quarta-feira, 3 de julho de 2019

A MORTE DO RIO

Geraldo Brasil

Espumas esbranquiçadas de bordas sangrentas
cobriam a superfície do rio.
Motivos não faltavam, mas o rio seria mudo
se pequenos murmúrios não acompanhassem
o deslizar manhoso de suas águas poluídas.

Aproximei-me da margem: crianças encardidas,
contrapondo reentrâncias à palidez dos rostos,
transportam os últimos peixes no inchaço da morte.

É verdade, naquele rio passaram-se a infância
e os limites de muitos filhos de Deus.
Coronéis de corrente de ouro,
de damas inúteis,
de lavadeiras pálidas,
de bichos esquisitos que eu nem classifico,
saltimbancos, moleques do sítio da Tijuba.

Ali, naquele rio, imaginei proezas:
marinheiro num mar azul segurando uma tábua
transformada em meu sonho numa prancha de provas.
O barco era uma canoa tímida, roliça,
sem assento e sem quilha mas destinada
a iludir o lodaçal de minhas cobranças
e dos meus instintos vagabundos.
Percorríamos distâncias em nossas rotas
que na verdade não iam além de um estirão pardacento
transformado em soberbo.
Havia comodoro, capitães e marujos.
Sargentos, para todos, era uma graduação mesquinha.
À tarde, o sol enchia o barco.
Os tripulantes irreverentes não temiam as cobras,
quando muito, os chamados de casa,
os gritos de parentes encolerizados:
no outro dia não iriam ver suas fragatas
de guarnição miúda com rebaixamento certo.
Nesse rio as minhas roupas adquiriram alvura
à custa das cunhãs que batiam tanto nelas
como se fosse em nós por causa das catimbas,
das birras e das brigas até de verdade.
Crescemos nesse rio entre peixes e cobras
que alimentavam as casas do que não tinham nada
e enchiam de considerações as mais afortunadas.
Os pescadores, tostados, pediam a nossa ajuda
e nos tratavam, matreiros,
de acordo com a patente que exibíamos.
Exibir? é demais, ninguém exibia nada
a não ser os remendos das blusas coloridas
e das calças a secar numa área arrasada
que só servia para isso.
“Este rio está morto”, dizia o pescador sem raiva,
“Botaram dentro dele as coisas do progresso,
da técnica e da Constituinte”.
O pescador não sabia que era Constituinte
mas dizia para um outro, que era pior que os venenos
que matavam os peixes e a saúde do rio.

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Um dia, quando eu cochilava mais crescido à sua margem,
um doutor perguntou sobre minhas tendências:
– Não, respondi, não como deste rio morto. Contemplo-o
a ver se noto alguém que inda chore por ele. –
O doutor alisou os bigodes (ele usava bigodes)
e disse que era um mal.
Chamou outro doutor de gravata brilhante
e este acrescentou que era um mal necessário.
Fiquei além do mal e das necessidades.
Levariam o caso à decisão da Corte
de onde surgem as soluções equivocadas ou surpreendentes.
A Corte não tomou conhecimento do meu rio moribundo,
mas o homem continuou a olhar para os bigodes
e o doutor de brilhante foi demitido da Corte:
suas injustiças tinham sido catalogadas rigorosamente
(segundo os noticiários)
e já haviam atingido a cifra de dezoito mil.
Meses depois o rio morreu completamente.
Retornei de vez a casa
como se caminhasse também para a morte.
Uma líquida certeza tomou conta de minha cabeça
e de todos os meus instantes
que se fizeram eternos.
Mas, ao longe,
onde os sorrisos se devolviam e se dissolviam
e os discursos acalentavam e eram disputados até no tapa...
num lugar onde os homens frequentavam a Corte
e se cruzava, besteiras,
comemorava-se a vitória da fábrica “Humanismo Audaz”,
e os foguetes eram tantos
que clarearam por momentos
os volteios solitários do rio
cansado de passar
sem peixes, para a morte...
Morto.


BRASIL, Geraldo Freire. O rosto do povo. São Paulo: Editora Moraes, 1988. p.71-73

GERALDO Freire BRASIL nasceu em Tarauacá – AC, onde iniciou seus estudos que foram concluídos no Colégio Dom Bosco, localizado na cidade de Manaus. Graduado em Ciências Humanas, em Belo Horizonte – MG, exerceu a profissão de jornalista em várias cidades da região Norte, com destaque para Porto Velho, Belém e Rio Branco. Criador da revista “Observador Amazônico” (1980), que priorizava os problemas que caracterizavam a Amazônia nos aspectos socioambientais, históricos, culturais, geográficos e turísticos. Membro da Academia Acreana de Letras, na cadeira de nº 7; e membro da Associação Paraense de Escritores. Exerceu cargos administrativos diversos, dentre os quais ressaltamos: funcionário do Território Federal do Acre e Chefe de Polícia. Em Minas Gerais, integrou o grupo que fundou o Clube do Cinema e foi um dos fundadores da Sociedade Musical “Claude Debussy”, responsável pela ida a Belo Horizonte de Heitor Villa-Lobos, em 1947.

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