quarta-feira, 13 de abril de 2022

PORTAIS: poemas de Moacir Andrade

MANSA PROCURA

Para meu irmão Eurico Alves

 

Vejo a folha cair como uma sombra

e o silêncio inventar seu canto triste

na flauta abstrata desta tarde.

Corcéis de sons e cores transmutando

a insânia azul que roça a minha imagem

como um toque de líquida penumbra.

Assim me vejo – gestos transparentes

mansa procura gotejando esperas

nesse calmo sussurro de visagens

que se inquilinam frios e mansos nos meus ossos.

Essa torpe visão me acena

é um absurdo Fantasma de pranto extravasado

como o impossível gesto de uma estátua.

Mesmo assim eu caminho, lentamente,

sobre este chão de líquidas lembranças

de inconcebíveis expectativas. p. 32

 

 

PEIXE-PÃO

Para a grandeza espiritual e humanista de Roberto Tadros

 

As escamas pulam como estrelas

sob o gume da faca afiada

despertando o cheiro de pitiú

do jaraqui agora véspera

do caldo verde e grosso, com chicórias

pimenta-murupi e cheiro-verde.

O peixe se despe de sua roupa de malhas:

ticado, em postas, participa

do prato com farinha, coentro e cebolinha.

Pão do rio, pão do pobre,

bailarino aquático, sempre pronto

à armadilha de um anzol ou

ao abraço de uma rede de pescador marupiara,

Não mais as algas verde-escuras

dos igapós, nem os pulos acrobáticos

acordando astros no rio Solimões,

nem os repiquetes enchendo de ventos frios,

ou chuvas hibernais tecendo véus de sons e sonhos

no palco de uma mesa – o peixe brilha sob os olhos

e a fome.

Fora da vida é vida, é mesa farta. p. 37

 

 

BARCOS – I

Para Nilton Lins

 

Estes meus barcos são visões fantásticas

desfilando distâncias e horizontes;

com dorso inflado de mistério e sonhos,

como teatro mundos flutuando,

constroem malabarismos de ilusões.

Universo marítimo de rumos,

errantes naus que o vento acaricia,

entranhas vivas de horas e emoções,

imorredouro painel de pátrias.

Nômade altar, divino excalibur,

estrela solitária em mar pousada.

Oh! Albatroz de asas decepadas

sobre o mar a vida confinando.

Teu lar é longe, é a líquida miragem

e a superfície do mar te amparando.

Gaivota dos mares de martírio e medo,

teus marujos, intrépidos guerreiros

se confundem contigo no teu fado,

no bojo de ouro das manhãs e ocasos

como canções de quilhas navegando.

Benditos barcos de prata dos luares,

do fogo-de-santelmo de alvoradas,

dos pescadores de velas retesadas,

dos remadores de matas afogadas

e de segredos em sonhos embalados.

Barcos da Amazônia agigantada,

dos rios, lagos, paranás e furos,

barcos heróis de históricas memórias,

construtores de pátrias e de povos,

de longas travessias malogradas,

de partidas e esperas desejadas,

de lendas mil em almas divulgadas.

Barcos veleiros dos descobridores,

naufragados barcos em noites ancorados,

barcos fantasmas nos mitos povoados,

nas bocas e corações ressuscitados

e em saudades eternas relembrados.

Eu te bendigo, barco navegante,

irmão da solidão do espaço infindo.

Bendigo teus mastros apontando os céus

como orações materializadas.

Bendigo o leme, irmão do teu destino,

todos os portos onde tens andado.

Bendigo as partidas e as chegadas.

Bendigo o teu convés, um livro aberto

de heroicas e lendárias descobertas,

registro inapelável de mistérios.

Todo o teu corpo é um abraço terno,

hinário sacrossanto de canções,

magnetismo de imaginação.

No teu longo apito há um grave apelo

e a leve sensação de um nunca mais.

Ninho de amor por homens tripulado,

nave de destinos desiguais

tatuando no líquido caminho

a imagem de saudade do teu cais. p. 42-43

 

 

BARCOS – II

 

Nesta noite

várias figuras e barcos me deslizam

sem ruído sem cor e sem murmúrios

como flocos de nuvens esculpindo

um teatro de lendas e canções sem vozes.

Nesta noite

me voltam, compassadas de ternura,

visagens frias

no reencontro de apenas um veleiro

– navegantes do ontem inesquecível

onde me encontro em restos de outrora

veladas confissões de estrelas e manhãs.

Nesta noite

não sei se ouço, sinto ou mesmo sonho,

só sei que em sentimento me proponho

velar no meu silêncio estas visões.

E vejo e sinto e ouço e paro

no limiar do eu e o nada,

porque o menino há muito já se foi

e no rio Solimões, que a sede aplaca,

eu vejo a infância em transe retornando

com seu filão de ouro e de venturas.

E no voo silente dos meus versos.

a embalsamada infância se refaz

como cristais de orvalhos das manhãs.

Beiradão do rio Solimões. p. 44

 

 

OUTONO

Para a menina de ontem Maria Elba dos Santos

 

Uma folha, outra folha,

e no espaço desprendidas, açoitadas pela brisa,

rodopiam em acenos de saudade – as folhas mortas.

As folhas que foram sombras de conforto e de alento,

as folhas, que foram abóbadas de sonho e, agora,

amarelecidas e soltas,

são pontos vagabundos de saudade.

Folhas mortas, folhas fugidias,

multidão de folhas esquecidas.

Como as folhas que o outono impiedosamente abate,

o meu coração é um pedaço da ilusão que míngua,

cada vez que as folhas se cobrem de orvalhos.

Árvore desnuda, não chores as tuas folhas idas.

Outras folhas virão,

te cobrirão de milhões de folhas, verdejantes,

farfalhantes, buliçosas, primaveris.

E o meu coração que não tem folhas

chora a saudade das folhas que não vêm. p. 84

 

 

ANDRADE, Moacir. Portais. Manaus: Editora Valer, 2008.

 

Moacir Andrade. Foto: Robervaldo Rocha

Moacir Couto de Andrade nasceu em Manaus-AM, em 17 de março de 1927, onde também faleceu, em 27 de julho de 2016. Artista plástico, desenhista, escritor e poeta. Em 9 de abril de 1952 realizou a sua primeira mostra individual, no peristilo da Escola Técnica Federal do Amazonas. Foi também professor de Educação Artística na antiga Universidade do Amazonas (UA), Escola Técnica Federal, Colégio Estadual e no Colégio Militar. Um dos fundadores do Clube da Madrugada, em 1954. Pertenceu, ainda, à Academia Amazonense de Letras. Escreveu os livros: Alguns Aspectos da Antropologia Cultural do Amazonas (1978); Amazônia: a Esfinge do Terceiro Milênio (1981); Manaus: Monumentos, Hábitos e Costumes (1982); Tipos e Utilidades dos Veículos de Transportes Fluviais do Amazonas (1983); Manaus: Ruas, Fachadas e Varandas (1985); Nheengaré: ou Poranduba dos Dabacuris (1985); Pratos, Lendas, Estórias e Superstição de alguns Peixes do Amazonas: Folclore do Peixe do Amazonas (1988); Moacir Andrade (autobiográfico, 1992); Antologia  Biográfica  de  Personalidades Ilustres do Amazonas (1995); Colégio Santa Dorotéia: 1910 a 1995 (1995); 100 Anos de Arquitetura (1996); Acontecimentos  de  um  Amazonas  de Ontem (2006); Portais (poesia, 2008); Vida e Obra: 66 anos de História e Paixão pelas Artes Plásticas (2008); Segredo dos Silêncios: Cantigas de Ninar e Roda (2012); Histórias, costumes e tragédias dos barcos do Amazonas (2012); Desenhos: Memória e Testemunho (2012); Inventário dos Sonhos (poesia, 2014).

Um comentário:

"Quando se sonha só, é apenas um sonho, mas quando se sonha com muitos, já é realidade. A utopia partilhada é a mola da história."
DOM HÉLDER CÂMARA


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