“Águas coração” (1983), de Rângela, pseudônimo de
Raimunda Ângela, à época com 24 anos, da geração do mimeógrafo. Capa de
Péricles e ilustrações de Genésio Fernandes.
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O povo é quem sabe
o povo é quem diz
Não é preciso juiz
Boca do acre
conta sua história
na boca da noite
COMEÇO
Antes que tudo se perca
acabe apodreça
Não adianta fugir
porque não está na próxima esquina
e você sabe de toda a utopia
GRITO MÍSTICO
Amazônia solta teu grito
e desperta todos os leões
todas as raízes
todos os caboquinhos da mata
MARIA LAVA
a bacia
a agonia
a roupa suja
Maria lava
reza a prece
e sua angústia se desfaz em peças
O suor desce
qual o rio
que carrega
a roupa suja de maria
E o cheiro de maria
se mistura com o cheiro
do sujo da camisa do doutor
que vai já lavar
Mas o cheiro de maria
é o cheiro do sustento
do dia a dia que não se adia
NADA
Inflação
desnutrição
e nada para encher a panela
DERRUBADA
Sol calor
água
frio
terra
chove o riso que dilacera
a ecologia
riso com lábios cerrados
sem suor
sem ar
sem arma
sem chão para morar
Amazônia derrubada
é toda uma raça mutilada
passado vencido
presente perdido
RELATO
Rolou no seio da noite
a vontade de que tudo fosse belo
Amar é qualquer coisa de belo
que se perde na noite
MAS AINDA É...
No tempo dos coronéis
não se ganhava nenhum réis
o patrão comia no cuião
e o mané
se dormia
dormia mal
hoje não se sabe bem
a diferença
só se sabe é que
patrão continua comendo no cuião
e muitos
manés
ainda dormem no chão
Ilustração de Genésio Fernandes. |
ÁGUAS CORAÇÃO
Meu coração
não é menor que o seu
e nem é menor que o mar
nele navegam muitas águas
muitos barcos muitas correntezas
BEIRA DE RO
O rio desce
o rio sobe
o rio corta
entrelaça
debilita
pela libertação
das massas
das cabeças
espanta rio com tuas águas vadias
tantos tubarões vazios
que vivem a embalar
tuas águas contra a corrente
ENCANTO DA MATA
Perto da mata eu nasci
perto da mata eu vivi
hoje do pouco sabor que tenho
de olhar o rio
os encantos da mata e do saci
dos caboquinhos da mata
já não me faz sentir
que existe este encanto
RÂNGELA. Águas coração. Rio Branco: 1983.
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"Quando se sonha só, é apenas um sonho, mas quando se sonha com muitos, já é realidade. A utopia partilhada é a mola da história."
DOM HÉLDER CÂMARA
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