quinta-feira, 7 de janeiro de 2021

VIAGEM EXPLORADORA DO RIO MADRE DE DIOS AO ACRE

Viagem exploradora do rio Madre de Dios ao Acre.

Vias de communicação entre os rios Purús, Madeira e Beni: o rio Acre e Madre de Dios: entre o Madeira e Guaporé pelo rio Jamary.

Conferência feita pelo Sr. Coronel A. R. Pereira Labre, perante a Sociedade de Geographia do Rio de Janeiro.

Explorador do rio Purús e seus affluentes, tendo conseguido estabelecer communicações entre o Amazonas e a Bolivia. (Revista Illustrada. Rio de Janeiro. 1888. Ano 13. N.º 506)

Senhores.— Antes de tudo, devo agradecer ao Sr. Presidente e á Mesa da Sociedade de Geographia a benevolência que me dispensaram, permittindo-me a palavra na presente conferência.

Sinto-me orgulhoso por ter sido graduado com o titulo de sócio correspondente desta sabia congregação, diploma assaz honroso para mim, em falta de um titulo scientifico, que justifique a minha presença no Templo de Minerva.

De mim, portanto, não espereis senão uma exposição noticiosa e succinta de minhas explorações na zona comprehendida entre os rios Purús (Wainy[1]) (1), Madeira, Beni, Madre de Dios (Manutata[2]) (2) e Acre (Uakíry[3]) (3).

Sinto vitalidade neste recinto da sciencia por ser-me oferecido um talher na mesa dos sábios, do qual me servirei escrupulosa e modestamente.

O objecto da presente conferência, relatando o itinerario de minhas explorações, tem por fim mostrar vias de communicação fáceis do Brazil com a Bolívia, entre o departamento do Beni e a província do Amazonas, e entre esta e a de Matto Grosso.

Os productos das zonas regadas pelos rios Mamoré e Béni, e seus numerosos affluentes, aberta a communicação terão sahida fácil e naturalmente para o rio Amazonas, por via do Purús e Madeira para os povoados ribeirinhos do Amazonas, e sahida para o Atlântico em demanda dos portos da Europa e America do Norte.

Esta idéa tem occupado o espirito de muitos homens da sciencia, industriaes, economistas e commerciantes, diversas tentativas foram postas em começo de execução e foram frustradas com perdas de muitas vidas e não pouco capital; haja vista, em prova, o desastre da auspiciosa Companhia da ferro-via Madeira e Mamoré!

Não sou absolutamente contrario á sua execução; sou, porém, de opinião que se faça esta via de communicação menos dispendiosa de capitaes e vidas, economisando-se o tempo, que também é dinheiro.

Eu tenho estudado praticamente um traçado, que melhor presta-se a esta communicação, e vem a ser entre a zona que se estende á margem direita do Madeira, entre Purús, Béni e Ituxy, aproveitando o planalto, que separa as águas do Madeira das do Purús e Ituxi, por melhor se prestara uma viação barata, tendo três quartas partes em campos abertos com pastagens próprias para a industria pastoril, e trazendo grande economia ao serviço de custeio.

Este traçado tem dous pontos de partida: um do Purús (Labrea), outro do Madeira (Santo Antonio); a viação vai entroncar-se aos 9º de lat. S., e vai terminar á margem esquerda do rio Béni, no lugar Correnteza, a 5 kilometros acima da cachoeira Esperança, cuja navegação é franca para toda rede fluvial da bacia do Béni, que é a mais rica em productos naturaes.

Entre os pontos de Santo Antonio e Labrea, se abrirá directamente uma via terrestre, abrindo communicação entre os dous rios mais ricos em productos naturaes e mais populosos da provincia do Amazonas.

Como se vê, este plano abre communicação directa da Bolívia para o Madeira e Purús, e entre estes dous rios, com grande vantagem para os povos ribeirinhos.

A extensão total desta viação será de 658 kilom., sendo 338 kilom. da Labrea á Correnteza, 100 de Santo Antônio ao entroncamento, e 170 entre o Purús, Labrea e Madeira (Santo Antônio).

Podeis mui bem apreciar pelas cartas e plantas, que vos apresento, as quaes podem ser examinadas. (Apresenta as cartas).

Para abrir commercio com a bacia do Mamoré se fará do porto da Correnteza uma estrada ao porto do Pacca-nova, no Mamoré, pouco acima de Guajará-mirim, com um percurso de 60 kilometros.

Os campos de criação dc gados da Exaltação, Sant'Anna e Reyes, prolongando para o norte, vêm terminar nas proximidades do lugar Correnteza, por onde se transportará gado vaccum para o Madeira e Purús com grande proveito para o commercio e industria pastoril; póde transportar-se por emquanto 10.000 cabeças annualmente, pois tem o departamento do Béni 400.000 cabeças de gado, ou mais, conforme affirmaram-me diversos criadores, notando-se entre elles o Senador Vaca-Diez. A industria pastoril no Béni está estacionaria por falta de consumo; o tanto que custa um boi de arrobação de 300 kilogr. 10$000 da nossa moeda, ou 5 bolivianos! ao passo que no interior do Amazonas custa um boi de 100 a 120, de arrobação 140$000 a150$000! Mesmo em Manáos custa 90$000 a 100$000, pois o kilo de carne é vendido a 1$000!

Este projecto de estrada, eu o estudo ha mais do 10 annos. Da Labrea fui por terra até a distancia de 200 kilometros. Aos 9º de lat. S., com frente á cachoeira de Morrinhos, deixei de completar o resto do traçado para o Béni, por haver difficuldade em transpor o rio Abuná, cujas margens são infestadas de selvagens antropophagos, Paca-guáras, Coripunas, Pamas e Araras.

No intuito de realizar este estudo pratico, me dirigi ao Béni, o anno passado, em Maio, tomando passagem em canoa atravéz das cachoeiras.

Para chegar á foz do Béni gastei 34 dias de viagem, de incommodos e insano trabalho, arrostando os maiores perigos, pois, além dos perigos das cachoeiras, e moléstias por um paiz insalubre, ha ainda a superar o ataque dos selvagens, que infestam as margens do rio nos lugares de desembarque e pouso. Felizmente não tivemos males ou desastres a lamentar.

Vimos vestígios, pegadas, e mesmo ouvimos gritos e rumores longínquos dos selvagens, que appareceram a outros viajantes, sem comtudo fazer ataques; ao contrario, pediam paz, e alguns objectos para seu uso.

Durou 34 dias o trajecto de minha viagem para Villa Bella, povoação boliviana, atravéz das cachoeiras do Madeira, soffrendo incommodos, privações, e affrontando perigos de toda ordem.

Em minha subida pelo Madeira subi alguns kilometros pela corrente acima do Abuna; em distancia de 4 kilometros mais ou menos, encontrei uma cachoeira, ou forte corredeira, atravéz da qual passou-se a canoa vasia á sirga, e ainda montei a corrente do rio alguns kilometros, examinando a floresta das margens, onde vi muitas seringueiras de boa qualidade, denotando grande riqueza neste gênero de producção.

Tendo saltado no pedregal da cachoeira, e examinando as grandes pedras, nellas encontrei diversas figuras gravadas em faces perpendiculares, consistindo ellas em hyerogliphos differentes, espiraes maiores e menores, círculos concentricos, e outras figuras.

Em minha passagem pelas cachoeiras de Periquitos, Paredão e Ribeirão, encontrei diversos outros hyerogliphos, de que fallo em meu itinerário, que foi já publicado, e já tive o prazer de offerecel-o á Sociedade de Geographia; ha figuras do sol, da lua, triângulos, arcados, um tronco humano, uma serpente, e muitas figuras; em muitas pedras vê-se gravuras quasi apagadas, denotando uma data muito remota á execução deste trabalho, talvez, coevo dos Incas, pelas figuras do sol e da lua, que eram adorados, então, como divindades.

Em affluentes do Béni, da margem esquerda, encontram-se gravuras do sol, da lua, e outras.

Em Villa Bella tive uma estadia de sete dias; logo que descancei, tratei de explorar as cercanias de Villa Bella; passando á margem esquerda do Beni, internei-me na floresta, afim de conhecer a topographia e riqueza natural; em a margem da confluência do Mamoré e Beni desemboca um igarapé (riozinho), que não tendo nome, o nomeei por — Arroio da Confluência, terá 8 metros de boca, tem boa água e é piscoso; subi embarcado por elle diversas vezes, e fui á terra firme, que fica a 300 metros mais ou menos da foz e margem do Béni; a floresta é povoada de palmeiras. As margens do Béni tem seringaes, porém as arvores são pouco frondosas, e de qualidade inferior.

As margens do Madeira, na parte encachoeirada, ha muita seringa, cacáo e castanha. As florestas marginaes são densas e frondosas, e altaneira a arborisação; ha muitas elevações, especialmente á margem esquerda, formando ao longe sinuosidades tão elevadas, que imitam cordilheiras, especialmente ao approximar-se do salto do Giráo até á Pederneira.

Sahindo de Villa Bella no dia 16 de Junho, fomos pernoitar em uma corredeira, abaixo de Esperança (rabo da cachoeira). Chegámos na manhã de 17 na grande cachoeira Esperança, tão perigosa como as do Madeira. Esta cachoeira é muito parecida com a do salto Theotonio. As canoas e as cargas são levadas por terra! Dista esta cachoeira 18 a 20 kilometros da confluência. Tem uma forte casa commercial de importação e exportação de D. Francisco Soares, que reside em Londres.

No dia 19 deixámos Esperança ao meio-dia, e chegamos ao lugar Correnteza ás 3 horas da tarde, a 5 kilometros de Esperança; neste lugar a terra firme encosta á margem do rio; é este o ponto onde vem terminar a projectada estrada do Purús e Madeira; tem um morador neste ponto.

Os campos de Exaltação se approximam deste ponto á margem direita.

Na manhã do dia 22 passámos uma barraca de seringueiro á margem esquerda, e só á tarde passámos a boca do rio Orton, que tem de 90 a 100 metros de largura, dá elle navegação a vapor, e fica a 80 kilometros da foz do Béni.

Ás 7 horas da noite alcançámos a situação Orton, do Dr. Antônio Vaca Diez, onde fui recebido cavalheirosa e hospitaleiramente pelo proprietário, que é Senador boliviano pelo departamento do Béni. É Vice-cônsul do Brazil.

O rio Orton, além de navegável, é muito rico em productos naturaes, que consistem em seringa, cumaru, cacáo e castanha. O Senador Vaca Diez occupa uma extensão de 300 kilometros com um pessoal de mais de 300 trabalhadores.

O rio Béni até a boca do Madre de Dios tem uma extensão de 106 kilometros; tem diversas ilhas e diversos igarapés (riosinhos) e bocas de lagos que desembocam ora á direita e ora á esquerda; suas margens são em geral baixas(várzeas); sua vegetação é pujante, sua riqueza natural em producção é a seringa ou gomma-elastica; ha cacáos silvestres, muita castanha e cumaru, porém sem extracção. Suas terras prestam-se ao cultivo dos gêneros similares da zona torrida, especialmente para canna, café, cacáo, arroz, milho, feijão, mandioca, banana, etc.

De Villa, na confluência do Béni, tomei viagem para Orton, onde demorei-me um mez.

Dia 31.— Tomei viagem de Orton para Madre de Dios; cheguei á noite á Ribeira Alta, onde pernoitei, e no dia seguinte (1.° de Agosto) pela manhã, subi as águas do rio Madre de Dios até o porto de Maravilha, onde cheguei na tarde de 9 do mesmo Agosto, percorrendo uma distancia de 260 kilometros, ou mais.

Dia 11 de Agosto.— Ás 11 horas da manhã parti do sitio Maravilha, porto do Madre de Dios, com uma exploradora de 18 homens civilisados e 15 araúnas de ambos os sexos, semi-civilisados; durante o trajecto do dia passamos diversos igarapés (regatos) e um meritysal, o fomos ás 6 horas da tarde pernoitar em casa de Fidelis Uchôa, seringueiro dos Srs. Mariaca e Mercier; os terrenos atravessados em parte eram várzeas cobertas de florestas vastas, e em parte terra firme de frondoso castanhal.

A 3 kilometros do Madre de Dios atravessámos dous pequenos arroios, que dão passagem ás águas do lago Arambay para o Samayeçada, que por sua vez fôrma um rio do mesmo nome, que desemboca no Madre de Dios abaixo da foz do Jenecychia.

Dia 12.-— Levantámos rancho; ás 2 horas da tarde passávamos em uma tapera Arauna, Hatataecada; é chefe desta tribu Equári; sua maloca compõe-se de sete famílias (26 individuos); estão vivendo em estado pacifico e ao contacto civilisado dos Srs. Mariaca e Mercier.

Pernoitámos á margem de um regato Hatataecada Tapera Equári.

Dia 13.— Terras altas.— Seguindo cedo passámos diversos regatos e fomos pernoitar á margem de um arroio Babanyeçada.

Dia 14.— Levantámos de Babanyeçada e chegámos ao rio Orton ás 2 horas e 45 minutos da tarde ao porto Budha; tem o rio 80 metros de largura.

Passámos sua corrente em balsas dos selvagens araúnas e pernoitámos á margem esquerda.

Dia 15.— Seguimos viagem cedo, marginando o rio para cima, afastando-nos da margem esquerda. As 9 horas e 30 minutos passámos uma taba abandonada Baiheçada.

Ás 2 horas e 45 minutos chegámos a Nabedheçada, maloca araúna, onde pernoitámos. É chefe desta tribuTata-Chumo. Fomos bem recebidos por esta tribu. Tem Ídolos e templos; estão installados de pouco tempo ; usam tangas e camisolas; os homens usam os cabellos compridos e trançados em fórma de chicote, á chineza. Vi uma mulher semi-branca tendo formas bellas.

Dia 16.— Deixámos Nabedheçada ás 10 horas da manhã, levando em nossa companhia Tata Chuma, Quamehy, sua mulher, e mais quatro Índios de sua tribu ; andamos o resto do dia por uma floresta de terra firme e plana, cortada de muitos regatos de boa água. Fomos pernoitar á margem de um regato confluente de Nabedheçada.

Dia 17.— Ao amanhecer do dia, levantámos acampamento e fomos chegar a Mamuyeçada, outra povoação araúna, ás 10 horas da manhã.

Mamuyeçada é uma maloca de 100 e tantos a 200 habitantes; tem fórma de governo, templos, culto e religião; tem plantações, são cultivadores; tem mulheres claras e algumas têm traços de belleza. Não tomam ellas parte no culto, sendo-lhes prohibida a entrada no templo e obrigadas a ignorar os nomes o fórmas dos idolos, que não têm fórma humana, são figuras geométricas, feitos de madeira fina polida. O maioral ou pai dos deuses chama-se Epimará, tem forma ellipsoide e poderá ter em dimensão o cumprimento de 35 a 40 centímetros. Tem fetiches de pedras polidas de fórmas e tamanhos differentes.

Apezar de terem padres e encarregados do culto, que guardam o celibato, todavia o chefe é o pontífice da igreja.

Dia 18.— Na manhã de 18 deixámos Mamuyeçada ás 9 horas, o seguimos nossa viagem de exploração acompanhados de 10 homens desta tribu, fornecidos pelo chefe, para guias e carregadores de bagagens.

Ao meio-dia deixámos a estrada araúna em rumo de oeste, que segue acompanhando o rio Tauamanu, e tomamos o rumo norte, indo fazer parada a 1 kilometro de distancia, em Hatataeçada, maloca araúna abandonada, que dista 3 kilometros de Orton, em porto Capa, antiga situação do chefe Capa, onde será a passagem da futura estrada que irá terminar á margem do Madre de Dios, porto Amapo, a 25 kilometros do porto Capa já citado.

Á tarde, seguimos de Hatateaçada atravéz de densa e frondosa floresta, cortada de innumeras pequenas correntes, e fomos passar a noite em Arunaeçada, bonita corrente d’agua crystallina.

Dia 19.— Pela manhã deixámos a bella corrente Arunaeçada e atravéz de virente floresta, em terra plana e firme, viajámos em demanda de Cuynêputhsúa, taba paca-guára, onde chegámos ás 11 horas e 25 minutos. É povoação deixada; tem ainda boa casa, um pequeno templo e pateo limpo e esplanado em fórma circular.

Encontrámos nesta povoação um chefe (Tata Runa) com suas duas mulheres e dous filhos, que tinham vindo visitar o templo e as plantações. Fomos bem acceitos por elle, que nos garantio a paz com sua nação, obrigando-se a nos levar aos povos visinhos, os Guarayos, seus alliados. Para garantia do tratado, foi elle brindado com ferramenta, miçangas, roupa, uma farda e bonet agaloados. Com estes presentes ficou muito alegre, tendo dormido comnosco nesta povoação, da qual partimos juntos para Tupenaputhsúa, sua maloca nova.

Dia 20.— Ás 7 horas da manhã, em companhia de Tata Runa, tomando o caminho de Tupenaputhsúa a oeste, deixando nosso rumo de noroeste (estrada guaraya).

Ás 2 horas e 40 minutos chegámos a Tupenaputhsúa,onde fomos recebidos com mostras de alegria por um 2.° chefe de nome Cunuparo, e aqui dormimos.

Dia 21.— Paramos de viajar no dia 21, por pedido dos chefes, afim de se prepararem para nos acompanhar com parte de sua gente, e nos levar aos Guarayos, seus visinhos.

Tem esta tribu 60 habitantes divididos em 18 famílias, governados por dous chefes, Tata Cunupáro e Tata Runa. São agricultores, têm os mesmos hábitos, costumes e religião dos Araúnas, porém o dialecto é differente, posto que se entendam.

Nesta aldêa encontrámos dous indios da nação guaraya ligados pelos lagos de família, os quaes se comprometteram a nos acompanhar á taba de sua nação.

Homens e mulheres têm por vestidos a clássica tanga. São cultivadores e têm celeiro para os seus grãos.

Dia 22.— Ainda dormimos em Tupena, e só no diaseguinte, depois de despedirmos os guias e carregadores araúnas, pudemos viajar.

Dia 23.— As 8 horas seguimos nossa derrota exploradora, voltando pela estrada de Cuynê a tomar a encruzilhada que segue para os Guarayos; ás 9 horas e 30 minutos tomámos a estrada guaraya, e ás 10 horas passávamos em uma pequena maloca pacaguára da gente de Cunupáro. Á tarde pernoitámos á margem de uma bonita corrente, Samayeçada, onde soffremos uma forte trovoada.

De Tupena a este ponto passámos diversos igarapés de águas crystallinas.

Dia 24.— Ás 7 da manhã estávamos a caminho em demanda do rio Caramánu (Abuna), a cuja margem chegamos ás 3 horas da tarde e pernoitámos no porto guarayo.

As margens deste rio são orladas por uma floresta de bonita e gigantesca arborisação. Ha muita riqueza vegetal nas margens deste rio, especialmente em seringa, castanhas e cacáo.

Dia 25.— As 7 horas e 20 minutos estávamos atravéssando o Caramánu em uma ponte natural por uma grande arvore cahida, que se prendia de barreira á barreira; neste porto tem o rio uma largura de 30 metros.

Em 10 minutos passou a ponte toda a gente, e ás 7 horas e 30 minutos já da margem esquerda seguíamos o nosso roteiro atravéz de densa floresta virgem, acompanhados de Pacaguáras e Guarayos.

Horas de viagem, passámos duas grandes taperas, povoações selvagens abandonadas.

Ás 5 horas da tarde chegámos a Huatchaputhsúa, uma grande povoação guaraya abandonada ha um anno; tem ainda uma grande casa bem conservada e um templo fechado por duas portas, onde ainda se conservavam muitos idolos, enfeites e instrumentos de guerra, etc.

Dia 26.— Ás 6 horas da manhã sahimos de Huatchaputhsúa, tomando o caminho de Timbyamyhan, onde chegamos ás 9 horas e 30 minutos da manhã, por uma estrada boa, sempre em rumo noroeste. Fomos, ao chegar, bem recebidos pelos chefes e mais gente da nação guaraya.

Os chefes eram Tata Cumarúhuá, Tata Cahaaty e Tata Cayuary.

A taba terá uns 60 habitantes, divididos por famílias ,e pareceu-me ter outras malocas visinhas da mesma nação pelas estradas e povoações abandonadas, que passámos.

Dia 27.— No dia 27 despedimos os Pacaguáras, ficando em nossa comitiva Tata Cunuparo por estarem os Guarayos receiosos de nos levarem ás tabas visinhas; ao chefe Cunupara aliaram-se os chefes guarayos Cayaty e Cahyuary com mais oito Índios carregadores; assim organisada a viagem, levantámos acampamento, ás 7 horas da manhã, de Tinby-annyhan.

Ás 7 horas da manhã continuámos nossa exploração; ao meio-dia chegámos a um prado artificial com uma circumferencia de 5 kilometros, tendo ao centro duas grandes casas já abandonadas, porém limpas, e ainda guardavam grandes caldeirões de barro queimado de mais de 1 metro de altura e diversos objectos e enfeites guardados em tecidos de palha.

Encontrámos nesta tapera um selvagem que velava as plantações de coca, de cujo uso são muito habituados.

Desta maloca deserta seguimos para Canamary, passando em caminho lugares de povoações antiquissimas, muitas encruzilhadas e estradas, ora para a direita e ora para a esquerda; atravessámos pequenos campos, em um delles, o maior, encontrámos uma choça com oito selvagens, que estavam se estabelecendo de pouco tempo, nos receberam com alegria e manifestações de paz; affirmaram elles ser natural aquelle prado; poderia ter 5 kilometros de comprido sobre 3 kilometros de largo.

Acompanhados destes índios, seguimos para Canamary ás 4 horas, onde chegámos ás 6 horas. É uma cidade selvagem formada por cinco ou seis malocas, próximas umas das outras. Uma dellas não ficou contente com a nossa presença, e os seus habitantes ameaçaram ao cacique Cunuparo, que nos acompanhava, de o matar, por haver conduzido gente branca inimiga!

Cunuparo mostrou medo e chorou cobardemente.

Em conseqüência desta demonstração hostil, retirámo-nos para fora das casas em distancia de 500 metros, onde pernoitamos no bosque ao lado direito da estrada. Elles porem, nos seguiram desarmados e nos incommodaram até tarde da noite.

No dia seguinte, ás 5 horas da manhã, nos aprestamos para a marcha.

Dia 28.– Ao amanhecer, ás 5 horas, estavam comnosco dous chefes, Tucano e Hyacapareh, que, convidados para nos acompanhar, acceitaram a proposta; seguindo-nos com 15 carregadores, pagámos a elles e aos seus com ferramenta, roupa, missangas e outras teteias. Mandei fardar os chefes com fardas e bonets agaloados, e muito satisfeitos pelos presentes, pudemos assim conseguir tudo delles.

Ás 6 horas da manhã estávamos a caminho.

Este ponto é o mais povoado de longa data, pelo que mostra.

Seguimos por uma estrada boa e bem cultivada; passamos tres aldêas com boas casas e plantações. Toda a gente fugia, evitando a nossa presença; em uma dellas appareceu-nos o chefe e uns 10 selvagens. Convidado, o chefe nos acompanhou de boa vontade com mais cinco de sua tribu. Em uma ultima correram todos, abandonando um velho selvagem, já muito idoso, e a bicharia mansa; fallei a este velho, que manifestou-me alegria, abraçando-me.

Ás 5 horas da tarde chegámos a Camarana, maloca de selvagens deste nome; ahi pernoitámos.

São duas tabas, tendo por tuchána (chefes) Antônio e Manoel Joaquim.

Dia 29.— Na manhã de 29 levantámos rancho.

Voltaram para suas aldêas os dous chefes Camarys com os seus, ficando tres índios de sua nação, que, unidos aos Camaranas, nos seguiram para o Acre.

Em Camarana foi que vim a ter certeza de estar perto do Acre, pelas informações dos selvagens, o que alegrou-me e á comitiva, e experimentámos a maior emoção de alegria, animando e vigorando o espirito dos exploradores.

Andámos até ás 3 horas da tarde, abarracando á margem de um brejo de água clara, que tomou o nome de Brejo da Ponte.

Tarde da noite deu-se falta de cinco ou seis selvagens que tinham escapado com o chefe Manoel Joaquim. Então, por cautela, puzemos o tuchána Antônio, com o resto dos seus, em prisão preventiva, á qual elles se submetteram sem murmurar.

No trajecto de Canaranna ao Brejo da Ponte passamos por duas malocas Ypunãs, que fugiram á nossa passagem.

Dia 30.— Ás 5 horas da manhã levantámos acampamento, seguindo-nos o tucháua Antônio, que nos afiançou chegar ao Acre, que os selvagens Cannaranas chamam Muchanguy. E de facto, ao meio-dia, estávamos ás margens do Acre.

Foi indizivel a nossa alegria á chegada no rio Acre; é inexplicável.

As pessoas do lugar fizeram a maior manifestação de alegria por julgarem vencida a dificuldade; pois desejam anciosamente aberta a communicação com a Bolívia.

Do porto do seringueiro Manoel Joaquim passámos ao sitio Flor do Ouro, do Sr. Geraldo Correia Lima, que nos hospedou bondosa e dignamente, a quem consagro o meu reconhecimento.

No dia 2 de Setembro voltaram os meus companheiros, que fizeram parte da comitiva exploradora, e chegaram ao Madre de Dios com 8 dias de viagem.

Com este facto fica provada esta via de communicação do Brazil com a Bolivia, podendo estender-se ao Peru pela navegação do rio Madre de Dios á provincia de Pau Cortambo, do departamento populoso e rico de Cuzco.

Até a Flor do Ouro, ou abaixo 18 kilometros, Nova-York, pequena povoação commercial, na bocca do Irary, navegam vapores das praças do Pará e Manáos durante seis mezes de inverno; e de verão, com barcos apropriados, poderá navegar-se em todo o tempo, pois o Acre, na vasante mais baixa, mede 1 metro de profundidade.

A distancia do Acre ao Madre de Dios mede 150 kilometros, da bocca do riozinho Irary á margem do rio Madre de Dios, em Porto Amparo. Esta estrada atravessa dous rios, o Caramánu (Abuná) no porto Guarayo, com a largura de 30 metros, na estação secca, e o Thanamánu (Orton) no porto Capa, tem 80 metros de largura no verão, indo terminar em porto Amapo, á margem esquerda do Manutáta (Madre de Dios).

Realizadas estas vias de communicação, as relações se estenderão por toda a bacia dos rios Mamoré e Béni com sua vasta rede de vias fluviaes até La Paz, á margem do Bope, braço principal ou o mesmo Béni, podendo approximar-se do Chochabamba pelo departamento do mesmo nome, subindo o rio deste nome, o qual é affluente do referido Béni.

Pela navegação fluvial do Mamoré se facilitará todo o commercio do departamento do Béni, se estendendo até Santa Cruz de la Sierra pela navegação do rio Grande, e ao departamento de Chochabamba pela navegação dos rios Securi e Chapare; do ultimo porto de desembarque, Santo Antonio, no Chapare, vai-se por terra á cidade de Chacha-bamba, que se acha collocada no centro da Bolívia, em distancia de 240 kilometros do porto de embarque para o Amazonas, que dá sahida para o Atlântico, abrindo, passagem para todo o mundo.

Tendo dissertado sobre as communicações possíveis da Bolívia com o Brazil por vias terrestres, como ficou demonstrado, entre os rios Madre de Dios e Acre, e entre o Purús, Madeira e Béni, fallarei suecintamente da communicação entre a provincia do Amazonas e Matto Grosso.

Esta communicação poderá se realizar com vantagens para o Estado, e se fará pelo rio Jamary, que dá navegação a vapor até sua primeira cachoeira, a 200 kilometros. Até a primeira cachoeira é franca a navegação em grandes vapores durante a cheia, e já ha moradores até acima deste ponto, que muito podem auxiliar os trabalhos de exploração; da cachoeira se abrirá uma estrada até o forte do Príncipe da Beira, atravessando as serras dos Parecís: a cachoeira, ponto de partida, fica aos 10° 30' de lat. Sul e19° 40' de long. Oeste do Rio de Janeiro; e o forte do Príncipe aos 12° 3’ de lat. Sul e 21° 30' de long. Oeste do Rio de Janeiro; esta estrada poderá medir 250 kilometros, ou pouco mais; é, portanto, uma estrada mais estratégica do que a projectada do Madeira ao Mamoré, que destruirá os poderosos baluartes naturais levantados ás margens do Madeira e Mamoré.

Como o rio Jamary não é caudaloso, talvez seja possível melhorar a navegação no curso encachoeirado, e assim encurtar a via terrestre, e com mais razão se poderá aproveitar o curso navegável do rio Canterio, que desemboca abaixo do forte do Príncipe, ou do rio Simão Grande, que deságua acima do mesmo forte, aflluentes ambos do Guaporé. A ter lugar esta hypothese, a estrada terá uma extensão inferior a 90 kilometros.

Chamo a attenção do Governo para esta via de communicação para Matto Grosso pelo rio Madeira, desprezada a estrada Madeira e Mamoré, como estratégica.

 

LABRE, A. R. Pereira. Viagem exploradora do Rio Madre de Dios ao Acre. Revista da Sociedade de Geographia do Rio de Janeiro. Tomo IV, 2º Boletim, p. 102-115. 1888.



[1] Em dialecto Parnavy.

[2] Manutata em dialecto Araúna.

[3] Uakiry em dialecto ipurinan.

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