Abguar
Bastos Damasceno nasceu em Belém, no dia 22 de novembro de 1902, e foi jornalista, político e escritor. Formou-se
em Direito pela Universidade de São Paulo. Elegeu-se deputado federal em 1934 e
filiou-se à Aliança Nacional Libertadora – ANL. Envolveu-se na insurreição de
1935 e foi preso ainda no exercício do mandato parlamentar. Ligou-se aos
socialistas e em 1945 voltou à política, elegendo-se novamente deputado federal
pelo PTB. Antes do golpe militar de 1964 desempenhava funções diplomáticas em
Varsóvia. Morreu em São Paulo no dia 26 de março de 1995.
Obras:
Terra de Icamiaba, Rio de Janeiro: Andersen-Editores, 1934.
Certos caminhos do mundo, Rio de Janeiro: Andersen-Editores, 1935.
Safra, Rio de Janeiro: Andersen-Editores, 1937.
O romance Terra de Icamiaba foi inicialmente publicado em 1932 com um título diferente, A Amazônia que ninguém sabe.
Contexto
Intentona comunista – Sob a orientação do Partido Comunista Brasileiro – PCB, estudantes e operários fundaram, em março de 1935, a Aliança Nacional Libertadora – ANL. Era um movimento nacional que pregava um “governo popular nacional revolucionário”, sob a direção de Luís Carlos Prestes. A ANL tinha como lema “Pão, Terra e Liberdade”. Seu programa incluía reforma agrária, diminuição da jornada de trabalho, nacionalização dos serviços públicos e salário mínimo. Getúlio Vargas a fechou em julho de 1935. A organização recorreu e o Supremo Tribunal Federal indeferiu o mandato de segurança. Seus líderes militares iniciaram nos quartéis uma conspiração que deu origem à chamada Intentona Comunista de 1935.
A Intentona Comunista pregava um programa antiimperialista, antilatifundiário e antifacista, em oposição ao integralismo e ao crescimento das tendências repressivas do governo Getúlio Vargas. Reuniram-se o PCB e ANL, depois de colocada na ilegalidade, e passaram a levantar seus militantes em várias unidades militares. Em Natal, alguns militares de esquerda com apoio da população chegaram a derrubar o governo e criar um Governo Popular Nacional Revolucionário, em 23 de novembro. Foram derrotados quatro dias depois. Em Recife o levante se deu a 24 de novembro, a 27 no Rio de Janeiro, onde o movimento foi sufocado antes mesmo de chegar às ruas.
Utilizando a desculpa da insurreição, o governo Vargas, através de Felinto Müller, chefe da polícia política, instaurou um regime repressivo, quando foram torturados não apenas os participantes da Intentona Comunista, mas representantes da oposição democrática, inclusive aqueles com mandato popular, como era o caso de Abguar Bastos.
Foi sob o influxo de ideias esquerdistas, de um marxismo ainda não inteiramente compreendido, somado a ideias libertárias (não conscientemente anarquistas) misturadas a um nietzschianismo também um tanto confuso, que Abguar Bastos escreveu seus romances e sobretudo Terra de Icamiaba.
O escritor viveu muito, teve papel destacado na imprensa, chegou a dirigir A Gazeta, de São Paulo e, no Jornal do Brasil, exerceu todos os cargos importantes. Mas sua obra romanesca se vincula àquele período de oposição a Vargas, ao capitalismo e de defesa da construção de uma sociedade que, naquele tempo, parecia ser mais justa e humana.
A OBRA
O enredo
Terra de Icamiaba tem um enredo básico estruturado a partir de seu personagem central, Bepe. Trata-se de um herói épico, com todas as qualidades desse tipo de personagem. Forte, inteligente e justo, ele se opõe às injustiças da Amazônia, lidera uma espécie de revolução selvagem contra a justiça corrupta, contra o poder opressor e contra os agentes do capitalismo, caracterizado por judeus, árabes e marroquinos que exploram e ludibriam o caboclo do interior do Amazonas.
Além da vida, das idéias e da rebelião concebida e realizada sob a liderança de Bepe, o livro narra outros dramas paralelos, quase todos ligados à exploração do homem e ainda casos inspirados no folclore, como se verá mais tarde.
O romance se abre com uma descrição da paisagem amazônica. O lugar é o Badajós, descrito poeticamente assim: “Quando arco-íris bebe água no Badajós, as flores se miram no ventre da aparição.” Logo em seguida, o narrador, em terceira pessoa, mas participante das idéias e da luta de seu personagem central, apresenta Bepe como “o gênio do lugar”. Já aí temos uma ideia: a de que o lugar e os povos possuem seus representantes ideais, aqueles heróis que congregam em seu espírito os maiores valores e as maiores qualidades de um povo, de uma cultura, de uma sociedade.
Voltemos ao enredo. Em 1877, Lucas, um cearense, ainda se encontra em sua terra. Mais tarde emigra. Vem para o Norte e passa a trabalhar na construção das estradas que os governos começam a incentivar. Casa-se com Carolina e dessa união nasce o filho Bepe. Terminada a estrada, o pai perde o emprego e pensa em voltar para o Ceará, mas, assistindo a uma luta entre uma cobra e um camaleão, dela extrai o ensinamento da resistência. Decide ficar. Bepe vai para o seminário. Depois o abandona e se liga à arte. Convive com poetas românticos e idealistas, desenvolve idéias revolucionárias e vem para o Badajós, fugindo de “um lirismo estúpido e um romantismo decadente” de seus amigos.
No interior do Amazonas, convive com a injustiça cometida contra muitos dos interioranos, até ele próprio se vê envolvido pela ganância, pela falta de escrúpulos e pela inoperância da justiça. Lazaril, um holandês, prova que Bepe não havia registrado suas terras e consegue requerê-las “legalmente”. Bepe recorre à justiça, mas perde. Então reúne os companheiros, prende os agentes da maldade, Calazar, Lazaril e Amar. Submete-os à violência, tapa-lhe os olhos e os deixa, sob um temporal, morrer com as cabeças arrebentadas pelos ouriços de castanha que caem com a força do vento e da chuva.
Por fim, Bepe propõe fundar uma república nova e justa. Reúne seus aliados e os leva à terra onde teriam vivido as Icamiabas. Essa tribo era composta por mulheres fortes que usavam os homens apenas para a reprodução. Elas sabiam retirar do lago uma pedra sagrada chamada muiraquitã e a entregavam aos homens que as visitavam. Como a pedra representava a força, o amor e o trabalho, a república ideal de Bepe foi erguida no lugar das Icamiabas.
O livro se encerra no momento exato em que nasce a nova república.
Os personagens
O personagem central do romance é Bepe. Trata-se de um herói épico. Forte e culto, ele possui aspirações sociais, indigna-se com as injustiças e, como já se disse, encarna o “espírito do lugar”. Percebe-se logo que Bepe se constrói como uma idealização. Representa o revolucionário, mas ao mesmo tempo tem laços estreitos com a Amazônia. Seu próprio nome origina-se da cultura indígena. Seu padrinho, um português que conheceu a Amazônia, leu o nome Bepe gravado em pedras no Içana. Descobriu que era nome de um chefe tariano fundador de um império indígena.
O herói congrega assim traços díspares de filosofias (socialistas e Nietzsche) e culturas (ocidental e indígena). Mas, ao contrário do que pode pensar, o personagem ganha unidade e eleva-se ao olhar do leitor como um ser quase mitológico. A estratégia adotada por Abguar Bastos para criar Bepe foi percebida por Nuno Vieira, que escreveu um posfácio para o romance. O crítico classifica livro como alegórico. Nele haveria uma luta pela criação de uma Amazônia socialista e revolucionária. Bepe, diz o crítico, “não é um tipo, mas um símbolo e, como todo símbolo, uma síntese de realidade, uma integração de sensações. É profundamente amazoniense (sic) sem deixar de ser universal – modalidade regionalíssima do mal-estar contemporâneo” (pág. 182)
Talvez nesse sentido Bepe seja o único na literatura da Amazônia: uma espécie de Peri, um pai fundador não apenas da raça, mas sobretudo da sociedade ideal.
Lucas e Carolina são os pais de Bepe. Aparecem rapidamente no início do romance e não desempenham papel importante no enredo.
Reginaldo e Jeremias (Jê) são dois poetas com os quais Bepe aprende a arte e cultura mas também descobre que não devia se fixar no lirismo e no romantismo. Por isso vai lutar por valores mais altos.
Julião Cosme, amigo de Bepe. Explorado pelo judeu Calazar, conta sua ruína ao herói que o defende.
Calazar, o judeu, Amar, o marroquino, Lazaril, o holandês. Esses três personagens encarnam o mal. São regatões, agiotas e exploradores. A revolta de Bepe se bate contra eles por serem males exagerados do capitalismo, mas também por serem estrangeiros.
Coronel Epifânio e Major Telesforo. São os líderes da Comarca. O primeiro simboliza o mal, o segundo o bem. O Major Telesforo apóia a revolta de Bepe.
Mano Solia, amigo de Bepe, recebera muiraquitã de sua namorada tariana. Entrega-o ao companheiro e sugere o lugar para a instalação da república de Bepe.
Em Terra de Icamiaba há dezenas de personagens menores. Geralmente aparecem uma ou duas vezes. De um modo geral, dividem-se entre nativos e explorados e estrangeiros exploradores. Há ainda o caso dos juízes e autoridades que também podem ser tomadas como a encarnação da maldade ou do bem. Bepe subsiste como o único personagem verdadeiramente desenvolvido. Isso não constitui um mal em si, mesmo porque o sistema narrativo do livro parece requerer figuras assim mesmo, traçadas com grandes pinceladas para que se mantenha o poder simbólico. Além do mais, Abguar Bastos optou por uma narrativa cortada, cheia de suspensões da ação, superposição de fragmentos significativos, o que concede ao romance um caráter mais moderno. O narrador foge sistematicamente da linearidade e assim os personagens são desenhados rapidamente.
As ideias
Terra de Icamiaba aceita a classificação de romance de ideias como poucos. Sua ideia básica consiste na defesa da revolução social realizada pelo povo, sob a liderança de heróis nacionais autênticos. No caso, temos a insurreição inspirada por filosofias socialistas e vitalistas, por um lado. Por outro, em uma cultura forte e autêntica (a cultura amazônica), tendo como líder um herói justo, idealista, centrado em sua terra, Bepe.
Evidentemente, para se acreditar na necessidade e eficácia da revolução social é necessário também julgar a ordem capitalismo (liberal ou burguesa, como se queira classificar) como intrinsecamente injusta. No caso do romance de Abguar Bastos, há a especificidade do Brasil, na década de 30, quando a luta contra o imperialismo, o neocolonialismo e a defesa dos interesses nacionais constituíam pontos de debates polêmicos e dramáticos. Além dessa, o romance de Abguar Bastos trabalha também com outra particularidade: a Amazônia daquele período.
Como se sabe, Terra de Icamiaba foi publicado em 1934. Nesse tempo o Amazonas (cenário do romance) e o Pará (terra natal do autor) viviam a crise da borracha. Depois de 1920 até o início da II Guerra Mundial, quando os portos da Ásia foram fechados e os Estados Unidos incentivaram a restauração dos seringais amazônicos, a região se encontrava sob o signo da decadência econômica e, consequentemente, política e social.
Abguar Bastos estava tomado pelo espírito de revolta contra a falência do modelo extrativista e pelo desprezo para com um capitalismo que, além de injusto, se mostrava sistematicamente incapaz de resolver suas próprias condições. Lembremos que o crack da Bolsa de Nova Iorque aconteceu em 1929, levando à falência não apenas a economia americana, mas sobretudo as economias periféricas que dela dependiam – foi o caso da crise do café de São Paulo, crise intimamente ligada à quebra nova-iorquina.
Assim, o romance representa (com todas as qualidades e também com todos os defeitos) uma época de fé em novas sociedades. A Revolução Russa ainda conquistava adeptos e a possibilidade de revoluções no continente americano era mais que uma esperança.
Terra de Icamiaba conjuga a utopia social com a utopia cultural. O narrador do livro se mostra absolutamente solidário com as ideias de seu personagem e crê no destino revolucionário da Amazônia.
Embora seja possível hoje percebemos a “ingenuidade” das crenças do narrador, é preciso considerarmos a época de sua concepção. Naquele tempo, o romance de Abguar Bastos era não apenas contemporâneo mas também revelava um caráter modernista-experimental, na construção das cenas, e inovador, na tentativa de criar um novo tipo de estruturação de personagens e enredo. Hoje percebemos seu idealismo e até mesmo podemos nos aborrecer com a falta de um enredo mais causal (uma ação levando consequentemente à outra), mas quando foi publicado ele consistia em verdadeira inovação literária.
O folclore
Embora Terra de Icamiada não se prenda à narração do folclore amazônico, as lendas e mitos, usos e costumes regionais desempenham papel importante em sua construção. A própria ideia central do livro procura somar princípios revolucionários europeus (o marxismo) com a cultura regional – lembremos que Bepe representava o gênio do lugar. Assim o herói é apresentado: “Em todas as regiões há um indivíduo que se destaca. É o gênio do lugar”. Abguar Bastos recorreu a um tema constante da literatura, o genius loci, o espírito ou entidade representativa e protetora de um determinado lugar. Mas ele retira o caráter espiritual e elege Bepe, como uma força da cultural local.
Muitos mitos, usos e costumes regionais se espalham pelo texto, como a lenda da mandioca (página 42), da cobra grande, a história do cofre das almas, a festa do Jurupari (página 157 em diante), o muiriquitã (páginas 175-176) e, mais importante ainda, a história das icamiabas.
É fácil perceber que o autor quis acentuar a beleza e o conteúdo da cultura regional. Mas ele não caiu na armadilha de desprezar o legado ocidental. Assim, a ideia do revolucionarismo europeu se une à autenticidade do homem amazônico. Está claro que a valorização da autenticidade consiste também na adoção de concepções ideológicas da Europa. Em outras palavras, a valorização da cultura autóctone não é uma criação de Abguar Bastos. É um princípio desenvolvido por pensadores europeus, desde o inglês Thomas More (1478-1535), entre nós chamado Thomas Morus, que em A Utopia (1516) apresentava a sociedade indígena como ideal, passando pelo francês Michel de Montaigne (1536-1592), que em seus Ensaios demonstrava a riqueza das diferenças culturais, até filósofos e antropólogos contemporâneos de Abguar Bastos.
Mas em Terra de Icamiaba o tratamento do folclore amazônico revela originalidade. Ao contrário de muitos escritores regionalistas, Abguar Bastos evitou o folclorismo exagerado e não naturalizou o conteúdo fantástico de seus mitos e lendas. Seu esforço e seu mérito foi preservar o caráter imaginário, ficcional da matéria mitológica. Nesse ponto, como se disse, ele se distingue de muitos ficcionistas que contam histórias lendárias através de princípios realistas e naturalistas, tornando tudo inverossímil e, às vezes, absurdo.
A linguagem
Na linguagem reside talvez o maior mérito de Terra de Icamiaba. Sua excelência pode ser observada em vários estratos: a) no nível microlinguístico, isto é, no vocabulário preciso, às vezes precioso, b) no fraseado ágil e vibrante, c) no uso de metáforas frescas e encantarórias, d) nos cortes da narrativa e montagem de cena.
Tudo isso se tornaria a leitura um constante prazer não fossem as interrupções filosóficas, teóricas que quebram o encanto ficcional, desvalorizando o romance como literatura mesmo. Além disso, alguma ingenuidade, que tratada no tópico a seguir, também contribui para que a leitura não seja tão fluente quanto o parágrafo anterior deixou entender.
Mas voltemos à sua linguagem, com um punhado de exemplos. O livro se abre com a descrição da paisagem, do cenário amazônico onde se passará a narrativa:
Depois das rebeliões quaternárias, Badajós alargou as suas águas e arredou as suas terras para o lado enorme do tempo.
Hoje, no lago de Badajós, há um silêncio comprido, que começa nos corações, e um silêncio de imensidade, que acaba nos astros.
Badajós compactua com outros círculos hidrográficos que têm fama de grandeza: Coari, Peorini, Mamiá, Anamã, Acará...
Adiante está o Anouri, lago pequeno, que finge miniatura. As suas laranjeiras rebentam e os barcos arquejam, com as laranjas vermelhas, que são as mais doces do Solimões.
Quando arco-íris bebe água no Badajós, as flores se miram no ventre da aparição.
As palmeiras, com os leques trunfados, abanam os arbustos aflitos: as borboletas caem dos flabelos e anunciam doidamente o verão. Então esplende a terra, clorofila esperta os ramos e as soalheiras emperram na tabatinga. Despidas, chapas fulgurantes oscilam – são clarões redentores, que, sobre os pântanos, desalagam as últimas pontas do mundo.
Nas ilhas-sozinhas as garças bordam para as nuvens (pág. 1)
O primeiro período já lança mão de metáforas belas e sugestivas: as rebeliões quaternárias se solidarizam com a rebelião de Bepe, as águas se alargam e as terras são atiradas para o lado enorme do tempo. O poder imagético desse primeiro período conquista o leitor imediato. Mas todo o capítulo mantém a mesma qualidade. O silêncio que parte dos corações e chega aos astros; as laranjas surpreendentemente vermelhas (referência à vida, ao sangue, mas também ao socialismo expresso no romance), a antropomorfização dos animais e a natureza acabando de se criar (os clarões desalagam as últimas pontas do mundo) e as garças unindo seu branco ao branco das nuvens, tudo compõe um painel pictórico, mas pleno de vida e ação. Esse início funciona como uma espécie de gênese. A Amazônia se cria aos olhos do leitor como a república nova de Bepe também deverá se criar através do livro.
Ás vezes sua linguagem adota certo barroquismo, torna-se ostentatória, preciosa, exageradamente alusiva, enigmática, como num trecho em que fala sobre a mentira: “Na hipermania da grandeza pessoal os estados d’alma surgem poliédricos e nunca estão nus para os amigos” (pág. 43). Entretanto, não é sempre que Abguar Bastos envereda por esse caminho tortuoso, geralmente adota a clareza e a limpidez do estilo, imprimindo força às ideias que defende. Prova de tal força estilística encontramos no trecho em que descreve o Brasil dos trabalhadores injustiçados, aqueles homens fortes que acordam cedo (cabeços e músculos dentro das auras) e, imersos na forma bruta, não têm consciência da história de que participam:
Deslumbramento sonoro, ruge a formidável orquestração do Brasil anônimo; Brasil de seringueiros e lavradores; Brasil de seres forçudos, que enfiam o sol na cintura – cabelos músculos dentro das auras – e, confiados, vão desafiar os infortúnios, sem ao menos pensar na proteção duma história. (p. 68)
Importante também é o desejo de recriar a linguagem oral dos caboclos. Abguar Bastos sabe registrar com precisão e gosto alguns regionalismos sem jamais cair no exagero, como neste diálogo entre Bepe e Telesforo, o chefe político liberal que se unirá ao herói. A primeira fala é de Telesforo:
– Está direito. Você marca o dia. Não se perde um minuto. Você é dos meus. Quando intica, intica mesmo. Eu fico piançando, até receber o aviso.
– Toque, seu Telesforo.
E tocam-se. (p. 119)
Aí temos o regionalíssimo “inticar” significando “querer”, “decidir” ao lado de “piançar”, verbo arcaico mas não regional, seguido da gíria, “toque”, que descreve o ato de apertar a mão.
Vemos, portanto, que a linguagem de Terra de icamiaba é rica em vários sentidos, conforme se expôs no início deste tópico. Mas sua riqueza tabém se exibe na utilização de tons variados e mescla estilística, adotando ora a linguagem filosófica, política, ora a linguagem emotiva e sedutora da metáfora, ora a linguagem arcaica e típica da oralidade regional.
Idealizações
Apesar de todas as evidentes qualidades, o romance de Abguar Bastos não teve a repercussão que lhe seria devida. Talvez a razão de seu relativo insucesso esteja num complexo de idealizações que marcam a obra desde sua gênese.
Sabemos que nossa época se tornou avessa ao idealismo. E idealista é a filosofia básica de Terra de Icamiaba. A revolta social e a possibilidade de uma revolução regional capaz de redimir o homem amazônico hoje parece um exagero em tudo desmentido pelos acontecimentos históricos. Mesmo na época de sua publicação, quando o marxismo ainda dominava nos meios literários e intelectuais, o caráter messiânico e espontâneo da revolta de Bepe não deve ter conseguido converter muito leitores.
Mas não é apenas a revolução que se constrói assim no romance. Os personagens também são abstrações, qualidades ideais, tanto no lado do Bem, quanto no lado do Mal. Essa tendência idealizante não é fruto de inabilidade do autor. Ao contrário, ela fazia parte de suas “intenções”, tanto que o crítico Nuno Vieira, no post-facio ao livro, ressalta as qualidades dessa alegoria, uma maneira de construir poemas ou romances com entidades míticas, abstratas que mantêm relação com a estrutura da sociedade e dos conflitos que procuram retratar. Mas lamentavelmente para o autor e seu crítico, o gosto de moderno se dirigiu a outras maneiras e formas de representação, tornando esse romance um tanto antiquando.
Da mesma maneira que a trama e os personagens tendem a ser idealizados, a região amazônica, o nordestino e o povo também se apresentam assim. Descritos em largos traços, sentimos falta de elementos individualizantes, caracterizadores mais “realistas” de pessoa e natureza. Ainda assim, ressalte-se, não são defeitos do escritor, mas de uma poética, de uma maneira de conceber o romance.
Apenas para esclarecer, um pouco mais, lembremos que, em nosso modernismo, outros escritores também procuraram traçar esses murais sociais, com maior ou menor sucesso. Foi o caso de Oswald de Andrade, que escreveu o romance Marco Zero, composto por A revolução melancólica e Chão (1943-45), em que tentava desenhar o painel social brasileiro e “a transformação de uma sociedade latifundiária semifeudal em uma sociedade pré-industrial”, conforme as palavras de Sérgio Milliet. Outro exemplo foi Parque Industrial (1933), de Patrícia Galvão (Pagu). Mas o modernismo, como já foi dito, produziu seus melhores frutos com outro tipo de estética. Assim se privilegiou o folclorismo de Raul Bopp (Cobra Norato), Mário de Andrade (Macunaíma) e o experimentalismo de Oswald de Andrade (Memórias sentimentais de João Miramar e Serafim Ponte Grande). Mas Terra de Icamiaba tem um lugar reservado na prosa modernista, no mínimom como um ato de experimentação, à época, atualizado e corajoso.
BASTOS, Abguar. Terra de Icamiaba (romance da Amazônia). 3.ª ed. rev. Manaus: Editora da Universidade do Amazonas, 1997. p. 201-218
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