“Beijo seguido de pretéritos” (Rio Branco: Nepan,
2022), recente trabalho poético de Gerson Albuquerque, o seu “terceiro livro [ou não-livro] de exercícios e ensaios literários, a
crônica e a poesia se misturando fora dos quadrados enquadramentos e longe do
lattes”.
Em 2017, Gerson
publica “Palavras perdidas em meios silêncios”; seguido, em 2019, por “Limiares:
manuscrito para um não-livro – nem uma coisa, nem outra”, um livro híbrido que
reúne poemas, resenhas, crônicas e contos. Ambos publicados pela Nepan Editora.
Agora, neste início
de 2022, o autor apresenta-nos o seu “beijo seguido de pretéritos”, a dialogar
com a plasticidade não conceitual das obras anteriores, um livro cuja tecitura
se deu no contexto pandêmico (2020-2021), “nos tormentosos tempos de ataques de
vírus e neofascistas mortais, imorais, cínicos.”
“Beijo seguido de pretéritos” traz o cheiro
acre dos barrancos, em cujas margens, desenrolam-se, em seu pretérito presente,
a forjada condição humana de descaso, morte e resistência.
ressaca
entre duas curvas, a montante e a jusante, o
rio regurgita
ébrio, espirra corned beef, expele
garrafas de cerveja e buchudinha.
serpenteando entre o quinze e a judia, o rio
mija
quadrados de estofados e tampas de geladeiras,
vomita plásticos, escarra
fezes no orgulho de ser acreano.
sobriedade
bardo das águas do aquiry, raimundinho
riscou os ares da vila e da antiga brasília,
teceu
manuscritos sobre certa batalha do baía, gritou
aos pulmões que o prefeito era um fornicador,
zombou
dos vereadores, gargalhou
do herói grileiro, cagou e andou
para as pudicas da paróquia e desapareceu
debaixo da fronteira, após inventar o hino da
cidade.
certo dia ele me disse que estava morando atrás
do acre, onde
o rio fica de cócoras,
pra não ser visto pelos tratores do
desenvolvimento,
nem sentir o pixé de bosta da boiada.
permuta
as águas do rio despejam fertilidade em todas
as margens da cidade.
a cidade evacua suas obras em todas
as beiras de rio.
o rio espreita inquieto, retém
as águas, as terras caídas, os balseiros, as
obras evacuadas.
e cospe líquidos silêncios, afogando
as mágoas, os portos, as praças, as pontes,
devastando as casas e os barrancos.
ALBQUERQUE, Gerson. Beijo seguido de
pretéritos. Rio Branco: Nepan Editora, 2022. p. 13, 16 e 34
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