segunda-feira, 20 de janeiro de 2020

O CASAMENTO

Jorge Kalume (1920-2010)

Estávamos em plena estação invernosa. A intermitência das chuvas fazia o tempo frio, escuro e a tristeza inundava a nossa imaginação… O céu fuzilado pelos raios constantes… O sabiá cantava o seu canto melodioso, longo e insistente como quem procurasse socorro ou desejasse quebrar a monotonia daquele ambiente… Não se viam nem se ouviam outros pássaros, antes tão numerosos e variados… A natureza não estava acolhedora…
Foi nessa situação quase soturna, no Seringal Porto Franco, numa solitária barraca localizada na clareira cercada do verde musgo da floresta densa, que teve lugar o casamento civil de um casal de jovens. Ambos nascidos na área da borracha onde a vida, por força de circunstâncias, era pacata e, não obstante a idade em flor, não oferecia condições para sonhos ambiciosos… A selva compacta, na sua elegante aparência, dominava e limitava o horizonte e as esperanças… Contudo, a jovialidade dos nubentes fazia com que mantivessem na alma a chama do amor sincero e a ânsia de uma numerosa prole. Era essa, a permanente aspiração e era esse o grande e único anseio e depois… depois de criados os filhos e desenvolvidos fisicamente, pudessem ajudar ou substituir os pais que, lenta e gradativamente, iam perdendo as suas forças física e mental para as tarefas rotineiras a que se habituaram: produzir borracha, extrair castanhas, plantar para a subsistência, pescar e caçar, não como esporte ou folguedo, porém busca de proteínas para variar a alimentação, uma vez que era difícil, naqueles confins, a carne bovina.
Hora crepuscular… O agricultor Joel Dantas, investido na função de Juiz de Paz, apenas alfabetizado, tinha uma bela caligrafia, que impressionava pelos traços firmes e simétricos, credenciando-o exercitar o ambicioso cargo. Embora de compleição raquítica e humilde, sabia apresentar-se e transformar-se, inclusive com a sua voz grave na celebração de matrimônio.
Ao escrivão, também idoso e pessoa que até inspirava piedade pelo seu aspecto físico, determinava a leitura da Ata, o que ele fazia com a voz sumida e trêmula, principalmente nessa cerimônia em que estavam presentes convidados vindos da cidade de Xapuri… O Juiz apresentava-se com seus cabelos em desalinho, vestido de roupa branca amarelecida pelo tempo. O paletó curto e apertado. Igualmente a calça de bainha e boca estreitas, suspensa até as proximidades do peito, presa pelas fivelas de um velho suspensório preto e encolhida acima do tornozelo, pondo à mostra as meias de cor de marrom e o sapato preto enrugado e empoeirado, com seus cadarços em fiapos. Óculos de metal branco seguro por uma linha escura por trás das orelhas grandes e salientes e colocado na ponta do nariz. O noivo, vestido de branco e lenço no bolso pequeno do paletó, caído como uma flor desabrochada. Fumava um cigarro grosso manipulado com palha de milho, expelindo fumaça como se fora uma mini-chaminé. A fumaça e o aroma forte inundavam a saleta onde se encontravam apertados vários convidados. Uma mesa próxima à parede e nela os quadros de tamanho médio de São Sebastião e São Francisco das Chagas ornamentados com fitas coloridas, também servia de apoio ao livro de registro de casamentos. Duas velas acesas da marca Apolinaris exalando cheiro de sebo…
O Juiz, atento ao horário, perguntava ao noivo pela sua bem amada, que já retardava acima do normal… O noivo displicentemente deu uma baforada, olhou para os lados e respondeu: “Não sei não… parece que ela não qué mais não…” Os circunstantes se aperceberam da surpresa e, além dos gestos, ouviam-se os sussurros com a interjeição “Hum”, natural nessas ocasiões difíceis… Mesmo com o vozerio e não obstante a ligeira surdez, o Juiz ouvia a resposta reticente e desprendida. Toma uma iniciativa. Vai à janela onde as palhas de ouricuri da cobertura do telhado, caídas, dificultavam a visão. E com as mãos côncavas, próximas à boca, direcionando o som, brada com todo o seu pulmão de homem cansado e sem citar o nome da noiva: “ESTÁ NA HORA DO CASAMENTO!”.
A noiva, desatenta ao horário, na sua ingenuidade de moça interiorana, embora já vestida com seu vestido alvo, o véu e a grinalda como símbolo da pureza virginal, encontrava-se distante da barraca, desprendidamente conversando com suas amigas. E ante aquele grito rouquenho e até lúgubre, que ecoou por toda a floresta, espraiando-se como trovões, atende apressadamente, chegando ao local e ofegante, cansada e o suor alterando a maquilagem da face, feita de CARMIN e os cabelos presos com INVISÍVEIS (grampos) e sem dizer palavra, coloca-se ao lado do noivo ansioso por aquele momento…
Os pais da noiva, seu Manoel e dona Maria, que antes estavam preocupados com a ausência da filha, já sorriam, o sorriso da felicidade, com a sua presença. E na hora do “conjugo vobis”, isto é, no momento da exigência da resposta confirmadora, parece haver um suspense, uma dúvida pelo acontecido horas antes da cerimônia nupcial. Ao ser ouvido o sim tradicional, viam-se sorrisos estampados naqueles rostos risonhos dos circunstantes. E os mais afoitos disparavam seus rifles para com aqueles estampidos ensurdecedores confirmarem o término da cerimônia.
Os nubentes, encabulados, recebiam os cumprimentos sem fitar, com as cabeças inclinadas, olhando o chão… Logo mais o mungunzá, o aluá, o “pé-de-moleque”, a cachaça e o quinado amazonense da marca Rozas, faziam o deleite de quantos ali se encontravam. A orquestra, composta de uma velha harmônica tocada pelo Pituba, que se tornara famoso acompanhado pelo cavaquinho do João Cangula, dava ânimo a quantos quisessem divertir-se. A luz baça das lamparinas iluminava anemicamente a sala e seus pavios longos fumaçavam e desprendiam o odor forte do querosene “Jacaré”. De quando em vez, os tragos de cachaça, servida em copo, corriam de boca em boca. E como se fora o espoucar de reboujos, ouviam-se os gritos de VIVA O NOIVO e VIVA A NOIVA… E assim, dentro da ordem e do respeito, aquela gente simples, humilde e acolhedora, se divertia enquanto os noivos, já alta hora, discretamente, seguindo uma tradição, se retiravam tomando o rumo de suas barracas, onde passariam a arrulhar em seus ninhos como se fora um casal de pombos…

KALUME, Jorge. Crônicas do Acre Antigo. Brasília: edição particular, 1990. p.23-26

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