Espumas esbranquiçadas
de bordas sangrentas
cobriam a
superfície do rio.
Motivos não
faltavam, mas o rio seria mudo
se pequenos
murmúrios não acompanhassem
o deslizar manhoso
de suas águas poluídas.
Aproximei-me da
margem: crianças encardidas,
contrapondo reentrâncias
à palidez dos rostos,
transportam os
últimos peixes no inchaço da morte.
É verdade, naquele
rio passaram-se a infância
e os limites de
muitos filhos de Deus.
Coronéis de
corrente de ouro,
de damas inúteis,
de lavadeiras
pálidas,
de bichos
esquisitos que eu nem classifico,
saltimbancos,
moleques do sítio da Tijuba.
Ali, naquele rio,
imaginei proezas:
marinheiro num mar
azul segurando uma tábua
transformada em meu
sonho numa prancha de provas.
O barco era uma
canoa tímida, roliça,
sem assento e sem
quilha mas destinada
a iludir o lodaçal
de minhas cobranças
e dos meus
instintos vagabundos.
Percorríamos distâncias
em nossas rotas
que na verdade não
iam além de um estirão pardacento
transformado em
soberbo.
Havia comodoro,
capitães e marujos.
Sargentos, para
todos, era uma graduação mesquinha.
À tarde, o sol
enchia o barco.
Os tripulantes
irreverentes não temiam as cobras,
quando muito, os
chamados de casa,
os gritos de
parentes encolerizados:
no outro dia não
iriam ver suas fragatas
de guarnição miúda
com rebaixamento certo.
Nesse rio as minhas
roupas adquiriram alvura
à custa das cunhãs
que batiam tanto nelas
como se fosse em
nós por causa das catimbas,
das birras e das
brigas até de verdade.
Crescemos nesse rio
entre peixes e cobras
que alimentavam as
casas do que não tinham nada
e enchiam de
considerações as mais afortunadas.
Os pescadores,
tostados, pediam a nossa ajuda
e nos tratavam,
matreiros,
de acordo com a
patente que exibíamos.
Exibir? é demais,
ninguém exibia nada
a não ser os
remendos das blusas coloridas
e das calças a
secar numa área arrasada
que só servia para
isso.
“Este rio está
morto”, dizia o pescador sem raiva,
“Botaram dentro
dele as coisas do progresso,
da técnica e da
Constituinte”.
O pescador não
sabia que era Constituinte
mas dizia para um
outro, que era pior que os venenos
que matavam os
peixes e a saúde do rio.
.........................................................................................
Um dia, quando eu
cochilava mais crescido à sua margem,
um doutor perguntou
sobre minhas tendências:
– Não, respondi,
não como deste rio morto. Contemplo-o
a ver se noto
alguém que inda chore por ele. –
O doutor alisou os
bigodes (ele usava bigodes)
e disse que era um
mal.
Chamou outro doutor
de gravata brilhante
e este acrescentou
que era um mal necessário.
Fiquei além do mal
e das necessidades.
Levariam o caso à
decisão da Corte
de onde surgem as
soluções equivocadas ou surpreendentes.
A Corte não tomou
conhecimento do meu rio moribundo,
mas o homem
continuou a olhar para os bigodes
e o doutor de
brilhante foi demitido da Corte:
suas injustiças
tinham sido catalogadas rigorosamente
(segundo os
noticiários)
e já haviam
atingido a cifra de dezoito mil.
Meses depois o rio
morreu completamente.
Retornei de vez a
casa
como se caminhasse
também para a morte.
Uma líquida certeza
tomou conta de minha cabeça
e de todos os meus
instantes
que se fizeram
eternos.
Mas, ao longe,
onde os sorrisos se
devolviam e se dissolviam
e os discursos
acalentavam e eram disputados até no tapa...
num lugar onde os
homens frequentavam a Corte
e se cruzava,
besteiras,
comemorava-se a
vitória da fábrica “Humanismo Audaz”,
e os foguetes eram
tantos
que clarearam por
momentos
os volteios
solitários do rio
cansado de passar
sem peixes, para a
morte...
Morto.
BRASIL, Geraldo
Freire. O rosto do povo. São Paulo: Editora Moraes, 1988. p.71-73
GERALDO Freire
BRASIL nasceu em Tarauacá – AC, onde iniciou seus estudos que foram concluídos
no Colégio Dom Bosco, localizado na cidade de Manaus. Graduado em Ciências
Humanas, em Belo Horizonte – MG, exerceu a profissão de jornalista em várias
cidades da região Norte, com destaque para Porto Velho, Belém e Rio Branco.
Criador da revista “Observador Amazônico” (1980), que priorizava os problemas
que caracterizavam a Amazônia nos aspectos socioambientais, históricos,
culturais, geográficos e turísticos. Membro da Academia Acreana de Letras, na
cadeira de nº 7; e membro da Associação Paraense de Escritores. Exerceu cargos
administrativos diversos, dentre os quais ressaltamos: funcionário do
Território Federal do Acre e Chefe de Polícia. Em Minas Gerais, integrou o
grupo que fundou o Clube do Cinema e foi um dos fundadores da Sociedade Musical
“Claude Debussy”, responsável pela ida a Belo Horizonte de Heitor Villa-Lobos,
em 1947.
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"Quando se sonha só, é apenas um sonho, mas quando se sonha com muitos, já é realidade. A utopia partilhada é a mola da história."
DOM HÉLDER CÂMARA
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