quinta-feira, 4 de julho de 2019

AMANCIO LEITE: O CANTOR DA SELVA

Amancio Leite era cearense, natural de Baturité. Chegou a Amazônia, provavelmente, na primeira década do século XX, como seringueiro, para trabalhar nos seringais de Cruzeiro do Sul, na região do Tejo. Como escreve Quintela Junior, num artigo sobre o autor, Amancio “aprendeu os rudimentos de leitura com um companheiro de barraca”, nos intervalos da extração do látex. Amancio, mutatis mutandis, é um Patativa do Assaré da Amazônia, na verve, na linguagem e na genialidade. Ele é um poeta original, foge do cânone e do engessamento acadêmico, tão comum à época. Francisco Peres de Lima, no livro “Folk-lore acreano”, afirma que ele publicou uma obra chamada “Os cantares seringueiros”, na década de 1930. Amancio é um seringueiro poeta; e um poeta seringueiro. Sua escrita surgiu com e da própria Amazônia. Pela primeira vez os seringueiros se projetam para além dos seringais. Sua voz não traduz o barracão, mas representa as barracas, com suas tristezas, histórias e esperanças. Por isso o chamaram de “o Cantor da Selva”. I. M.
Imagem do livro "Folk-lore acreano" de Francisco Peres de Lima.
“Em nosso meio, pois, – cabe aqui a observação de Prada Sampaio – como em outro qualquer, estudar semelhantes manifestações é escarvar raízes antropológicas, diferenciar grupos étnicos, nortear tendências e aspirações, e descobrir o humos donde nos vem a seiva que alimenta e faz reflorir de luzes e fantasias a alma contemporânea dourada pelo sol da civilização!”  
Isto bem compreendeu Amancio Leite no tanger inculto da sua lira que, depois de cantar as tradições da Mãe da seringueira, da Matintaperera, do Apuí, conta-nos a xácara da Vida do seringueiro tal que ele a observou, porque a sentiu com a emotividade do seu temperamento de meridional e a filosofia que as agruras do meio físico e moral lhe incutiram no coração e no pensamento. 
Graças ao sr. coronel Absolon Moreira – um espírito investigador e ávido de conhecimentos literários – vou satisfazer o desejo do primoroso literato, que é João Ribeiro, e despertar o estímulo dos que cultivam as letras neste Departamento para gênero folclore, dando publicidade a algumas poesias da lavra desse poeta acreano –. 
Antes de transcrevê-las, duas palavras sobre o autor.
Amancio Leite é natural das terras de Iracema. Vindo numa leva de emigrantes, há alguns anos, aqui aprendeu os rudimentos de leitura com seu companheiro de barraca, nos lazeres da faina extrativa, companheiro que é hoje o gerente do seringal Minas Gerais, o sr. Francisco Vieira, por antonomásia Mineiro. Logo que conseguiu soletrar, não deixou de ter à mão almanaques, jornais e romances, que foram a fonte desordenada de seus estudos, e um dia, num seringal do Tejo, surgiu empunhando a lira e férula – era poeta satírico!...
As suas produções são inspiradas no cenário e nos acontecimentos da terra nova que o acolheu, mas se ressentem da métrica e dos requisitos exigidos pela arte poética. A poesia hoje estampada di-lo bem. Não a retoquei, para lhe não tirar a feição primitiva tão natural aos versejadores do quilate de Amancio Leite. O leitor de certo avaliará do estro, do sentimento e das imagens desse bardo que se inspira sem os estímulos da cultura literária.
Poderia dizer da produção o Apuí o que o pranteado Euclides da Cunha disse da descrição que o autor “Inferno Verde” fez do apuizeiro: “um botânico não no-lo a pintaria, tão viva, nos seus caracteres golpeantes. Por outro lado, um sociólogo não depararia conceitos a balancearem a eloquência sintética daquela imagem admirável.”
Se Amancio Leite fosse literato, a par das publicações, e a sua poesia não tivesse a data de 1908, eu diria que ele se inspirara em Alberto Rangel não comparação feliz da famosa hiloe de Humboldt...
Nota: o poeta só escreve a lápis; nunca soube o que foi escrever à tinta. Inda faz muito, pois se dermos crédito ao que de José Estevão nos disse Bulhão Pato no “Sob os Ciprestes”, aquele nem mesmo escrever a lápis sabia...

Quintela Junior

Jornal O Cruzeiro do Sul, Cruzeiro do Sul-AC, 25 de maio de 1913, Ano VIII, N.252, p.2-3


BRAGARIA
(Sátira)

No Juruá e no Tejo
Há uma coisa estúpida
Que eu rogo d’antemão
Que disto ninguém se ofenda...
Há um cardume, uma praga
Que chega fazer piracema!
Se fora poeta, a obra
Tão inspirada de sobra
Era epopeia ou poema
Principiando do baixo,
Da boca do Juruá,
Vê-se Braga até o alto
Nas grimpas do paraná.
Tem Braga fêmea, tem macho,
Braga branco, Braga preto;
Bragas vivos e defuntos,
Cujos nomes próprios juntos
Não cabiam num soneto!

Em um dos membros do Tejo,
Num dos dedos deste membro,
Reside o Braga Ferreira,
Agora mesmo eu me lembro...
É seringueiro de fama,
Hoje possui uma faixa
De terreno: lá num galho,
Só tem um Deus – a borracha!

No seringal Iracema
(Perdoem-me mencioná-lo)
Circulado de crianças
Assiste o Braga Regalo;
Das trevas da ignorância
Aclara o cérebro da infância,
(Porém não tem seringal)
Por sobre as letras galopa
Para ver se um dia topa
C’o a pedra filosofal!

Além, na margem oposta,
Pertinho, quase defronte,
Reside o capitão Braga
No barracão Horizonte;
Calculista sem letargo,
Amável quando em seu cargo
Interroga algum cliente;
Mas do reino mineral
Sua pedra filosofal
É o metal reluzente...

O Braga da Tauaré...
Qual ave d’arribação
Que sulca as águas do rio
Num lodoso batelão;
Chamam-no Braga Macio,
É sua alcunha no rio
E pela praça também;
Mas trata da sua vid,
Sua algibeira querida
Nunca vive sem vintém.

Não é tudo! inda tem Brag...
Por exemplo o “Quinze Dias”,
Que caceteia o comércio
Com velhas mercadorias?
Dizem que não tem vexame,
Mas peço que não me chame
P’ra servir de testemunha;
Pois quando num porto ancora,
Quando menos se demora
São os dias de su’alcunha...

Termino com o perfil
Do tal Braga turussú,
Por ser muito espadaúdo
Assemelha-se um bacu!
Não conheço tal sujeito,
Não sei se é torto ou direito,
Se é bem liso ou tem fraga,
Informo-o só pela fama;
Senão o leitor reclama:
– Arre lá!... com tanto Braga!

Tejo – 1908

Jornal O Cruzeiro do Sul, Cruzeiro do Sul-AC, 25 de maio de 1913, Ano VIII, N.252, p.3


A MATINTA PEREIRA
Amancio Leite

Nas plagas do Juruá
Meia noite tinha dado;
A copa da samaumeira
Fitava o céu estrelado
Naquela hora silente
É quando todo vivente
Dorme o sono mais tranquilo.
Os noitibós e corujas
Se internam nas brenhas sujas
Impondo silêncio ao grilo.

Como um fantasma isolado
Entre os outros menos grandes,
Sobre as matas abre os braços,
Apontando para os andes
– Briareu do longos laços –
Vegetal, rei dos espaços,
Que produz algodão bom.
As giganteas samaúmas
Fornecem brancas espumas
Ao mar de Santos Dumont...

Moribundo estava agosto,
O rio era um esqueleto...
A praia, branco sudário,
Se achega ao barranco preto.
A noite de lua cheia,
A brisa, varrendo a areia,
Encrespa a água do rio;
E as verdejantes oiranas
Conversam co’as canaranas
Num cochichado macio!

No momento um seringueiro
Apanhava tartarugas:
A lua fitava as águas
Tremulando sobre as rugas.
Quando um funéreo assobio
Partiu do lado do rio
Que lhe irritou o cabelo!
Fê-lo parar um momento
A olhar para o firmamento,
Onde brilha o set’estrelo...

Nada viu, e prosseguindo
Sua pesca, novamente,
Quando ouviu segunda vez
O assobio estridente.
– Era a matintaperera,
Ave noturna, agoureira,
(segundo a crença indiana)
Faz estremecer nos lares
Os filhos cá dos palmares
Desta zona americana...

É alma de estranho mundo!
(Diz o mais civilizado)
– É espírito vagabundo,
Que vive desabrigado.
Quando a matinta assobia
Três vezes, nos anuncia
Que morre gente... e há choro!
Pois a mãe seringueira
São entes de mau agouro...

Jornal O Cruzeiro do Sul, Cruzeiro do Sul-AC, 1 de junho de 1913, Ano VIII, N.254, p.3


Isso, falando de poesia, e de alguns, pois havia muitos outros, ainda naquela época, e entre estes o Cantor das Selvas, o poeta nato, que sem ao menos manusear um compêndio de metrificação, fazia versos que encantavam pela sua cadência. Vejamos:

“Bem moço ainda... lá me vim a pé
Onze vezes dez léguas. Nosso trem
Um palmo não passava, então além
Desse empório que foi Baturité.

Lá nos confins soluça e sumo bem
Do lar paterno em pranto! Só a fé
Dum regresso imitante ao dá maré
Mitiga a dor do coração de “ALGUÉM”

Tudo acabou... tão longe e as minhas plantas
Não pisara, nunca mais o pátrio solo;
Caro objeto de saudades tantas.

Sacrifiquei-me ao Acre, sem preguiça...
Onde, não vive e sim vegeto e “rolo”
Entre irmão que não fazem-me justiça!”

(Amancio Leite – Vozes do Veterano e Inválido ex-seringueiro do Acre II)

Jornal O Juruá, Cruzeiro do Sul-AC, 15 de maio de 1960, Ano VII, N.111, p.2


OS CANTARES SERINGUEIROS
Amancio Leite

Eu sou seringueiro
            no rio Juruá,
Do meu Ceará
            vivo distante!
Sempre a trabalhar
            p’ra arranjar um saldo
Que tempere o caldo
            D’um escravo errante...

Todos os trabalhos
            duros, desta terra,
Em constante guerra
            são por mim vencidos...
Cá nas solidões
            cheias de maldades,
Tenho mil saudades,
dos meus pais queridos!

Mas, confio em Deus
            nosso Pai bondoso
Que serei ditoso...
            – Bem ditoso ainda! –
De voltar com saldo
            ao torrão amado
E inda ser casado
            C’o u’a moça linda...

Tal sonho dourado
            é o que eu aturo,
Penso no futuro
            se é como o presente...
Devo mais d’um conto,
            meu patrão não presta...
Já nos franze a testa
            bota-se a valente...

Que fazer? Sou preso
            na cadeia imensa
Desta mata extensa
            que já não tem fim...
Lá na minha terra
            o caso é mudado,
E o mundo é furado...
            não trancado assim!

Basta de lamentos,
            confiar em Deus,
Que os penares meus
            serão descontados;
Quando lá na Pátria
            onde fui nascido,
Farei-me esquecido
            Deste cru passado!

Este belo assunto,
            esta narração,
Vai contar então
            como se trabalha;
Como se fabrica
            essa tal borracha
Que desfaz a taxa
            de qualquer canalha...

Cá nos ermos tristes
             por onde eu trabalho,
É meu agasalho
            pequena choupana.
Em derredor dela,
            verdes, cresce em brilho,
Vinte pés de milho,
            cinco ou seis de cana.

Também tem a um lado
            grande samaumeiras
Bela e sobranceira,
            sobre a verde mata...
Atrás da cozinha
            vê-se a fumaceira
Junto a uma touceira
            de banana prata.

Em Abril ou Maio
            Saio ao barracão
É grosso o pancão...
            me empelho dez dias...
Quando volto ao centro
            eu, e mais pessoas,
A remar canoas
            com mercadorias...

Finda a viagem
            muito perigosa...
Muito trabalhosa...
            chego em certo porto
Onde desembarco
            minha aviação...
Gemo como um cão:
            “de remar estou morto!”

Mas, que importa isto?...
            amanhã eu entro
Para meu longe centro...
            – carga sobre a costa –
Sigo pensativo,
            transpondo ladeiras
– Dessas brincadeiras
            pouca gente gosta! –

Meio dia andando
            para o rancho querido,
Chego bem moído...
            enervado e teso!
No fim do soalho
            boto a carga abaixo,
Nisto, livre me acho
            do enfadonho peso...

Tiro a blusa fora,
            corro o meu roçado,
Vejo prosperado
            todo o meu legume
Volto para a barraca
            cheio de prazer
Trato de fazer
            logo fogo ao “lume”.

Vejo se tem pó,
            vou fazer café;
Antes um chibé
            tomo por primeiro:
Eis um alimento
            muito apreciado
Pelo degredado
            triste seringueiro!

Em seguida ao “moka”
fumo o meu cigarro;
E a barraca varro;
            – Pois “gunverno” ali... –
Uso – por vassoura –
            também – por capacho –
O pendão dum cacho
            chocho de açaí...

Desembalo a carga,
            vou tomar um banho;
Que calor tamanho
            aqui nos flagela!
De roupa mudada
            fico mais bonito...
De café repito
            logo outra tigela...

Compõe-se a barraca
            – de dois seringueiros –
De dois mosquiteiros
            metidos nas redes!
Tosca choupaninha
            muito bem coberta...
Quase sempre aberta...
            não possui paredes. –

Facas com bainhas!
            O rifle e espingarda
Se azeita e se guarda
            zelados polidos...
Em contraste a isso
            vê-se dois terçados,
Muito enferrujados
            na palha metidos.

A mesa de jantar...
            – de couro de veado –
Está ali pendurado,
            juntinho à toalha...
Ou quando não este,
nota-se uma esteira
D’olho da palmeira,
bem trançada a palha.

Deitado ao soalho
            meu machado “tumba”
Dentro dum zabumba
            da paxiubeira,
Meu pequeno pote
            cheio d’água fria
Mesmo ao meio dia
            Sempre foi geleira...

Todos os artigos
            de necessidade,
Eu, mais meu “cumpade”
            Zeca Ciríaco,
Vamos transportando
            pra nossa choupana
Nos confins de semana
            Cada um com um saco.

Eu, na minha terra
            nunca levei murro...
Mas aqui, sou burro!
            – me virei em bicho!...
Pois meu jamaxi
            com a sua testeira,
Dá-me a fucinheira...
            só falta o rabicho!
Da barraca grande
            meu leitor já sabe,
Portanto, nos cabe
            seguir outra linha:
Desça dois degraus
            – com muita cautela –
Vamos à panela
            que está na cozinha.

Ei-la sobre a trempe;
            ferve com macaco.
“Cumpade Ciríaco”
            não come feijão:
Já eu, como tudo...
            não reservo nada...
Pra mim, lesma assada
            – faz de requeijão!

Vou lá ter vontade!...
            nesta sepultura...
Como até mucura...
            – só não como é cru! –
“Deixei” de ser onça...
            Pra andar com “manobra”.
Só não como é cobra
            mais mestre urubu!

Mas, o comprimento
            deste humilde canto
Já secou meu pranto
            já meu deu o riso...
Meu leitor amigo
            como tu não dormes
Mais alguns informes
            nos serão precisos...

Queira acompanhar-me
            dez ou doze passos:
– Sem cruzar os braços –
            “sem pisar no chão...”
Minha fumaceira,
            Meu defumador
– Feito com rigor –
            não é longe, não.

Ele é pequenino
            “mas-porém” é rico,
Meu vizinho Chico
            não tem um assim!
Cabra preguiçoso...
            cabra sapupema
Sempre foi panema
            seringueiro ruim!

Eu já lhe avisei
            que tenha cuidado
Se não “enrolado”
            vai ser qualquer dia...
O “cabra é toqueiro”
            porém, não escapa,
Lhe enrolo na capa,
            de minha bacia!

No Chico Calangro
            Mais Joaquim Caçote,
Vou passar capote
            quer queiram quer não.
Eles dois não “drôme”
            Toda a noite é pouca...
Os passos na boca
            deste meu “boião”!

Minha fumaceira
            de palha jaci,
Ou ouricuri,
            com caibros no chão.
Pra esbarrar o vento
            se tapa em “redó”:
Tem uma porta só
            e no centro o boião.

Tornos da bacia
            fincados com jeito
Ao lado direito
            ao alcance da mão...
Grade, prancha e cuia,
            cavador, sarilhos,
Eis os “atencilhos”
            da difumação.

Depois disto dito,
            nós vamos à estrada,
Que já está roçada,
            que entigelo e sangro.
Ela dá dez frascos,
            a menor dá oito...
Desafio afoito,
            Chico de Calangro!

Ele tem um “rosso”!
            este meu vizinho
Pelo machadinho
            Julga-se pesado!
Vou dar-lhe uma “marcha”
            de bicho turuna...
Que ele se “arripuna”
            para andar calado!

Só não desafio
            Zeca Papagaio,
Pois começa em Maio
            e não perde um dia!
Corta sete meses
            pesa mil e tantos
– Tem por ele, os santos
            e a Virgem Maria...

Ou então é “pauta”
            com o “cabra-velho”!
Que criou chavelho
            em lugar de cr’ao!
Credo! Ave Maria!
            “qui cabôco” frouxo!
Para o “vei-cão cocho”!
            tem sua alma boa!

Bonito é o regímen
            dum bom seringueiro;
Ele e o companheiro
            – marcam certo a hora –
Desprezando as redes
            e o prazer do sono;
São dois cães sem dono...
            Partem, vão se embora.

Sucessivamente,
            tal se dá comigo:
Essa regra eu sigo
            com prazer e amor!
Madrugada cedo
            sou atormentado
Pelo cão danado –
            do despertador!

Este “galo-disco”
            das tripas de ferro,
Quando solta o berro
            não quer mais parar...
Me espreguiço e benzo,
            me levanto logo,
Vou fazer o fogo...
            trato de almoçar...
Um café de frasco,
            preto como tinta.
Cuja borra pinta
            dentro da tigela
Uma catacumba,
            um navio, ou barca,
Uma igreja, ou arca
            mausoléu, capela...

Eu e meu amigo
            caro companheiro,
Bravo seringueiro,
            chamado José,
“Embocamos” tudo
            – com prazer, sem luxo –
Para a “pá” do buxo
            carnes e café!

Terminada a “bóia”
            meu cachimbo fumo,
Cada qual, seu rumo
            parte diligente;
Chega na madeira,
            corta, e com cautela
Embute as tigelas
            segue novamente...
Neste desempenho,
            de cachimbo ao queixo,
Balde e saco deixo
            onde se bifurca
Minha extensa estrada
            tão cheia de dobras...
Onde sobre cobras
            já dancei mazurka!

Nesses labirintos
            ou montanhas Russas,
Faço escaramuças
            na função do corte.
Posto, que cansado,
            não me sinto fraco!
Já nalgum macaco
            tenho dado a morte...

Finalmente, alcanço
            esse entroncamento
Que o povo – “Zé-Bento”
            – cá da minha laia –
Findamos o corte,
            chamamos de “feixo”,
Onde o balde deixo
            mal a aurora raia.

Lá me vou de novo
            pelo “labirinto”...
Já cansadas sinto
            Minhas fortes pernas...
Infeliz da mãe
            desse visionário
Que transpõe diário
            mais de cem cavernas!

Pelas duas horas
            chego na barraca,
Boto abaixo a maca
            vou tomar café.
Como alguma cousa
            pá forrar o peito:
Isso já tem feito
            meu cumpade Zé!

Acendo o cachimbo
            “e o meu leite aqueço”:
Logo no começo
            defumo um sapato:
Eis nosso calçado
            que aqui se gasta.
Só um par não basta
            para a estrada e o mato!

E a borracha rola
            sobre este cachimbo
Que vomita um nimbo
            lambiscando o teto.
Petrifico o leite
            da colheira diurna,
Dentro dessa furna
            própria dum inseto...

E a borracha cresce
            sucessivamente,
Na fumaça quente,
            crosta sobre crosta:
Vai avolumando
            qual balão tufado.
“Fico azucrinado”
            “quando a bixa tosta”!

Passo duas horas
            bem atarefado
Nesse humilde fado,
 mas, apetecido!
Pois, borracha é chave
            que destranca a porta
Dessa via torta
            do torrão querido!

Finalmente acabo:
            sobre a tábua lisa
Rebolo a camisa
            do bolão de oitenta...
Ponha a marca de ferro.
            (nos cobres me monto!)
Dívida dum conto?...
            comigo não aguenta...

Saco a blusa fora
            (tenho o corpo quente)
Assovio contente
            polkas, walsas, “chotes”,
Preparando a “bóia”
            penso nos vizinhos
Ambos, – coitadinhos –
            estão nos meus capotes!

Me sinto contente
            pelo dia ganho,
Vou tomar meu banho
            pra poder jantar.
E depois que janto
            deito na maqueira
Pra desta maneira
            eu poder cantar:

“Sou bom seringueiro,
            – mas não sou poeta! –
Minha predileta
            é a seringueira...
Vivo tão distante!
            Triste e degredado
Do meu berço amado
            “Maria Pereira!”

Repito de novo
            vivo desterrado,
Errante e isolado
            nesta zona infinda...
Mas espero em Deus
            que inda voltarei,
E me casarei
            com u’a moça linda!

*
* *

Agora leitor
            – da classe letrada –
Tu leste a “embolada”
            do meu cantador?...
De certo que sim:
            pois bem, foi verdade…
Cá na majestade
            das selvas sem fim
Também tem quem cante...
            (Natos trovadores)
Também tem atores...
            – Não vês o japiim?!

* *
*

(Melhorado: 1930).


LIMA, Francisco Peres de. Folk-lore Acreano. Rio de Janeiro: Brasília Editora-Rio, 1938. p.2744


MAPINGUARY*
Amancio Leite

Certo seringueiro, um dia
Chegou correndo da estrada
Na qual, há tempos não ia,
Não trouxe leite que desse
Para melar a bacia!

Chegou cedo, muito cedo;
Antes da hora marcada,
Seu companheiro ainda andava
Lá pela volta da estrada.
Fez assim, só porque dera
Uma carreira danada!

O triste vinha afrontado,
Verde-amarelo e sem fala!
Saltando dentro de casa
Deitou-se em meio da sala.
Seu rifle de doze tiros
Não trazia uma só bala!

Que teria acontecido
Com aquele pobre rapaz!
Se teria ele esbarrado
Com o velho satanás?
Talvez, depois saberemos
Quando chegar Zé Thomaz.

Zé Thomaz - o companheiro
Chegou, depois de uma hora.
Quando o viu, gritou de longe:
- “Que foi ‘seringueiro espora?!’
Teria você ‘encontrado’
Mapinguary ou caipora?”

“- Encontrei mapinguary:
(Respondeu-lhe João Tomé)
Me ‘atrepei’ numa ‘pupunha’
Com as alpargatas no pé...”
“- Então me conte ‘direito’
como esse danado é!”

“- Ele é maior que um boi
Daqueles do rio da Prata...
Chega ‘estremecia’ a mata...
Fez-me ‘atrepa’ na ‘pupunha’
Calçando as alpargatas!”

“- Mas rapaz... será ‘possível’
Que não deste ‘ao menos’ um tiro?...”
“- Ora, eu não dei... dei só doze!
Mas, de que mais me admiro
É ‘que ele’ fez tanta conta
Que não mudou nem de giro!”

“- Mas onde foi que encontraste
Tamanha ‘fera’ de fama?...”
“- Foi no ‘cabeço’ da volta
Junto à madeira da ‘cama’
Cá mais atrás, eu vi, ‘fresco’
O rasto dele na lama...”

“- Esse bicho é cabeludo
E todo cheio de escama?”
“- Eu lá pude ‘reparar’
Pra esse ‘filho de mulher-dama’?
Que além de ser muito feio
É todo cheio de trama!...”

“- E o resto dele, como é?
Se parece com o de burro?”
“- Parece, mas é maior!
E se tu lhe visse o ‘esturro’!...
Eu penso que aquele... figa,
Mata as ‘onça’só de murro.”

“- Que vê, ‘vamo’ quinta-feira
Que é dia que ninguém corta...
Hoje é segunda e é das ‘arma’
(Santo pra quem tem mãe morta)
Tu vai só vê o ‘esfolado’
Na baixa da ‘ponte-torta’...”

“- Eu tava ‘cuiendo’ o leite
Da madeira do ‘cabeço’
Quando vi um grito longo
‘Como’ outro não conheço!
Me deu um tremor nas perna
Que quase a terra eu não desço...”

“- Mas, afinal desci sempre
Me assustando de Cupim!
Rifle com bala na agulha
Mão no cabo do ‘ispadim’.
Quando eu cheguei debaixo
Ele gritou mesmo assim
Desta vez foi ‘redobrado’
Gargalejando no fim!”

“- Eu armei o ‘pau-furado’
Me encostei na ‘seringueira’
Quando o monstro ‘pretejou’
Eu pensei que era um bandeira...
Baixei a bala pra cima...
Mas qual José. Foi ‘besteira’!”

“- Enquanto o cão coça o olho
Dei dez tiros no danado...
Mas ele, nem ‘mode’ coisa!
Nem ficou ‘arrepiado’
Continuou avançando
No meu rumo, me provando
Que tinha o ‘corpo-fechado’.”

“- Aí dei-lhe mais dois tiros.
Pronto! O rifle virou pau...
Meus cabelos espencaram
As pernas virou mingau...
Meti a mão na poltrona,
Nem uma bala, sinhá dona,
Danou-se seu ‘Nicolau’.”

“- Aí, eu vi ‘que morria...’
- A coisa tava amarela! –
Na ‘madeira’ eu não subia
Pois é de sete tigelas
Chorei de ser seringueiro...
‘Cacei’ os dois ‘companheiros’
Já tavam no ‘pé-da-goela’!”

“- Me pus de trás da ‘madeira’
Me deitei rés com o chão.
‘Me peguei’ com São Francisco
De todo o meu coração...
(Mas, o lá do Canindé!)
Nisto, o bicho pois-se em pé
Olha lá o estirão!...

Tanto é alto ‘como’ é grosso
O renegado ‘Mapim’
Eu me pegava com os santos
Não da ‘fé’ ele de mim!
Oh! Que aperto... que agonia...
Meu... - aquele - não cabia
Nem um talo de capim...!”

“- Ele ‘arreganhou’ as unhas
E me arranhou a ‘madeira’!
Nisto, eu me ergui e corri
Pro pé da ‘Tucumanzera’;
Nesta, - ‘calcule você’ –
Subi mais depressa que
‘Largatixa’ em cajazeira!”

“- Ele só fez ‘espiar’!
Mas nem ligou-me ‘importância...’
Se não fosse o São Francisco,
- Adeus ‘história’ adeus dança! –
Quem diabo a coisa contava?...
Porque nesta hora eu tava
No ‘porão’ daquela pança!...”

*Este poema foi retirado do blog Almanacre, de Elson Martins.

Um comentário:

  1. Ele é o autor do PAI NOSSO DO SERINGUEIRO e da ACE MARIA DO SERINGALISTA. o eNSON TEM O LIVRETO,

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"Quando se sonha só, é apenas um sonho, mas quando se sonha com muitos, já é realidade. A utopia partilhada é a mola da história."
DOM HÉLDER CÂMARA


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