aos pascácios...


Foi rápido o banquete aos pássaros funéreos.
E como a prelibar uma outra ensancha igual,
os abutres se vão, além dos cemitérios,
seguindo-lhe a corrida, arvorando-a em fanal.

A carnação viçosa, e macia, e aromal,
ainda melhor lhes sabe e no desejo fere-os;
a vertigem a exaure e ao prado a tomba, qual
embriagada bacante egressa de mistérios...

Finaliza-se então o drama singular:
beijos Maria implora, amorosa, a expirar,
a quem jaz reduzidos aos magros ossos torvos!

De seu corpo venusto a esplendorosa cruz
fizeram-n’a apanágio outros horrendos corvos,
que se nutrem da carne e sangue de Jesus!! p.150



VERDADE

E a essa tragédia de amor caprichoso e insatisfeito, por demais celebrada, fez erguer templos faustosos e ainda vai assoalhando uma indústria odiosa e nefária ao progresso da Humanidade, em virtude da inescrupulosa deturpação que de seus pormenores e de sua moral tem feito aos munificentes que a exploraram!!


Judas, Magdala, e Cristo! – heróis do verso e prosa,
expoentes agourais de amor febricitante
e de um nacibo atroz, estúpido e humilhante –
ativeram-se ao fim de comédia engenhosa

em que o Ciúme envenena e deixa lacrimosa
a aldeia, que os ouviu em fervido descante,
com as pessoas banais, empolgada de instante...
Idílio original entre o pássaro e a rosa;

indivisível paixão; almo surto da carne
em busca de outra carne em crise!; todo o poema
de um beijo oferecido em acinte a um rival

que ama sem ser amada! – eis o exclusivo tema
que a Igreja adultera, e, com supremo escarne,
há milênios explora à Inércia Universal!! p.144



CRUZ EBURNEA

Verdadeiro símbolo de glória e de pesadelo até presente oferecido aos ávidos olhos do homem, a figura da mulher ora serve de fautor à alegria ou ao agridume de seu viver.


Na ebúrnea cruz letal dos braços de Hetairas
ou de Virgens da Terra, Homem! tens o suplicio:
vejas em seu regaço encantadoras miras,
sintas-lhes no aconchego o insofismado indício...

Em seu colo acharás o teu Calvário! – disse-o
a experiência do ancião, em sugestivas diras;
mas do gosto ao fastígio e, após, ao sacrifício,
seu morno seio em flor nem renegues nem firas!

Ser-te-á flâmeo incentivo – a ti e às gentes zoilas –
a beleza imortal das Ménades, que têm
o corpo de camélia enflorado em papoilas...

E a obra-prima genial dos idos tempos jônios
ou a venustade êxul das plagas de Belém,
é a cruz dos braços teus, Mulher de mil demônios!! p.150


VICTOR, Costa. A tragédia divina. Rio de Janeiro: s/e, 1915.