domingo, 22 de setembro de 2019

LIMIARES de Gerson Albuquerque

O primeiro trabalho que li do professor Gerson Albuquerque foi o “Trabalhadores do Muru, o rio das cigarras” (EDUFAC, 2005). Esse trabalho foi muito importante para que eu pudesse ir amadurecendo o meu olhar sobre a Amazônia, pois, na contramão da “historiografia barroca”, que eu estava acostumado a ler, me deparei com outra abordagem, despretensiosa, ao passo que, perspicaz e profunda, que se insurgia pr’além das abordagens deterministas e maniqueístas: “O Rio Muru não é o mais importante afluente do Juruá, não determina a economia de lugarejo algum, não é o mais longo, muito menos o mais navegável. Não creio, também, que comande a vida de quem quer que seja, indispondo-me aqui, com os determinismos geográficos tão insistentemente cunhados por um certo tipo de historiografia que se pressupõe a interpretar a vida amazônica. Mas, às suas margens, igarapés e centros distantes, centenas de famílias vivem um cotidiano e constroem, a partir de inúmeros e complexos laços de identidade, uma cultura que, sem querer cair na vala comum do unitarismo, criando uma homogeneidade artificial, pode ser qualificada de “cultura seringueira”.” (2005, p.36).
           Em 2017, Gerson publica o seu primeiro livro de poemas, a saber, “Palavras perdidas em meios silêncios” (Nepan, 2017). Apesar de estarmos habituados ao Gerson dos textos acadêmicos, a poesia, todavia, não é algo estranho ao seu trabalho, como sintetizou a grande Ana Pizarro: “Conocíamos al Gerson analista severo de los conflictos amazónicos, conocíamos su palabra sobre el trabajo en los seringales del rio Muru en ese texto bellísimo en donde ya percebíamos al poeta. Conocíamos al Gerson cotidiano que con ojos dolidos nos enseñaba los castañales em su tránsito trágico hacia la extinción, los territorios vaciados de florestas por el avance de la ganadería. Pero también la belleza de los “buriti” que sólo conocíamos en la palabra de Guimarães Rosa. Por todo esto no nos sorprendió la existencia de este perfil paralelo, el de su poesia. Era evidente que afloraba en todos sus gestos. Entonces llegamos a estas Palabras perdidas...” 
            Aliás, “Palavras perdidas em meios silêncios”, juntamente com “O berro”, de Quilrio Farias, a meu ver, constituem os dois grandes e originais trabalhos poéticos surgidos em 2017, no Acre, marcado por tantos poetas sem poesia, que se empanturram de palavras na construção de uma literatura esvaziada de e da vida, “entupidas de farofa de nada”. O livro reúne poemas escritos ao longo dos últimos 25 anos do poeta: “Tecidas no orvalho de muitas madrugadas não dormidas, umas e outras foram faladas. (...) São palavras pós-escritas porque brotadas feito o voo da coruja, após toda uma multiplicidade de vivências vividas na instável condição humana, entranhadas em comprometimentos de seus espaços/tempos próprios”. 
           Agora, dois anos depois de “Palavras perdidas em meios silêncios”, Gerson Albuquerque apresenta ao público o seu “Limiares: manuscrito para um não-livro – nem uma coisa, nem outra” (Nepan, 2019), um livro híbrido que reúne poemas, resenhas, crônicas e contos. Um “não-livro” de um “não-poeta em alucinantes cotidianos magros”. 
            “Limiares” é um livro com gosto e cheiro de gente, das Amazônias, tecido com as dores e as utopias, “inundado de vontades ávidas”, apesar desse tempo do “amor desempregado”. 
            Em seus poemas, por exemplo, perpassa um silêncio. Que silêncio é esse? É, talvez, um silêncio destituído de significados, signos, todavia, grávido de sentidos. 
            O olhar de Gerson é original porque tem aquela agudeza capaz de perscrutar o mais íntimo da gente e da realidade social. Seus escritos revelam sua preocupação e seu compromisso político-sócio-cultural, ao mesmo tempo em que aprofunda/interroga/alarga o próprio sentido da existência. Sua poesia descortina esse “vazio que sangra no interior da gente”, esse “protocolo carente de sentido” em que temos nos transformado. É, antes de tudo, uma escrita de resistência. 
          Esse livro nos permite adentrar ainda mais aos limiares da morada de Gerson Albuquerque, partilhar da agudeza e da generosidade do olhar do poeta, do contista, do cronista e do resenhista, amalgamados na multiplicidade de um mesmo ser humano que, tecendo palavras, é capaz de renovar as utopias.
            I.M.
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“A poesia ainda é mais combate, porque é uma postura ética. Isso incomoda. Aposto que o Gerson Albuquerque não é muito querido por suas palavras perdidas em meios silêncios. Com certeza prefeririam que não houvesse nem palavras nem silêncios. Mas que fazer? Tem gente (sim, tem gente) que ainda sente dor e, se der tempo, consegue sorrir e amar. Cada palavra perdida salva uma vida do silêncio.”
Aldisio Filgueiras
da Apresentação de Palavras perdidas em meios silêncios
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“O universo poético gersoniano alça voos intangíveis, pois os planos de uma concretude incontestável tornam-se imagens singulares e plurais, que cindem as fronteiras da compreensão limitada e rotineira dos cotidianos para pôr em reflexão enlevada as fendas possíveis, incrustadas nos homens e mulheres – transeuntes que, nas tranças e transas poéticas, erotizam formas e amargam solidões. Assim, não há estrelas mortais ou Nêmesis a incendiar as sobras de uma indigência, que clama por justiça, que, angustiadamente, reclama das injustiças, e que, final e poeticamente, ascendem para os planaltos dos seres, que grafam e grifam na eternidade a dor, a saudade, a lágrima e o esquecimento do Outro. E o que é a poesia senão esta corda que, esgarçada para o Alto, arrebenta, espetacularmente, abrindo leitos de sangue, feridas dolorosas e cicatrizes sempre abertas?”
João Carlos de Souza Ribeiro
do Prefácio de Palavras perdidas em meios silêncios


Do livro PALAVRAS PERDIDAS EM MEIOS SILÊNCIOS (Nepan, 2017) 


Minha fratria

Carrego comigo um rosto insepulto de mulher
um gosto amargo de casca de amarelão
Uma cidade que finge cintilando mentiras coloridas
luzes artificiais
praças
monumentos a ladrões de terras
e assassinos de índios

Nasci em Manaus
e nem sei o gosto das águas sujas do rio Negro
Sei que o mar passa longe
e que essa Paris de puta sem dentes
é minha fratria

Carrego comigo um par de pernas finas
um bucho de lombriga e farofa de nada
A eterna tristeza de um olhar cindido
entre o campo de pelada do Baré
o Bairro de Flores
o tabaco mascado de minha avó
e as ladeiras descarnadas da Volta Seca p.19


Não dormidas

Um corpo estático
silêncio de tuas longas noites
Pés descalços meus olhos em chamas p.49


Ode a um prefeito

Todo dia é assim
Prefeito
feche os portões
o portal do céu
a boca do inferno

Chame os seguranças mortos
faça a autópsia
recolha suas armas enferrujadas
suas balas de borracha
espoletas

Oculte suas mentiras
as sobras de seus pratos feitos

Acione a polícia
chegaram os bêbados
os maconheiros
as crias do demônio

Essas crianças mal paridas
cagadas de medo
de tuas bíblias gratuitas
tuas infâmias
teus doutores orando ciência p.77


Retóricas

Meu manifesto é uma dor
oposto ao desamor p.95


Corpo de baile

Desejei naquele vão de teatro
teus olhos ocultos
entre pernas e saias do corpo do baile

Vermelhos
teu batom
tua boca
teu vestido

Pervertidas
minha alma
meus delírios
minha inquieta solidão

Versos brotando aos teus ouvidos
mãos despertando sentidos

Sonhei teu corpo se abrindo
tuas entranhas
tuas pupilas
tuas pernas intranquilas

Verbos penetrando tua alma
encravando-se
na profundidade de tua pele p.129


Do livro LIMIARES: MANUSCRITO PARA UM NÃO-LIVRO – NEM UMA COISA, NEM OUTRA (Nepan, 2019). Agradecemos ao autor por nos ceder gentilmente, e em primeira mão, excertos do livro para, aqui, serem publicados.


Recusa

Ando enojado de agentes públicos,
assembleias servis,
verdades técnicas,
simulacros instituídos.
Ando manco,
o corpo moído,
mas armado pra estupidez cínica de meus ímpares.
Ando engasgado com tudo isso
e mais aquilo das nuvens
e vaidades espalhadas em grupos e redes sociais.
E como não tenho alma,
digo não com o corpo em riste,
sangue nos olhos e as mãos em chamas.
(17/6/17)


Violências cotidianas

Todas as vezes que como carne de gado
sinto o amargor do sangue
a escorrer pelos cantos de minha boca:
sangue de Valdizas,
Odílias,
Wilsons,
Josés,
Chicos.
E me acompanha o espectro da cumplicidade.
(15/9/17)


Pedaços da madrugada passada

Sentei no sol da noite
e um quarto de lua soluçou
restos de prata em meus olhos.

O sol da manhã dormiu no profundo da noite,
incendiando as margens insólitas de minha cama.

Sem lugar pra aportar,
meus amores são partidos.

No amanhecer de hoje,
a noite dançou em mim.

Na claridade da noite,
dança um beija-flor.
Grudado na beira da madrugada,
criei raiz de solidão.

No desencontro da noite,
uma coruja instalou sono de grilo
sussurrando meu desabandono.
(11/8/18)


Sonhos e escritas

Sonhei ser poeta,
inventor de metáforas suaves pras moças de minha rua,
entupidas de farofa de nada,
e para seus irmãos, deserdados pretos, apodrecendo em abarrotadas cadeias públicas.

Sonhei andando pelos bares,
beijando soleiras, mijando postes, mordendo assoalhos no fecundo momento em que subempregados passavam espremidos em paus-de-arara,
para a construção servil.

Sonhei tecendo insípidas escritas
aos amores de cada esquina,
desfalecidos por minhas promessas torpes
inscritas em seus corpos,
enquanto minhas irmãs, engravidadas de fantasias e fantasmas, atravessavam a cidade em entupidos coletivos sujos, roubadas no troco e na borboleta.

Sonhei palavras doces
pra uma imagem herdada da infância,
entre febres de sarampo e frieiras,
imaginando viagens
nos banzeiros dos batelões no Porto de Dona Odete
e nas asas dos aviões no Aeroporto Salgado Filho.

Morri ali,
não-poeta em alucinantes cotidianos magros,
inundado de vontades ávidas,
escritas de palavras silenciosas e outras coisas inúteis.
(3/2/18)


JOANA
Gerson Albuquerque

“Eu mato minha filha e me mato”, pensou Joana Maria e Paiva olhando para o vai-e-vem de hóspedes que entravam e saíam do Hotel Chuí, em meio à umidade e ao calor do inverno amazônico.
Engravidara de um fantasma e, revelada por uma aparição na noite anterior, sabia que se tratava de uma menina.
“Fantasma de três pernas”. Comentou zombeteira, uma amiga de escola. Mas, Joana não lhe deu nenhuma atenção. Sempre ouvira que gente como ela somente tinha direito a não ter direitos e, em contendas com sua índole, passara a assumir essa sentença envolta em um tom de indignada ironia.
Nem bem completara dezesseis anos e não poderia voltar pra casa dos pais: jamais acreditariam na fantástica história de uma virgem engravidada.
No limiar de seu ocaso, permaneceu na rua durante toda a noite e, nas proximidades do quartel da polícia, ouviu vozes acompanhando as sombras que movimentavam a Praça Rodrigues Alves na alta madrugada. Às cinco horas, resoluta e despindo-se de todo o pudor, desceu a Avenida Getúlio Vargas em direção ao Segundo Distrito. No cruzamento com a Epaminondas Jácome, evitou olhar para o mercado municipal, na Praça da Bandeira, e se dirigiu à Juscelino Kubitschek, que unia os dois distritos da cidade, subindo e equilibrando-se no passeio do lado esquerdo da ponte metálica.
Com a intenção de aproveitar a correnteza de um rio que se alimenta de suas margens, deixou-se cair com os olhos firmes nas águas inquietas, o corpo inerte no intransitivo daqueles segundos feitos de espaço. Um corpo rasgado de lembranças, cicatrizes da vida inteira.
Nem bem os raios da luz solar alcançavam as cumeeiras das velhas casas da Rua África, flutuou em suave performance, desaparecendo entre as espumas, balseiros e terras caídas.


Referências
ALBUQUERQUE, Gerson. Trabalhadores do Muru, o rio das cigarras. Rio Branco: EDUFAC, 2005.
ALBUQUERQUE, Gerson. Palavras perdidas em meios silêncios. Rio Branco: Nepan, 2017.
ALBUQUERQUE, Gerson. Limiares: manuscrito para um não-livro – nem uma coisa, nem outra. Rio Branco: Nepan, 2019. (no prelo)

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