Alberto Diniz (1868-1956)
Já agora, tornara-se a vida para mim insuportável em Juiz de Fora e meu único desejo era o de dali me afastar, partindo para bem longe, onde, não sendo conhecido, não fosse a minha dor oferecida em espetáculo. Sabia que o presidente Afonso Pena ia por em execução a reforma judiciária do Território do Acre e escrevi a meu primo Álvaro, pedindo-lhe que expusesse a seu pai a minha situação e dele solicitasse o meu aproveitamento em uma das comarcas a serem ali criadas. A resposta não se fez esperar e veio mais favorável do que eu poderia esperar. Seu pai, que bem conhecia a minha idoneidade intelectual e moral, me nomearia, não juiz de direito, mas desembargador do Tribunal de Apelação. Preparei-me para a viagem, pondo a minha vida em ordem e confiando minha família aos cuidados de meu irmão, com quem sabia poder incondicionalmente contar. E parti para o desconhecido.
Comigo e com idêntico destino seguiram alguns outros colegas, Manoel Adriano de Araújo Jorge, como eu desembargador, João Rodrigues do Lago, juiz de direito da comarca de Rio Branco, Clovis de Barros, procurador seccional e Carlos Horta, adjunto de promotor de um dos termos da comarca de Juruá. Quinze dias depois chegava a Manaus, onde passei para o gaiola que me levaria a Sena Madureira, sede do Tribunal. Ia o navio superlotado, mal encontrando-se um lugar onde pudesse estar à vontade. Em baixo, na classe segunda, viajavam, de mistura, homens e alimárias, numa horrível promiscuidade. Monótona viagem pelo sinuoso rio Purus, em que a paisagem era sempre e invariavelmente a mesma, a praia de um lado, do outro o barranco, num horizonte fechado pela densidade das matas intermináveis. Descia às vezes à classe inferior, onde me sentia nauseando com aquele espetáculo de sordidez e miséria. Entretinha-me ali a ouvir alguns rapazes, que, supondo o Acre um novo Eldorado onde corre fácil a vida e o dinheiro abunda, para lá se dirigiam com o coração a transbordar de esperanças, na certeza de poderem, decorrido curto espaço de tempo, regressar com vastos capitais aos lares familiares. Coitados! Não faltava a bordo quem, com diabólico prazer e sem a mínima piedade, lhes fosse arrancando da alma as alentadoras esperanças. Velhos presidiários do inferno verde lhes diziam de suas passadas ilusões, bem depressa extintas em amargas decepções. Contavam-lhes que também partiram de suas terras embalados por esses mesmos áureos sonhos de fortuna e que, longos anos decorridos, apenas enfermidades tinham adquirido e dissabores experimentado. E quantos outros, vindos com eles na mesma caravana, tombaram logo ao chegar e nem ao menos o triste consolo tiveram de ver de novo os parentes e de lhes narrar as misérias de toda a ordem, físicas e morais, que longe deles sofreram. À medida que nos aproximávamos do termo da viagem os pobres rapazes, sob a nociva influência de tão lúgubres narrativas, iam perdendo o entusiasmo dos primeiros dias e se deixando vencer pelo desânimo. Ouvi um deles francamente se lastimar de irremediável loucura que cometera sem deixar sua terra, onde lhe era o trabalho escassamente remunerado, mas lhe sobravam carinhos e afeições.
Chegamos, finalmente, após longos e monótonos quarenta e cinco dias de viagem, a partir do embarque no Rio. No alto do barranco encontravam-se já à nossa espera o prefeito do departamento, Cândido Mariano, o desembargador Farnése, vindo de Juruá, de que fora na anterior organização judiciária juiz distrital, e o engenheiro Bueno de Andrada, que acumulava as funções de prefeito de Juruá e de encarregado das obras que, de ordem do governo, se estavam realizando no Território, no propósito de se facilitarem as comunicações entre os seus diversos departamentos, obras em que muito se despendeu sem apreciável resultado.
Sena Madureira, recentemente fundada pelo general Siqueira de Menezes em terreno alto às margens do Iaco, nas proximidades de sua confluência com o Purus, não passava de uma pequena povoação encravada na mata virgem. Suas casas, em ruas aliás bem alinhadas, eram de modesta aparência, construídas de madeira e em sua quase totalidade cobertas de palha de paxeúba. Higiene era cousa ali desconhecida. A água potável era extraída de cacimbas abertas ao lado de fossas, sujeita portanto a fácil contaminação. Não passava a cadeia pública de miserável cubículo, coberto de zinco, onde os presos morreriam asfixiados, se ali passassem o dia, mas a ela só se recolhiam à noite. Durante o dia andavam soltos e sem vigilância, servindo as autoridades no fornecimento de lenha e de água para o banho. Criminosos de morte eram vistos a perambular pela cidade sem estranheza por parte da população. Não me consta ter havido qualquer evasão. O comércio estava, com raríssimas exceções, entregue aos sírios, criaturas ordeiras e que pouco incomodavam as autoridades. Distração nenhuma, e, se algum de nós queria fugir à monotonia, tinha que tomar uma canoa e ir ao vizinho seringal do Caeté, onde era pelas famílias ali residentes gentilmente acolhido. Vivia-se em quase completo isolamento, não havendo telégrafo e só por via fluvial, em demorada e custosa viagem, se podendo entrar em comunicação com o mundo exterior. Era, pois, um dia de festa para a população quando um navio apitava na curva, anunciando a sua chegada. Corrida geral para o barranco, no bem explicável interesse de saber-se o que pelo mundo ia ocorrendo. Se malas de correspondências trazia o gaiola, afluíam todos ao correio, na ânsia de receberem as cartas que lhes trariam notícias dos entes queridos além deixados, notícias atrasadíssimas, mas em todo o caso notícias. Alguns, nada tendo recebido, afastavam-se cabisbaixos, com as saudades a roerem-lhes os corações. Liam-se os jornais a começar pelos de mais recente data, às pressas primeiramente e depois na íntegra, notícia por notícia. E, nesse dia, a tristeza era maior e maior a desolação, o pensamento voltado para regiões distantes, na imensa saudade dos que por lá ficaram.
Pela recente reorganização administrativa e judiciária, ficara o Território constituído de três departamentos, entre si independentes e diretamente subordinados ao Ministro da Justiça, de um Tribunal de Apelação com jurisdição em todo ele e de três comarcas subdivididas em termos. Ocupava o cargo de prefeito do departamento do Alto Purus, cuja sede era Sena Madureira, o dr. Cândido Mariano, engenheiro militar e ex-discípulo de Benjamin Constant, a quem com entusiasmo acompanhara na propaganda republicana. No combate aos cangaceiros de Antônio Conselheiro tivera, como comandante da polícia amazonense, atuação muito destacada. Ótima criatura, inteligente e de boa cultura. Não soubera, entretanto, resistir à influência algo boêmia do ambiente amazonense. A população do departamento, como a de todo o Território, era em sua quase totalidade composta de brasileiros nordestinos, acrescida nos últimos tempos de outros vindos das mais diversas regiões do país e ainda de estrangeiros de várias nacionalidades, da Síria principalmente. Alcançara a borracha elevados preços e de toda a parte vinha gente atraída pelo fascínio do ouro negro. Morriam muitos, vítimas das endemias ali reinantes, regressavam outros alquebrados por moléstias e de toda a sorte de provações. Mas a corrente imigratória crescia sempre, chegando os gaiolas atestados de gente e de mercadorias e regressando superlotados de borracha. As casas aviadoras de Belém e Manaus, contando com fabulosos lucros, facilitavam fornecimentos aos proprietários de seringais. Estava o Acre em seu período áureo e o dinheiro ali corria a rodo, gasto, aliás, com a mesma facilidade com que era adquirido. O foro era movimentadíssimo, nele se pleiteavam causas de alto valor resultantes das fáceis transações de Belém e Manaus. Não faltaria, pois, trabalho ao Tribunal. Tal o panorama de Sena Madureira, quando ali aportamos em maio de 1908.
DINIZ, Alberto. Vida que passa (memórias). Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1943. p. 41-45