SABERES DA FLORESTA
Mariana Payno
POR QUE LER? “Existe uma necessidade de materiais escritos pelos próprios indígenas que possam informar sobre seus povos, sua cultura, sua identidade, seu território.” Foi por acreditar nisso que a poeta e educadora Márcia Wayna Kambeba reuniu uma série de textos sobre a educação e a cultura indígenas em seu novo livro, “Saberes da Floresta”, lançado na próxima semana pela editora Jandaíra durante a edição virtual da Flip 2020, que acontece entre 3 e 6 de dezembro. A autora participa de uma mesa do evento no dia 4.
Transitando entre ensaios breves e poemas (veja alguns a seguir), a obra traz a visão descolonial de Kambeba sobre a pedagogia indígena e os ensinamentos dos povos tradicionais. Com uma linguagem fluida, revelando traços da história oral e da literatura de cordel, ela parte dos próprios versos e de um olhar filosófico e político para refletir sobre a educação e a identidade nas aldeias.
Geógrafa, mestre pela Universidade Federal do Amazonas, poeta, performer e pesquisadora, Kambeba nasceu em uma aldeia Ticuna, onde viveu até os oito anos antes de se mudar com a família para a cidade. Temas como a ancestralidade, os deslocamentos, a violência contra os povos indígenas e os conflitos da vida urbana já permeavam sua poesia em “Ay Kakyri Tama – Eu moro na cidade” (Jandaíra, 2018). O novo “Saberes da Floresta” faz parte da Coleção Insurgências, série da mesma editora que publica obras com visões não hegemônicas sobre a educação.
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Povos na Universidade
A visão de mundo
Que na aldeia aprendi
E que trago na alma
É Identidade.
Um tempo profundo
Um rio fecundo
Um canto forte
Resistência que quero mostrar
Nas penas, pulseiras, cocar.
E a cidade cobra sem piedade
Mas como fazer
Se a universidade não me permite ser?
Pataxó, Mura, Kambeba, Guarani.
É preciso desconstruir e permitir
Uma interculturalidade
Um respeito à diversidade
Nessa casa de saber.
Porque na minha universidade-aldeia
Onde o rio corre à vontade
O pesquisador não vai sofrer.
Vai ser bem recebido
Vai comer e vai beber
Conhecer nosso sagrado
Ter respeito no seu querer.
Assim queremos que a universidade
Com nossa nação venha fazer
Se despir do preconceito
Entender que sou um legado
Que o meu fumo enrolado
Afugenta todo mal
É preciso entender nosso tempo
Para sair do seu quadrado.
Também faço ciência
Sou terra, sou água
Segue manso meu rio.
Quero saudar meus ancestrais
Nessa selva de pedra
Antes de sentar para aprender
Bater meu maracá
Pedir licença para partilhar
Porque isso é ciência milenar.
Não sou objeto
Penso e existo.
Não me deixe na invisibilidade
Estou na cidade
Mas minha aldeia levo comigo
Na forma de pensar a universidade
Vamos sentar e a fumaça compartilhar
Fumaça do saber.
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Consciência Indígena
Consciência, cadê você?
Onde está que não te vejo?
Como tu és, qual tua cor?
Quero te conhecer.
Preciso aprender a conviver
Com as diferenças
Para poder entender
A “consciência indígena”
“Consciência negra”.
Numa terra que deveria reconhecer
A importância de ser originário
A cultura que pisou o chão
O maracá que te fez Brasil
Era para soar em cada coração.
Esquecidos do calendário
Invisibilizados no direito de viver
É preciso que as escolas ensinem
O que a consciência deveria saber.
Consciência ambiental
Consciência social
Consciência do respeito
Nessa terra Brasil
Que já foi colônia de Portugal.
Consciência indígena
Pedimos em louvação
Para não ver nossa terra
Ser palco de devastação
Para não ver nossas crianças
Se envergonharem de sua nação.
Protagonismo é de todos
Na força da união
Na partilha da coletividade
No sorriso do curumim.
No canto que soa forte
Na pisada suada no chão
No abraço e aperto de mão,
Amor amando cada irmão.
Consciência é ver você no outro
É ver o outro em você
É olhar com cuidado para ver de onde vem
O cheiro de cobra grande
O cheiro que a aldeia tem.
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O Olhar da Palavra
Palavra é memória
Senhora da história
Desenha sentimentos
Resistência, lutas, vitórias.
Palavra que dança no tempo
Vaga-lume que ilumina o amor
Palavra que marca o passado
Narra o presente
Do povo o clamor.
Palavra é o lugar
Do ver, ser, identidade
Escrita que nasce do olhar
É a palavra vestida de liberdade.
Libere a palavra
Reescreva o final
Palavra é farpa
Poesia marginal.
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Depois de Amanhã
Quando as vozes calarem
E a flecha não mais voar
Quando a terra rachada
Os pés não puderem pisar
Nesse dia surgirão novos guerreiros
Nova era se confirmará.
Queremos história
A onça voraz
Na voz do curumim
Extinção jamais!
As árvores então falarão
As pedras também vão falar
Expressando tristeza e pavor.
Sapopemas gritarão por nós
Porque sempre existirá
Aquele que sabe mandar
O outro calar sua voz.
Confio no abraço do parente
Na era dessa curuminzada
Filhos da gente
Que já nascem sabendo o que é dor
Que a terra deve ser cuidada
Com a vida, carinho e amor.
Quando nossa geração se for
Restarão a canção e a poesia
Restará o retrato falado
De quem em vida na resistência lutou.
Restarão o livro que o indígena escreveu
A filmagem de quem entendeu
Que na vida não se vive por viver
A vida não é só aqui
O que fazemos de bom
O mundo precisa sentir.
No dia em que a nossa geração se for
Certo que continuará a alegria
E a meninada entenderá a diferença
O respeito à diversidade
Porque a interculturalidade
Se vê nos traços da cunhã e curumim
O resto é invenção que só se lê e não se vê.
No dia em que nossa geração se for
Restarão a pedagogia da aldeia
A psicologia da floresta
Para tratar a dor da alma
Pelo olhar do curumim que falou:
Sou a flecha do amanhã
Sou árvore em pé
Sou rio correndo vivo
Sou a força da mulher
Sou curupira, sou pajé
Virando sucuri na beira do igarapé.
Sou a cultura parindo educação
Com a parteira de cócoras no chão
Segurando sua mão.
Sou a chave que abre a algema
E liberta do preconceito e perversidade
Sou a porta que leva ao saber
Sou a cara da aldeianidade
Sou ponte ligando as ideias da mocidade.
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