Eneida (1904-1971)
O assunto desta crônica talvez pareça –
principalmente para a crítica cruel dos meus amigos – uma demonstração de
vaidade, sentimento inconcebível numa mulher banal. A crueldade crítica de meus
amigos não deve espantar ninguém. Só é amigo aquele que critica com justeza e
força, uma vez que aos inimigos cabe apenas, exclusivamente, destruir, negar,
liquidar. Isto posto, devo dizer que sou forçada a fazer esta declaração que
talvez melhor ficasse num canto de página, como matéria paga e título em
negrita: “À praça”. E todos sentiriam, desde logo, que a mencionada praça nada
teria a ver com o comércio em geral ou em particular. A praça seria os meus
queridos leitores e os meus citados e implacáveis amigos.
O fato é que várias pessoas querem saber
seriamente por que assino apenas o meu nome de batismo, por que risquei
definitivamente meus sobrenomes. Há os que dizem: qualquer mulher com o nome
igual ao teu poderá se dizer autora de teus trabalhos. Outros acham que parece
um esnobismo, um cabotinismo, essa história de aparecer sem o nome do pai,
principalmente. É por tudo isso que vou declarar à praça que não tenho
sobrenomes, que nunca usei e que sinto-me profundamente feliz homenageando de
alguma maneira todas as Eneidas existentes neste país. E deve haver lindas,
inteligentes, boas; deve haver feias, más, tristes, pobres e a todas homenageio
fraternalmente, pois que afinal somos irmãs, no nome.
De onde vieram vocês, como e por que se chamam
assim? O meu nome foi um presente – sim, perdoem todos, mas gosto muito dele – de
uma mulher maravilhosa, tão bela, tão alegre, tão inteligente que, apesar de
estar de mim definitivamente separada há anos, muitos anos, ainda existe dentro
de meus olhos. Dela sei de cor, até hoje, os gestos de mãos longas, o riso de
dentes claros, a alegria constante e o som que algumas palavras adquiriam em
sua voz. Foi com ela que aprendi o valor de certas palavras e determinados
sentimentos: morte, amor, vida, sonho, luta. E outras mais longas: lealdade,
persistência, coragem. Principalmente coragem.
Para dizer verdade, devo confessar que tenho
sofrido muito com o meu nome. Os trocadilhos – infames, muito infames – já
puseram frios e arrepios na minha espinha dorsal. Tenho livros oferecidos por
autores nacionais dizendo, por exemplo, assim: “a última edição da Eneida”. Outro
diz “a mais primorosa edição”. Como veem, tive razões de sobra para os
arrepios. Havia também (ou melhor, ainda há hoje, se bem que em menor escala)
cavalheiros que depois de apresentados sentiam coceiras culturais e
perguntavam: – “de que Virgílio?” ou coisa parecida. Também não poderei
esconder que alguns falavam em Homero, confundindo assim gregos e latinos. Afinal,
não dizem vários autores que Virgílio andou copiando Homero para escrever a Eneida?
Felizmente os tempos mudaram e os rapazes do futebol tomaram conta de tudo
neste país, jogando para o lixo definitivo Virgílio e outros cavalheiros
desnecessários.
Como meu nome de batismo deu todo esse trabalho
à minha vida, resolvi um dia mantê-lo solto, limpo, sozinho, meio desafiante. E
assim estou com ele homenageando, como disse, todas as mulheres que tiverem um
nome idêntico. O que tenho feito na vida é tão simples, tão banal, tão possível
de ser realizado por todos, que meus sobrenomes nada viriam acrescentar ou
grifar.
Assim fica bem claro que assinando como assino
não levo nenhum cabotinismo, nenhuma vontade “de me faire remarquer” (como se
dizia no meu tempo de Sion) e também nenhum desdouro pelo nome simplório de meu
pai, caboclo paraense semianalfabeto que um dia a borracha enriqueceu. Minha
árvore genealógica é simples, de galhos curtos, completamente despida de grandeza.
Uma árvore perdida entre milhares de árvores da floresta amazônica.
Saudando as Eneidas e pedindo que usem de mim,
de meu nome, fazendo dele o que bem lhes aprouver, deixo à praça esta
declaração.
ENEIDA. Cão da Madrugada. Rio de Janeiro:
Livraria José Olympio Editora, 1954. p. 144-146
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Eneida (1904-1971), jornalista, militante política, feminista e escritora paraense, falecida no Rio de Janeiro. Autora de Terra Verde (1929, poesia), Cão da Madrugada (1954, crônica), Aruanda (1957, crônica), História do Carnaval Carioca (1958, ensaio) e Banho de Cheiro (1962, crônica).
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