quarta-feira, 1 de março de 2023

ESTRANHA LINGUAGEM

Antísthenes Pinto (1929-2000)

 

Laurindo, acocado em frente à barraca, olha tristemente o rio. Faz tempo que a mulher e os filhos saíram para o roçado e nada de chegar. Acende outro cigarrinho de tabaco-de-corda, aspira o fumaceiro e vai soprando pelas narinas de bicho, sem despregar os olhos do pretume da mata, onde o rio parece começar. Nisso um pássaro de agouro vou rasante, triscando no capinzal ali à sua frente.

– T’esconjuro, alma penada! – exclama.

O cauré pousa no alto galho da castanheira. Laurindo põem-se de pé, caminha até a beira do rio e ouve, benzinho, um gemido às suas costas. Égua, murmura, incrédulo. O Sol lança suas derradeiras tintas na curva do céu, e os alicornes capricham no seu triste canto, entreligando-se aos lamentos das águas correndo.

Laurindo invade a barraca, acende a lamparina e sente uma ferrada de espinho no pé. Abaixa-se e vê espantado uma aranha caranguejeira mexendo-se nos seus artelhos. Toca com o outro pé no asqueroso animal, ele encolhe-se e fica assombrado quando nota o arrastar de muitas aranhas em torno de sua figura.

Pula pra fora do círculo e observa, horrorizado, os caibros, a palha do teto, o chão de paxiúba repletos de aranhas gordas e peludas, tecendo a rede de espumas, sem nenhuma pressa. Mas é impossível somar-se as aranhas, são agora milhares, e a rede cresce a olho visto, espalha-se, a barraca está inteiramente recoberta do tecido branco, úmido, pegajoso, balançante. O homem mira-se endemoniado, os olhos esbugalhados não se fecham, a lamparina cai de sua mão, rola pela paxiúba, espalhando um fogaréu medonho.

Ele salta pela janela, o luar é esplêndido. As aranhas são enormes, o terreiro está atapetado delas. Ele vai pisando e espocando os bichos repelentes, escorrega, eles grudam-lhe nas pernas, no pescoço, de vez em quando uma fisgada alucinante.

Sente-se enfadado, nauseado.

A barraca estala, o fogo cresce, o vento lépido castiga a arborização. O homem vira-se, aperta nas mãos a elástica maciez das aranhas, o cérebro lavado de qualquer imagem. Milhões de aranhas vão avançando da mata, subindo e descendo das árvores, boiando nas águas do rio, ganhando o aclive do caminho do porto. O luar permitindo ao homem enxergá-las, ele certamente sentindo-se uma delas, já agora rastejando inteiramente preso ao seu papel de lançar espumas, de tecer com as patas, não mais craquentas, a estranha linguagem de um outro universo.

 

PINTO, Antísthenes. Os Suicidas: contos. Manaus: Casa Editora Madrugada, 1988. p. 97-100

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