Estávamos em plena
estação invernosa. A intermitência das chuvas fazia o tempo frio, escuro e a
tristeza inundava a nossa imaginação… O céu fuzilado pelos raios constantes… O
sabiá cantava o seu canto melodioso, longo e insistente como quem procurasse
socorro ou desejasse quebrar a monotonia daquele ambiente… Não se viam nem se
ouviam outros pássaros, antes tão numerosos e variados… A natureza não estava
acolhedora…
Foi
nessa situação quase soturna, no Seringal Porto Franco, numa solitária barraca
localizada na clareira cercada do verde musgo da floresta densa, que teve lugar
o casamento civil de um casal de jovens. Ambos nascidos na área da borracha
onde a vida, por força de circunstâncias, era pacata e, não obstante a idade em
flor, não oferecia condições para sonhos ambiciosos… A selva compacta, na sua
elegante aparência, dominava e limitava o horizonte e as esperanças… Contudo, a
jovialidade dos nubentes fazia com que mantivessem na alma a chama do amor
sincero e a ânsia de uma numerosa prole. Era essa, a permanente aspiração e era
esse o grande e único anseio e depois… depois de criados os filhos e
desenvolvidos fisicamente, pudessem ajudar ou substituir os pais que, lenta e
gradativamente, iam perdendo as suas forças física e mental para as tarefas
rotineiras a que se habituaram: produzir borracha, extrair castanhas, plantar
para a subsistência, pescar e caçar, não como esporte ou folguedo, porém busca
de proteínas para variar a alimentação, uma vez que era difícil, naqueles
confins, a carne bovina.
Hora
crepuscular… O agricultor Joel Dantas, investido na função de Juiz de Paz,
apenas alfabetizado, tinha uma bela caligrafia, que impressionava pelos traços
firmes e simétricos, credenciando-o exercitar o ambicioso cargo. Embora de
compleição raquítica e humilde, sabia apresentar-se e transformar-se, inclusive
com a sua voz grave na celebração de matrimônio.
Ao
escrivão, também idoso e pessoa que até inspirava piedade pelo seu aspecto
físico, determinava a leitura da Ata, o que ele fazia com a voz sumida e
trêmula, principalmente nessa cerimônia em que estavam presentes convidados
vindos da cidade de Xapuri… O Juiz apresentava-se com seus cabelos em
desalinho, vestido de roupa branca amarelecida pelo tempo. O paletó curto e
apertado. Igualmente a calça de bainha e boca estreitas, suspensa até as proximidades
do peito, presa pelas fivelas de um velho suspensório preto e encolhida acima
do tornozelo, pondo à mostra as meias de cor de marrom e o sapato preto
enrugado e empoeirado, com seus cadarços em fiapos. Óculos de metal branco
seguro por uma linha escura por trás das orelhas grandes e salientes e colocado
na ponta do nariz. O noivo, vestido de branco e lenço no bolso pequeno do
paletó, caído como uma flor desabrochada. Fumava um cigarro grosso manipulado
com palha de milho, expelindo fumaça como se fora uma mini-chaminé. A fumaça e
o aroma forte inundavam a saleta onde se encontravam apertados vários
convidados. Uma mesa próxima à parede e nela os quadros de tamanho médio de São
Sebastião e São Francisco das Chagas ornamentados com fitas coloridas, também
servia de apoio ao livro de registro de casamentos. Duas velas acesas da marca
Apolinaris exalando cheiro de sebo…
O
Juiz, atento ao horário, perguntava ao noivo pela sua bem amada, que já
retardava acima do normal… O noivo displicentemente deu uma baforada, olhou
para os lados e respondeu: “Não sei não… parece que ela não qué mais não…” Os
circunstantes se aperceberam da surpresa e, além dos gestos, ouviam-se os
sussurros com a interjeição “Hum”, natural nessas ocasiões difíceis… Mesmo com
o vozerio e não obstante a ligeira surdez, o Juiz ouvia a resposta reticente e
desprendida. Toma uma iniciativa. Vai à janela onde as palhas de ouricuri da
cobertura do telhado, caídas, dificultavam a visão. E com as mãos côncavas,
próximas à boca, direcionando o som, brada com todo o seu pulmão de homem
cansado e sem citar o nome da noiva: “ESTÁ NA HORA DO CASAMENTO!”.
A
noiva, desatenta ao horário, na sua ingenuidade de moça interiorana, embora já
vestida com seu vestido alvo, o véu e a grinalda como símbolo da pureza
virginal, encontrava-se distante da barraca, desprendidamente conversando com
suas amigas. E ante aquele grito rouquenho e até lúgubre, que ecoou por toda a
floresta, espraiando-se como trovões, atende apressadamente, chegando ao local
e ofegante, cansada e o suor alterando a maquilagem da face, feita de CARMIN e
os cabelos presos com INVISÍVEIS (grampos) e sem dizer palavra, coloca-se ao
lado do noivo ansioso por aquele momento…
Os
pais da noiva, seu Manoel e dona Maria, que antes estavam preocupados com a
ausência da filha, já sorriam, o sorriso da felicidade, com a sua presença. E
na hora do “conjugo vobis”, isto é, no momento da exigência da resposta
confirmadora, parece haver um suspense, uma dúvida pelo acontecido horas antes
da cerimônia nupcial. Ao ser ouvido o sim
tradicional, viam-se sorrisos estampados naqueles rostos risonhos dos
circunstantes. E os mais afoitos disparavam seus rifles para com aqueles
estampidos ensurdecedores confirmarem o término da cerimônia.
Os
nubentes, encabulados, recebiam os cumprimentos sem fitar, com as cabeças
inclinadas, olhando o chão… Logo mais o mungunzá, o aluá, o “pé-de-moleque”, a
cachaça e o quinado amazonense da marca Rozas, faziam o deleite de quantos ali
se encontravam. A orquestra, composta de uma velha harmônica tocada pelo
Pituba, que se tornara famoso acompanhado pelo cavaquinho do João Cangula, dava
ânimo a quantos quisessem divertir-se. A luz baça das lamparinas iluminava anemicamente
a sala e seus pavios longos fumaçavam e desprendiam o odor forte do querosene “Jacaré”.
De quando em vez, os tragos de cachaça, servida em copo, corriam de boca em
boca. E como se fora o espoucar de reboujos, ouviam-se os gritos de VIVA O
NOIVO e VIVA A NOIVA… E assim, dentro da ordem e do respeito, aquela gente
simples, humilde e acolhedora, se divertia enquanto os noivos, já alta hora,
discretamente, seguindo uma tradição, se retiravam tomando o rumo de suas
barracas, onde passariam a arrulhar em seus ninhos como se fora um casal de
pombos…
KALUME, Jorge.
Crônicas do Acre Antigo. Brasília: edição particular, 1990. p.23-26
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