domingo, 17 de maio de 2020

A LENDA DE BOIAÇU NA AMAZÔNIA

A lenda de Boiaçu[1] na Amazônia

Constant Tastevin (1880-1962)

 

Texto Tupi ou Nheengatu[2]

 

Boiaçu[3], seu nome o diz, é a grande cobra[4], bóia (cobra), açu[5] (grande, grossa, enorme). Vive, como um peixe, no fundo das águas: de lá vem o nome de Boiaçu, Boya wasú, Mogy asú[6], dado a numerosos cursos de água e, sobretudo, a lagos na Amazônia. Não convém confundi-la com sukuriju[7] que a literatura brasileira conhece também sob os nomes de sucuri e de sucurijuba (Boa aquática). Esta pode atingir dimensões consideráveis: eu vi e medi uma pele de sucuriju, abatida no [rio] Tefé[8], que atingia 45 palmos, ou seja, em torno de 9 metros de comprimento por 40 centímetros de largura, mas o que é isto perto das dimensões fantásticas de Boiaçu? Ainda ano passado, encontrei um pescador que acabara de ver uma da grossura de um barril. Elas tornam-se tão gordas, diz a lenda, que não podem mais se mover, e que para assegurar sua alimentação, fazem recurso a uma pequena cobra, [que lhes serve como] seu caçador que lhes traz animais de todos os tipos, até pássaros, já que foram encontradas penas no vômito de Boiaçu. Uma outra lenda sustenta que, para se alimentar, ela[9] se serve de seu poder de fascínio, que é extremamente poderoso: Ele pode atrair um homem que passasse a 100 metros dela. A vítima vai por si mesa, gemendo, lentamente, mas irresistivelmente, lançar-se na goela do monstro. A opinião geral aqui é que a sucuriju[10], a sakai-boya[11], a surucucu (Lachesis mutus), cobra venenosa terrestre, e todas as cobras em geral, tornam-se Boiaçu com a idade, e se prostram então nos lagos profundos, os únicos capazes de contê-las e onde elas podem digerir sem perigo a presa de seus caçadores.

A elas são atribuídas as tempestades, sem causa aparente, que se produzem, frequentemente, sobre os grandes e numerosos lagos da Amazônia. Boiaçu não gosta que seu repouso seja perturbado nem de dia nem, especialmente, à noite, e mais de um imprudente pagou com a vida a audácia de ter ousado perturbar o “dono das águas”[12].

Não convém tampouco jogar pimenta n’água, nem tucupi (suco[13] de mandioca) apimentado, nem restos de comida temperada de pimenta. Boiaçu não deixaria de revoltar as ondas, de formar um temporal e engolir a canoa. Também, quando o pescador encosta [sua canoa] na praia para passar a noite em sua canoa, esta noite ele não lava seus pratos: é perigoso demais.

Evite igualmente deixar sua cabaça emborcada na canoa: o gluglu que faz o ar ao sair de baixo da cabaça quando a água ali entra, tem a capacidade de fazer vir a Boiaçu, que se apresenta imediatamente: e este é um encontro que em geral se está longe de desejar.

Quando a Boiaçu torna-se muito grande e o lago não a comporta mais, ela se move do fundo das águas como alguém que não está à vontade e quer mudar de lugar. Então a terra treme, os jacarés grunhem de terror, o lago se agita e transborda de todos os seus contornos. Logo, não encontrando mais lugar, Boiaçu decide-se a partir: sob a ação do tremor de terra, a barreira de aluvião que separa o lago do rio desmorona e a enorme fera vai-se nas águas correntes: sua cabeça sobrepuja as ondas, seus olhos brilham como faróis vermelhos, as vagas se levantam como muros sobre estes flancos monstruosos e, diante dela, boia uma espuma branca como diante da proa de um navio. Julgam-se as suas dimensões pela da boca do lago e se lhe atribui, em consequência, de 20 a 30 metros de largo? Nada de surpreendente se alguns rios, como o Juruá, largos de 600 metros, são, todavia, incapazes de oferecer uma moradia tão espaçosa a um monstro de tal porte. Em geral, ela se dirige imediatamente ao Solimões-Amazonas, que é o rei dos rios. Ali se instala nos lugares mais profundos, a 20, a 50 e a 100 metros. As pessoas lhe atribuem os turbilhões e as grandes tempestades. Mais tarde, ela vai sem dúvida ao mar, pois é destes animais que não morrem: quando sua pele se torna muito velha, ou quando é muito estreita para conter seu corpo que não para de engrossar, ela abandona sua velha pele, refazendo-se em uma nova, e recomeça a vida, tão jovem quanto no dia em que nasceu.

Esta não é a única propriedade maravilhosa. Este animal, com efeito, no passado, subiu ao céu: é o Escorpião dos europeus, e é a ele que se atribuem as primeiras grandes chuvas de novembro a dezembro, que produzem cheias súbitas, rápidas e momentâneas, conhecidas sob o nome de “repiquete”. Koch-Grünberg, que também escutou a mesma lenda, faz notar que nesta época a constelação do Escorpião está no Zênite (Von Roraima zum Orinoco 19, p.6).

Eis em Nheengatu, língua Tupi da Amazônia, a história de Boiaçu celeste, tal qual ela me foi contada no Baixo-Japurá por um caboclo educado na beira do Solimões, mas filho de um índio Manao[14] do Rio Negro:

 

A lenda da Cobra Grande[15]

 

1. aikwe páa yepe kuñã-muku suï rame páa u-su u-yasuka

havia-uma-vez dizem uma moça sangue quando dizem 3ªp-ir 3ªp-banhar

Era uma vez, dizem, uma moça. Dizem que ela foi se banhar quando estava menstruada.

 

2. u-yasuka riri, u-šiari i saya semeïwa upe

3ªp-banhar depois 3ªp-deixar 3 saia beira sobre

Depois de banhar-se, deixou a saia na beira (do igarapé).

 

3. pïtuna pukusawa aape u-pïta

noite ao longo lá 3ªp-ficar

Ficou lá a noite inteira.

 

4. aape Boyusú u-upupeka saia iruma

aí Cobra-Grande 3ªp-enrolar-se saia com

Então a Cobra Grande se enrolou na saia.

 

5. koema rame huñã-muku u-sïkari i saya u-muapeteka ahe[16] u-mutikañ

manhã quando moça 3ªp-procurar 3 saia 3ªp-bater ela 3ªp-levar

De manhã a moça procurou sua saia, bateu-a e lavou-a.

 

6. pïtuna rame u-yumuneu i saya s-ete rese u-kïri arama

noite quando 3ªp-colocar 3 saia 3-corpo em 3ª-dormir para

De noite ela colocou a saia no corpo (vestiu-se) para dormir

 

7. aape u-mupuruã ahe

aí 3ªp-engravidar ele

Então ela (a cobra grande) a engravidou.

 

8. i payaitá u-puranu i šupe ma taa re-riku

3 pais 3ªp-perguntar 3 para o-que interrog. 2ªp-ter

Os pais dela lhe perguntaram: – O que você tem?

 

9. tiana rese i masï ae u-suašàra t-a-kwau

não porque 3 doente ele 3ªp-responder neg-1ªp-saber

Como não estava doente, respondeu: – Não sei!

 

10. ne purua pu re-iku timahã papai tamahã mamai

2 grávida quem-sabe 2ªp-estar não papai não mamãe

– Quem sabe você está grávida? – Não, papai, não, não mamãe!

 

11. irusanga ipu u-purakari ine

frio quem-sabe 3ªp-fazer-inchar você

– Talvez o frio te fez inchar?

 

12. ahe yepe tiana aikwe mahã u-yuyakï se marika upe

ele apesar não há coisa 3ªp-mexer 1 barriga em

– Apesar disso, há alguma coisa se mexendo na minha barriga.

 

13. mai ta te[17] apïáwa u-kïri ana será ine ruakï

como interreg homem 3ªp-dormir pas será você junto

– Mas então como é isso? Será que um homem dormiu contigo?

 

14. tiana papai timahã ša-kwau apïáwa rese

não papai 1ªp-conhecer homem por

– Não, papai, não conheço (nada) de homem.

 

15. amu yasï riri kušukui ma u-yuyakï i marika pupe u-mumeu i maña supe

outro lua depois algo 3ªp-mexer 3 barriga dentro 3ªp-contar 3 mãe a

Um mês depois algo se mexeu dentro de sua barriga (e) ela contou para a mãe:

 

16. se purua ipu iše se mañã awa taa u-wata ana ine iru se memïra

1 grávida talvez eu 1 mãe quem interrog 3ªp-andar pas você com 1 filho

– Acho que estou grávida, minha mãe! – Quem andou com você, minha filha?

 

17. timahã awa mamãi ša-muneu se saya ša-šiari wáa

não pessoa mamãe 1ªp-colocar 1 saia 1ªp-deixar que

i – Ninguém, mamãe! Eu vesti a saia que tinha deixado

 

18. igarape upe a sui u-yupïru koa še arama

Igarapé em isso 3ªp-começar isto eu para

no igarapé, (foi) desde então que isso começou em mim.

 

19. aape i maña u-ñeẽ bóyusú ipu u muñã

Então 3 mãe 3ªp-falar cobra-grande quem-sabe 3ªp-fazer

Então a mãe dela falou: – Talvez (foi) a Cobra-Grande (que) fez (isso).

 

20. tiana mamai máa táa

não mamãe o-que interrog

– Não, mamãe! – O que é (então)?

 

21. u-yumuturusu i marika te u-sïka i yasï

3ªp-crescer 3 barriga até 3ªp-chegar 3 lua

Sua barriga cresceu até chegar o seu mês (de dar à luz).

 

22. i paya i maña u-su u-mayana  u-kïri rame u-iku

3 pai 3 mãe 3ªp-vigiar 3ªp-dormir quando 3ªp-estar

Seu pai e sua mãe foram vigiar quando ela estava dormindo.

 

23. ne mahã aitá u-šipiaka a rese paya u-ñeẽ i taira supe

nada eles 3ªp-ver isso por pai 3ªp-falar 3 filho para

Eles não viram nada. Por isso o pai falou para seu filho:

 

24 se raïra ikui mañana ne renera u-kïri rame

1 filho ir.imperat. cuidar 2 irmã 3ªp-dormir quando

Meu filho, vá cuidar de sua irmã enquanto ela dorme.

 

25. i kywera u-su u mahã Boya wasu u-sema i marika coara sui.

3 irmão 3ªp-ir 3ªp-ver cobra grande 3ªp-sair 3 barriga buraco de

O irmão dela foi e viu uma cobra grande sair-lhe da barriga.

 

26. u-ñana a sui ah papai ah mamai tiana katu se renera pe-yuri pe mahã

3ªp-correr lá de ah papai ah mamãe não bem 1 irmã pl-vir-imper 2pl-ver

Veio correndo de lá: – Ah, papai, ah, mamãe, minha irmã não está bem, venham ver!

 

27. aitá u-su u-mañana i maña ruakï Boya mamana wasu u-iatïrï u-iku

eles 3ªp-ir 3ªp-espiar 3 mãe frente cobra enrolada grande 3ªp-amontoar 3ªp-estar

Eles foram espiar e viram uma cobra grande amontoada na frente de sua (dela) mãe

 

28. u-u iku kamï kuñã-muku u-kïri kuïrï mai ya-yuka

3ªp-comer estar leite moça 3ªp-dormir agora como 1ªpl-matar

mamando; a jovem dormia. – E agora, como vamos matá-la?

 

29. aitá u-pirari merupi okapï rukena

eles 3ªp-abrir devagar casa porta

Eles abriram devagar a porta da casa;

 

30. aitá u-wike putari rame Bóyusú u-wike yïrï kuñã-muku marika upe.

eles 3ªp-entrar querer quando cobra-grande 3ªp-entrar de-novo moça barriga em

Quando eles quiseram entrar, a Cobra-Grande entrou de novo na barriga da moça.

 

31. aape u-pïta turusu i maña marika tiana u-wata kwau.

lá 3ªp-ficar grande 3 mãe barriga não 3ªp-andar saber

Lá ficou; a barriga da mãe ficou grande, ela não podia andar.

 

32. yepe yasï riri kuñã-muku u-senu mira u-senoi iku ahe

uma lua depois da moça 3ªp-ouvir gente 3ªp-chamar estar ele

Um mês depois a moça ouviu alguém chamando:

 

33. mamai mamai ahe u-kiriri mamai ya-su kumaru pïta pe marese ša-sema putari

mamãe mamãe ele 3ªp-calar mamãe 1ªpl-ir cumaru[18] pé em porque 1ªp-sair querer

– Mamãe! Mamãe! Ela ficou calada. – Mamãe, vai ao pé de cumaru, que eu quero sair.

 

34. kuñã-muku u-suašara tiana ša-wata kwau mai um ta te ša-su kuri kumaru pïta upe

moça 3ªp-responder não 1ª-andar saber como inter 1ªp-ir fut cumaru pé em

A moça respondeu: – Eu não posso andar, como então irei até o pé de cumaru?

 

35. iše ša-rasu kuri ine ere mamai i-puama u-sïka kumaru pïta upe

eu 1ªp-levar fut você vamos mamãe 2-levantar-imper 3ªp-chegar cumaru pé em

– Eu te levarei. Vamos, mamãe, levanta! Chegaram ao pé de cumaru.

 

36. ana te u-sema i maña sui puranga ahe tiana boya kurumi puranga rete

então 3ªp-sair 3 mãe de bonito  ele não  cobra menino bonito mesmo

Então ele saiu de sua mãe. Que bonito! Não era Cobra! Era um lindo menino mesmo!

 

37. ere-katu mamai kuïrï ya-su ana oka kïtï

Muito-bem mamãe agora 1ªpl-ir casa para

– Muito bem, mamãe, agora nós vamos para casa!

 

38. timahã se memïra ša-sïkïye se papa sui teñẽ re sïkïye mamai

não 1 filho 1ª-temer 1 pai de não 2ª-temer mamãe

– Não, meu filho, tenho medo do meu pai. – Não tenha medo, mamãe,

 

39. ne awa kuri u-nupa yane aitá u-yuka kuri ine se memïra

nem pessoa fut 3ªp-bater nós eles 3ªp-matar fut você 1 filho

ninguém vai bater em nós. – Eles vão te matar, meu filho!

 

40. tiana kuri u-yuka mamai ere se memïra ya-su kute

não fut 3ªp-matar mamãe está-bem 1filho 1ªpl-ir então

– Não vão matar, mamãe! Está bem, então vamos, meu filho

 

41. ahe u-supiri taÿna u-kïka u-ike u-senoi i maña

ele 3ªp-levantar criança 3ªp-chegar 3ªp-entrar 3ªp-chamar 3 mãe

Ela levantou (e carregou) a criança, chegou, entrou e chamou a mãe:

 

42. suku ana iše mamai se memïra iruma ah se remiareru mai puranga ahe

Eis eu mamãe 1 filho com ah 1 neto como bonito  ele

– Eis-me aqui, mamãe, com meu filho! – Ah, como é bonito o meu neto!

 

43. ya-maite boya wasu mira te ahe kariwa ahe

1ªpl-pensar cobra grande gente mesmo ele branco ele

Nós pensávamos (que era) Cobra-Grande! Ele é gente mesmo! É um Branco!

 

44. aape u-yumuñã u-iku pïtuna rame i maña ruakï boya yïrï u-kïri

lá 3ªp-crescer 3ª-estar noite quando 3 mãe junto cobra de-novo 3ªp-dormir

Lá ficou crescendo. De noite ele virava cobra de novo e dormia junto de sua mãe.

 

45. boya pinima puranga te turusu ana boya turusu rame i pura katu okapï

cobra pintada bonita mesmo grande pas cobra grande quando 3 cheio bem a casa

Era uma cobra pintada, muito bonita, grande. Quando a cobra ficou grande, ela enchia (sozinha) a casa.

 

46. samuñã u-mayana u-iku rame u-mahã ñahã boya wasu u-ñeẽ

dele-avô 3ªp-acordado 3ªp-estar quando 3ªp-ver essa cobra grande 3ªp-falar

(Uma noite), quando seu avô estava acordado, viu a cobra grande e falou:

 

47. ya-su ya-yuka ae u-senoi i miraitá Kurupira kaa maña u-yuk´ arama

1ªpl-ir 1ªpl-matar ele 3ªp-chamar 3 turma Kurupira mato mãe 3ªp-matar para

– Vamos mata-la! Chamou sua turma, o Kurupira, a mãe-do-mato, para matar

 

48. Boya wasu. Bóyusú u-senu u-ñeeẽ i maña supe

Cobra grande Cobra-grande 3ªp-ouvir 3ªp-ouvir 3ªp-falar 3 mãe a

a Cobra Grande. A Cobra-grande ouviu e falou para sua mãe:

 

49. aitá u-yuka putari iše mamai ya-su kute ya-yawau

eles 3ªp-matar querer eu mamãe 1ªpl-ir já 1ªpl-fugir

– Eles querem me matar, mamãe, vamos fugir logo!

 

50. ma kïtï ya-yawau se memïra kaa kïtï mamai mame ša sem´ ana ya-su kute

Onde para 1ªpl-fugir 1 filho mato para mamãe onde 1ªp-sair pas 1ªpl-ir logo

– Mas fugir para onde, meu filho? – Para o mato, (lá) onde nasci! Vamos logo!

 

51. aitá u-sema pïtuna puku rame u-sïka mame i maña u memïrare ahe

eles 3ªp-sair noite comprido quando 3ªp-chegar aonde 3 mãe 3ªp-parir ele

Eles saíram quando era noite alta e chegaram onde a mãe o tinha parido.

 

52. i maña u-sïkïye ana i šui boya turusu rete ana rese u-maite ah mai táa ša yawaw

3 mãe 3ªp-temer pas 3 de cobra grande mesmo por 3ªp-pensar ah como inter 1ªp-fugir

A mãe estava com medo dele porque ele era muito grande. Pensou, como vou fugir?

 

53. u-mukuna kuri iše i yupiri putari rame kuma-ïwa rese u-ú arama ía u-ñeeẽ

3ªp-engolir eu 3ª subir querer quando cumaru-pé em 3ªp-comer para fruta 3ªp-falar

Ele vai me engolir! Quando quis subir no cumaru para comer as frutas, (a cobra) falou:

 

54. timahá será kuri re-yawaw se sui mamai timahã se memïra ere ša-su ša yupiri

Não será logo 2ªpl-fugir 1 de mamãe não 1 filho bem 1ªp-ir 1ªp-subir

– Será que você já vai fugir de mim, mamãe? – Não, meu filho! – Está bem, vou subir!

 

55. teñe re-šiari iše u-yupiri kuma rakaũ rese aape u-muapi kuma i maña u muatïrï

não 2ªp-deixar eu 3ªp-subir cuma galho por lá 3ªp-jogar cuma 3 mãe 3ªp-juntar

Não me deixe! Subiu pelos galhos do cumaru, de lá jogava as frutas e a mãe ajuntava

 

56. u-saañ iku boyasu ruaya rakapïra i maña yïwa wïrape iku

3ªp-provar estar cobra-grande rabo ponta 3 mãe braço embaixo estar

e ficava provando. A Cobra-grande segurou a mãe por debaixo dos braços com a ponta do rabo

 

57. ti arama u-yawáu i šui ah mai táa ša-yawáu marese taa ša-šiari se miraitá

não para 3ªp-fugir 3 de ah como inter 1ªp-fugir porque inter 1ªp-deixar 1 gente

para ela não fugir dela. – Ah, como vou fugir? Por que deixei minha gente?

 

58. u-maite u maña aape u-pïsïka kuma pirera mumeu i yïwa wïrape boiusu ruaya rese

3ªp-pensar 3 mãe aí 3ªp-pegar cuma casca 3ªp-pôr 3 braço debaixo cobra  rabo por

pensou a mãe. Aí ela pegou casca de cuma e colocou sob o braço junto ao rabo da cobra.

 

59. airiri u-sïkï i yïwa merupi u-saka a sui i memïra ruaya ana

depois 3ªp-puxar 3 braço devagar 3ªp-sair aí de 3 filho rabo pas

Depois puxou o braço devagar e ele saiu do rabo do filho.

 

60. u-muyari kuma pirera kuma-ïwa rese u-musaca i saya timahã arama tïapu

3ªp-colar cuma casca cuma-pé em 3ªp-tirar 3 saia não fazer-barulho

Ela colou a casca na árvore e tirou a saia para não fazer barulho.

 

61. u-ñana rame boyusu sui ana te u-ñana u-ñana

3ªp-correr quando cobra-grande de pas 3ªp-correr 3ªp-correr

quando corresse da cobra-grande. Então ela correu, correu!

 

62. boya wasu u-senoi rame mamai kuma pirera u-suašara hu

cobra grande 3ªp-chamar quando mamãe cuma casca 3ªp-responder

Quando a Cobra grande chamava: – Mamãe!, a casca de cumaru respondia: – Hu!

 

63. kuña-muku u-ñana u-sïka oka upe ere-katu se paya pe-pïsïru iše

moça 3ªp-correr 3ªp-chegar casa em muito-bem 1 pai 2ªpl-salvar eu

A moça correu e chegou em casa. – Muito bem, meu pai, salvem-me

 

64. se memïra sui aape u-iku i paya i maña i anamaitá yuïri ere-katu kaa maña

1 filho de lá 3ªp-estar 3 pai 3 mãe 3 parentes também muito-bem  mato mão

de meu filho! Lá estavam seu pai, sua mãe e também seus parentes. – Bom, Mãe do Mato,

 

65. ine puši re-musïkïye koa Boya se memïra sui u-ñeẽ i maña

tu má 2ªp-amedrontar esta cobra 1 filho de 3ªp-falar 3 mãe

tu (que) és má, vais afugentar esta cobra de minha filha, disse sua mãe.

 

66. i paya u-ñuna u-sasema ere-katu se miraitá pe-mukaturu kurabi yï koidaru

3 pai 3ªp-correr 3ªp-gritar bem 1 gente 2ªpl-preparar lança  machado borduna

O pai dele correu e gritou: – Bem, minha gente, preparem lanças, machados, clavas,

 

67. ya-su ya-yuka ñaã Boya teñe pe-yuka se memïra pe-musïkïye ñunte ahe

1ªpl-ir 1ªpl-matar essa cobra não 2ªpl-matar 1 filho 2ªpl-assustar só ele

vamos matar essa cobra! – Não matem meu filho, só assustem ele!

 

68. tenupa u-su ïwaka kïtï u-pïta arama ïwaka upe i igara pupe

deixe 3ªp-ir céu para 3ªp-ficar para céu em 3 canoa dentro

Deixe que ele vá para o céu, para ficar lá no céu em sua canoa,

 

69. amu ara kuri upe u-riku arama historia awa u-kwau u-mumeu

algum dia logo em 3ªp-ter para história gente 3ªp-saber 3ªp-contar

(e) algum dia, mais tarde, ter alguém que possa contar esta história,

 

70. u-yukwau kuri rame ïwaka upe Boya wasu rangawa kuma-ïwa arape

3ªp-aparecer fut quando céu em Cobra grande imagem cumaru cima-em

quando aparecer no céu a imagem da Cobra-grande em cima do pé de cumaru,

 

71. Boya wasu barbiña kuma-ïwa wïrape

Cobra grande barquinha cumaru debaixo

(e) a canoa da Cobra-grande debaixo do pé de cumaru.

 

72. sese tiana kurupira u-yuka ne kaa maña ne  mahã u-nupa Boyusu

por-isso não curupira 3ªp-matar nem mato mãe ne ninguém 3ªp-bater Cobra-grande

Por isso Curupira não matou, nem Mãe-do-Mato, nem ninguém bateu na Cobra-Grande.

 

73. ahe u-uri i maña rakakuera u-sïka rame u-supiri oka arape u-senoi

ele 3ªp-vir 3 mãe pegada 3ªp-chegar quando 3ªp-subir casa sobre 3ªp-chamar

Ele veio no rastro da mãe. Quando chegou, subiu em cima da casa e chamou:

 

74. mamai mamai marese taa re-yawau se sui u-uašara ša-sïkïye ana ine sui

Mamãe mamãe por-que inter 2ªp-fugir 1 de 3ªp-responder 1ªp-temer pas você de

– Mamãe, mamãe! Por que fugiste de mim? Ela respondeu: – Eu tive medo de ti,

 

75. turusu rete ana ine ikui ana ïwaka kïtï Tupana u-mumuri kuri ine ïwaka upe

grande bem pas você 2ªp-ir céu para Tupana 3ªp-colocar você céu em

você era muito grande. Você foi para o céu, e Deus vai te arranjar logo um lugar no céu,

 

76. mondo rangawa arama ere mamai arame ša-su ana ne sui

mundo imagem para está-bem mamãe então 1ªp-ir 2 de

como exemplo para o mundo. – Está bem, mamãe, então eu vou (para longe) de você.

 

77. aape u-yurure i bensão u-supiri añu ana

aí 3ªp-pedir 3 benção 3ªp-subir só (isso).

Aí ele pediu-lhe a benção e subiu. Isso é tudo.

 

 

Tradução literária

 

Acrescento a tradução seguinte, para aqueles de meus leitores que não se interessariam pelo texto Tupi:

 

Era uma vez uma moça que foi se banhar na época de suas regras. Ao sair do banho ela deixou o seu vestido na beira da água e ali ficou a noite inteira. Cobra grande veio passear e se enrolou no vestido. No dia seguinte, a moça tomou o vestido, lavou-o e secou-o. Vinda a noite, ela se vestiu para dormir e ficou grávida [da cobra].

Seu pai lhe perguntou: “- Que é que você tem?” Não se sentindo mal, ela respondeu: “- Eu não entendo nada disto!” – “As pessoas vão dizer que você está grávida!” – “Oh! Não por isto, papai; não, mamãe, certamente eu não estou grávida”. – “Vai ver que foi o frio da umidade que te fez inchar!” Talvez, [pode] bem [ser] diz ela, mas de todo modo, nada se mexe na minha barriga!” – “O que pode ser isso? (pois ela não tinha a má aparência das pessoas inchadas e o inchaço estava localizado) Alguém dormiu com você?” – “Ah! Não, papai, não! Eu não conheço nenhum homem!”

No mês seguinte, eis que ela sentiu alguma coisa se agitando em sua barriga. Ela contou à mãe: - “Mamãe, as pessoas diriam que eu estou grávida!” – “Com quem então você andou, minha menina?” – “Com ninguém, mamãe: eu apenas vesti a roupa que havia deixado a noite inteira na beira do igarapé, e foi depois dessa ocasião que isto me aconteceu” – “Isto é a cobra grande, diz a mãe; somente pode ser ela” – “Mas quando, mamãe, não é possível” – “O que será isto então?”

O ventre da moça continuava a inchar desmesuradamente, até que veio a época do desembaraço. O pai e a mãe iam vigiá-la durante seu sono: eles não viam absolutamente nada. Então, o pai enviou seu filho, dizendo-lhe: - “Vá reparar sua irmã enquanto ela dorme”. Ele ali foi e viu uma serpente enorme saindo do ventre da irmã. Correu para advertir os pais: - “Ah! Papai, ah, Mamãe! Venham ver, é inacreditável o que está acontecendo com minha irmã”. Eles correram e viram, estendida, perto da filha, uma serpente enrolada em um embrulho enorme, mamando no peito da moça que dormia. – “Vamos matá-la!”, disse o pai. Eles abriram suavemente a porta, mas no momento em que iam entrar no quarto, a cobra grande voltou para dentro de sua mãe. Aí ficou, continuando a crescer. O ventre da moça tornou-se enorme; ela não podia mais andar.

No mês seguinte, estando deitada, ela escutou uma voz que a chamava: “Mamãe! Mamãe!” Ela ficou calada. “Mamãe, insistia a voz, vamos ao pé de uma sorveira[19], porque eu quero nascer!” A moça respondeu: “- Eu não posso dar um passo, como poderia ir até a sorveira?” – “Eu mesmo a levarei: Vamos, mamãe, levante-se!”

Chegando ao pé da sorveira, ele saiu de sua mãe. Era uma bela criança, um menino muito bonito, não era uma cobra. – “Muito bem, mamãe, reanime-se, retornemos à casa!” – “Ah! Não, meu filho, tenho muito medo de meu pai!” – “Não tema nada, ele não nos fará nenhum mal!” – “Eles o matarão, meu filho!” – “Não, eu lhe asseguro que não me matarão, mamãe”.

– “Pois bem! Partamos, meu filho!” Ela tomou o filho nos braços e partiu. Chegando a casa, ela chamou sua mãe: “- Mamãe! Estou aqui, e com meu filho!” – “Ah! Meu querido netinho, como ele é bonito! E nós que pensamos que seria uma cobra! É um homem! É um Branco!”

O menino crescia na casa do seu avô. À noite virava cobra e dormia ao lado de sua mãe. Era uma bela cobra, pintada de cores variadas e agradáveis aos olhos. Foi assim até que ele se tornou um rapaz crescido. Uma noite em que o pai estava de vigília, ele viu aquela cobra enorme que ocupava sozinha a cama de sua filha, e disse: Vou matá-la. Apressou-se a chamar seus amigos, Curupira e Mãe do Mato, os gênios das árvores, para ajudá-lo a matar Boiaçu, Cobra Grande. Mas Boiaçu o havia escutado; disse à mãe: “- Eles querem me matar, mamãe! Vamo-nos, fujamos para longe daqui” – “E aonde iremos, meu filho?” – Retornemos ao pé da sorveira que me viu nascer!” Eles se foram na obscuridade do meio da noite e chegaram ao pé da árvore onde a moça teve o filho. A pobre mãe tremia de medo diante do filho, pois ele se tornara muito grande, e pensava: “Ah, se eu pudesse fugir! Certamente ele vai me engolir”. Mas ele trepava na sorveira para colher frutos e, enquanto subia, dizia à mãe – “Você não vai fugir e me abandonar aqui, não é, mamãe?” – “Mas não, meu filho” – Bem, vou subir, mas por tudo, não me abandone!” Ele galgava os ramos, colhia os frutos e os jogava à mãe, que os ajuntava e provava. Boiaçu lhe havia passado a cauda sob as axilas para que ela não pudesse fugir, e ela pensava: “Como farei agora para fugir? Por que fui deixar minha família?”

Então ela imaginou pegar uma casca de sorveira (que é gomada e viscosa); ela passava sob sua própria axila, entre seu braço e a cauda do filho; depois, retirando docemente o braço, ela pregou de novo a casca na árvore. Então vendo-se livre, ela tirou o vestido para não fazer barulho ao correr e se precipitou para casa. Ela corria, corria como uma perdida. Quando Boiaçu a chamava “Mamãe!” a casca da sorveira respondia: “Hu!”

A moça chegou em casa sem fôlego: “Socorro! Papai, livre-me de meu filho!” Estavam lá seu pai, sua mãe, Curupira, Mãe do Mato e todos os seus parente: “Vamos, Mãe do mato, você que é tão temível, afugente esta cobra grande para longe de minha filha!” disse a mãe. O pai se precipitava e gritava: “Vamos, rápido, preparem suas lanças, machados, bordunas, clavas, vamos matar essa cobra!” – “Não, não matem meu filho, gritava a moça: façam-lhe medo, somente, para que ela vá ao céu em sua pequena canoa, para que haja alguém que conte esta história, quando aparecer no céu a imagem de Boiaçu, Cobra Grande, em cima do pé de sorveira (e) sua canoa embaixo da sorveira”.

É por este motivo que Curupira não matou a Cobra grande, e que nem Mãe do Mato, nem ninguém, lhe fez nenhum mal.

Mas ela ainda veio à procura de sua mãe, subiu no teto da casa e chamou: “- Mamãe, por que você fugiu assim? Você tornou-se muito grande, minha criança; vá agora habitar no céu. Você foi escolhida por Deus para servir de exemplo ao mundo.” – “Bem! Mamãe; eu vou, já que você quer assim”. Lá em cima, ele pediu a bênção à mãe e subiu ao céu. Isso é tudo.

 

Observações

 

1. A influência cristã está manifesta nesta conclusão: Não é [próprio ao] índio fazer Boiaçu depender de um deus supremo, muito menos de pedir a bênção à mãe. Esses acréscimos se devem ao espírito “caboclo”, quer dizer, à mentalidade dos índios cristianizados. Eu, aliás, mais de uma vez notei em nossos neófitos essa tendência irresistível de cristianizar suas crenças pagãs ou a paganizar nossas crenças cristãs. Sabe-se que em geral ou pelo menos frequentemente os índios colocam à origem das coisas dois irmãos gêmeos, dos quais um simboliza a sabedoria e o poder, o outro, a patetice e a incapacidade. Ou, ocorreu-me mais de uma vez, para minha grande estupefação, ver meus cristãos novos identificar este último [o pateta] com São José ou São Pedro, tendo porém o cuidado de se prevenir, dizendo que não estavam bem certos sobre qual dos dois o seria. Neste caso, eles relacionam a Deus tudo que suas lendas atribuem ao princípio de Sabedoria e Poder, Táma nos Canamari, Máwali nos Catauixi, ainda que os vícios não lhes faltem mais que a Zeus dos Gregos; e a São José ou São Pedro o que a lenda atribui a Kirak nos Kanamari, e a Tini nos Catauixi. Penso, então, que o Sr. Dr. Koch-Grϋnberg (2002) errou ao espantar-se que os pastores protestantes da Guiana Inglesa tenham dado ao Deus cristão o nome de Macuna ima, o grande Macuna, príncipe da Sabedoria e do Poder para os Caraíbas dessas regiões. Malgrado suas imperfeições, este é sem dúvida o único personagem do folclore caraíba a poder representar toda a potência divina. Os pastores batizaram, purificaram, aperfeiçoaram Macuna ima, como nossos ancestrais batizaram Zeus para o fazer Deus. É, aliás, defensável supor que os pagãos tenham usado de procedimento contrário, e que a humanidade, após haver concebido Deus, como o Ser infinitamente perfeito, o tenha a seguir revestido de seus vícios, desfigurando-o. identificando São Pedro e São José com Kirak ou Tini, nossos índios não chegam a desprezar estes santos: eles querem simplesmente marcar sua inferioridade em comparação com o Deus todo-poderoso e concebem, aliás, muito dificilmente o conceito de santidade, que para eles é, sobretudo, um conceito de poder.

2. Eu quis saber qual seria a constelação que representaria Boiaçu no firmamento. Para meu narrador, Boiaçu não é apenas uma constelação: é uma mancha negra no céu, ou, mais precisamente, na Via Láctea; seu corpo é espargido de pequenos pontos brilhantes. Sua cabeça toca em Peixes. Ele é escalado pela sorveira, que é desenhada pelas estrelas, e ao pé da qual distingue-se a canoa de Boiaçu com seus mastros, sua proa, seu leme. O corpo da canoa é uma “nuvem semi-obscura”, em consequência uma parte da Via Láctea, delimitada pelas estrelas: É vista um pouco abaixo e à esquerda do Escorpião. Creio que o Escorpião não representa Boiaçu, mas, simplesmente, a árvore na qual subiu [ao céu]; e a canoa parece indicar que Boiaçu não chegou ali por terra, mas por água, como é habitual viajar sobre as bordas do Amazonas e seus grandes afluentes.

3. Falando do poder de Boiaçu com os caboclos de Nogueira, cristãos de longa data, eu os escutei dizer que Deus lhe deu poder sobre a metade do mundo, o que lhes permite atribuir-lhe quase todos os fenômenos naturais sem ofender a majestade de nosso Deus. Esta expressão nos lembra o título de “princeps hujus mundi” (sic) que nosso Senhor dá a Satã, o anjo caído, ‘cobra grande’ que enganou nossos primeiros antepassados e que, no Evangelho, atribui a si mesmo a soberania do mundo: “Omnia hace tibi dabo si cadens adoraveris me”. “É só ele querer, me diziam esses caboclos, e imediatamente Nogueira se afundará nas onda do Tefé”. É sempre fenômenos dessa natureza que ele manifesta seu poder: desmoronamentos, ribanceiras das inundações súbitas, tempestades sem causa aparente, chuvas diluvianas, naufrágios inexplicados, redemoinhos perigosos: é de fato o rei das águas: wahuyara, ou iara. É preciso um poder mágico muito forte ou o poder divino para paralisar sua potência.

Havia no Bacururu, sobre a margem direita do Juruá, diante da ilha do Breu, uma Boiaçu que engolira grande número de embarcações, entre as quais convém contar dois vapores. Um pajé Catauixi conjurou-a por [meio de] encantamentos e, hoje, o único mal que ela faz é fazer afundar a ribanceira de argila vermelha que domina o rio nesse lugar.

Por ocasião do tremor de terra do último 17 de janeiro, ouvi outra lenda: que Tefé está construída sobre uma antiga ilha, debaixo da qual está acorrentada uma Boiaçu. Quando ela se perturba, toda a terra treme, e ela teria sepultado a vila nas ondas do lago se Santa Tereza, a padroeira de Tefé, não a tivesse impedido de fazer todo o mal que deseja.

Como mãe d’água, ela não admite que as pessoas contaminem a água, como já mencionamos. Jogar na água molho apimentado, cachaça, tucupi, restos de comida, é como “lhe jogar pimenta nos olhos”; daí seu furor e suas tempestades terríveis, acompanhadas de chuvas diluvianas, que não são senão o castigo imediato por um ato tão repreensível. “Aitá u surua ai”: Eles a ofenderam! Eles lhe provocaram mau humor!

Estando, acaso, em um lago virgem, como se encontra ainda muitos neste território deserto, se você pegar uma tartaruga, não precisará talvez de se arrepender. Mas se após ter cozido e comido o produto de sua pesca, você jogar o casco queimado n’agua, o castigo não se fará esperar; esta mesmo noite você não poderá dormir em sua canoa: a chuva e a tempestade não permitirão.

Ultimamente, no lago Mamirauá, perto de Parauari, na boca do Japurá, dois pescadores haviam abatido um guariba, ou macaco vermelho, e o haviam moqueado para almoçar. Terminada a refeição, jogaram os despojos no lago. Boiaçu aceitou imediatamente o desafio: sob a forma de arco-íris, apareceu na mesma hora, no firmamento, do lado Leste, com a particularidade de que a sua cabeça repousava no esguicho de água que se estendia atrás da canoa. Tomados de terror, nossos dois imprudentes investiram todas suas forças para escapar do abraço de Boiaçu, que queria levá-los ao céu em sua canoa: mas que quanto mais remavam, mais Boiaçu parecia se apegar a sua presa. Enfim, graças sem dúvida a suas preces, o arco-íris desapareceu sem lhes ter feito outro mal que o medo; mas eles bem se prometeram jamais repetir [o feito].

Parece, após este fato, que Boiaçu celeste se manifesta, de dia, sob a forma de arco-íris, e à noite, sob a forma de mancha, semeada de pequenos pontos brilhantes. É, aliás, bem natural que a tela da noite desfralde suas cores magníficas, como também o sol transforma-se em lua, em muitos dialetos que têm apenas um nome para designar esses dois astros.


FAULHABER, Priscila; MONSERRAT, Ruth (org.). Tastevin e a Etnografia indígena: coletânea de traduções de textos produzidos em Tefé (AM). Rio de Janeiro: Museu do Índio, 2008. 1ª reimpressão, 2014. p. 137-152

Pe. Constant Tastevin (1880-1962)
Pe. Constant Tastevin (1880-1962)


[1] Tradução Priscila Faulhaber e Ruth Monserrat, do artigo “La légende de Bóyusú em Amazonie. Texte tupy ou ñeẽgatu”, Paris, Revue d’ethnographie, nº 22, 1925, Paris, Société d’ethnographie, pág. 172-206.

[2] Tastevin grafa ñeẽgatu, mas utilizaremos aqui a grafia do português corrente.

[3] O termo empregado pelo autor é Boyúsu. Porém, conforme nossa opção, ele será traduzido aqui por Boiaçú, que é o nome corrente na região para denominar a Cobra Grande. (NT)

[4] Quando o autor utiliza o termo serpente, traduziremos por cobra, que é a designação corrente “para ofídios em geral, que inclui espécies venenosas ou não” (ABH). Também seria correta a utilização do termo serpente. No entanto, considerando que Tastevin traduz o vernáculo regional na Amazônia, julgamos que a primeira opção é a mais adequada. (NT)

[5] Em português, utiliza-se o termo boia, boiaçu (ABH) ou Cobra Grande. Seguindo a opção explicitada acima, em português trocamos o ‘s’ de asú por ‘ç’, de açu. Em português não se acentuam as paroxítonas que provêm da língua tupi. (NT)

[6] Mantivemos aqui a grafia atribuída por Tastevin (Boya wasú, Mogy asú). (NT)

[7] Tastevin grafa sucuriyú. (NT)

[8] Tastevin grafa Teffé, atualmente [rio e lago de] Tefé, às margens do qual existe a cidade do mesmo nome, fundada em 1917. (NT)

[9] Nas descrições locais, atribui-se ora sexo feminino, ora masculino a Boiaçu. Optamos aqui por utilizar a palavra cobra, que tem gênero feminino, seguindo a convenção gramatical do português. (NT/PF/RM)

[10] Tastevin usa o termo súcuriyú, que doravante traduziremos por sucuriju. (NT)

[11] Mantivemos a grafia de Tastevin. (NT)

[12] Tastevin usa o termo “seigneur des eaux”, o qual, traduzido literalmente, seria “senhor das águas”. Na Amazônia é muito frequente usar o termo “mãe” para denominar as forças que dominam os fenômenos naturais, atribuindo-lhes o sentido de “donos” destes fenômenos, termo também frequentemente utilizado no vernáculo regional. (PF)

[13] O tucupi não é propriamente um suco de mandioca, uma vez que seu processamento requer um tratamento especial, que é tratado em outros artigos do mesmo autor. (PF)

[14] Grafia de Tastevin. Provavelmente ele se refere a um indivíduo descendente dos índios Manaos, cuja denominação deu origem ao nome da cidade de Manaus. (PF)

[15] Coletada por Constant Tastevin e traduzida por Ruth M. F.  Monserrat. Em sua “Gramática da Língua Tupy”, Tastevin considera que a língua não tem morfologia, ou seja, que as palavras não têm estrutura interna. O que normalmente é tratado como prefixos ou sufixos, em outras descrições, é por ele considerado como clíticos, registrados separadamente na escrita. A tradução literal dos textos reflete tal posição descritiva, ao glosar raízes verbais nheengatu na maioria das vezes com formas do infinitivo francês, e os prefixos pessoais como pronomes plenos (em forma seja direta como indireta). Na transcrição linear portuguesa dos textos, no presente trabalho, será restabelecida a morfologia verbal original da língua. Ilustramos com o seguinte exemplo, dando primeiro a versão em nheengatu, depois a transcrição literal em francês, a seguir a transcrição interlinear, com segmentação morfológica em português (os prefixos pessoais de primeira, segunda e terceira pessoa sendo representados, respectivamente por 1ªp, 2ªp, 3ªp, ou, no plural, por 1ªpl, etc; e os possessivos, por 1, 2 ou 3): e por fim, a transcrição normal em português (sem preocupação literária): “Ya-su ya-mahã ñahã ne rimiú!” “Nous allons nous voir cette de toi nourriture!” 1ªpl-ir 1ªpl-ver esta 2 comida vamos ver essa tua comida. (RM)

[16] ahe pode ser traduzido como ele ou ela, ou isso, conforme a situação; optamos pelo registro uniforme ele, na transcrição interlinear em português. (RM)

[17] te é uma partícula de ênfase e normalmente não se traduz, mas em alguns casos pode ser glosada como mesmo ou muito.

[18] Cumaru árvore do gênero Diptérix odorífera, cuja semente é a mais usada para obtenção de cumarina e outros fins comerciais.

[19] O termo original em nheengatu é cumaru, mas Tastevin traduz esse termo por sorbier (árvore do gênero Sorbo da família das apocináceas). Na tradução linear mantivemos o termo cumaru e na tradução literária traduzimos sorbier por sorveira. (NT/PF/RM)

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