domingo, 30 de julho de 2023

PENSANDO SOBRE CERTAS GERAÇÕES DE POETAS ACREANOS

João Veras (07/09/21)

 

Este texto foi lido por ocasião do lançamento virtual do livro Sonetos apolíticos, de Dalmir Ferreira, o que se deu na data de 7 de setembro de 2021, em plena pandemia do corona vírus.


Eu gostaria de colocar o livro do Dalmir – Sonetos Apolíticos - num contexto que envolve expressões poéticas de outras gerações de tempos passados e contemporâneo. 

Do presente, Dalmir Ferreira (com Sonetos Apolíticos) e Danilo de S’Acre (com Fractais). Do dado tempo pregresso (anos 80 do século passado), Betho Rocha e Bartolomeu. E um pouco mais ao longe, Juvenal Antunes.

A respeito de Betho e Bartolomeu, vou me valer da análise, realizada por Laélia Rodrigues em seu livro Um Caminho de Muitas Voltas, de 2002, a partir das obras Aqui Jaz de Baton Lilás (1984) De Betho Rocha, e Vagar vagando (1980) e o Sonho Perdido e etc (1982, de Bartolomeu. 

Em Bicho de Sete Cabeças, artigo que abre o livro Um Caminho de Muitas Voltas (2002), a professora e pesquisadora da literatura acreana, Laélia Rodrigues, analisa a produção poética dos dois acreanos Betho Rocha e Bartolomeu, os quais ela aponta como detentores de um projeto literário distinto não só das gerações anteriores de poetas acreanos como também da maioria da sua própria geração, no período da década de 80 do século passado, quando publicaram suas obras.

Segundo a pesquisadora da literatura acreana, Betho Rocha e Bartolomeu se diferem, enquanto projeto poético, tanto das gerações passadas, quanto da maioria dos seus contemporâneos e que coincidiam elementos comuns em suas poéticas.

Primeiro, pelo fato de que não se filiam às formas fixas de poemas, com as suas métricas e rimas.

Segundo, por que se negam a imprimir tematicamente uma poética de busca pela cor local de cunho pitoresco, exótico e historicista das oficialidades.

Terceiro, por que, sob o aspecto das suas linguagens, manipulam o uso da “linguagem dos símbolos”, pela qual o eu lírico busca significações que ultrapassam “à lógica do diálogo objetivo”, incitando “o leitor na busca das significações  novas vislumbradas na beleza das imagens poéticas, a fim de descobrir tudo o que povoa os textos e vai além deles.”, e “além das superficialidades dos clichês caraterísticos da maioria dos poetas de sua geração no Acre.” (Idem)

E quarto, por que se valem de um lirismo que revela conflitos existenciais e indenitários na busca de si ou algo a mais a serviço de um eu narcísico a partir da vivência do meio sociocultural.

Mais de quarenta anos depois, nos vemos diante de dois poetas contemporâneos cujos projetos estéticos já se diferem entre si, de pronto, na forma. Dalmir pelo uso de sonetos e Danilo pelas formas livres do verso.

Assim, considerando os processos da poesia acreana, enquanto Dalmir, no aspecto formal, se associa à tendência sonetista presente na sua gênese histórica, Danilo se conecta diretamente à expressão poética de Betho e Bartolomeu, também, em seu tempo, minoritária, na década de 80 do século passado.

Dalmir e Danilo não aderem a busca de uma cor local, tão comum nas gerações iniciais de poetas acreanos. Nem pitoresca nem desenvolvimentista (a serviço das oficialidades do poder institucional), característica esta que os identificam a Betho e Bartolomeu.

 

O SONETO E O VERSO LIVRE DA LINGUAGEM DOS SIMBOLOS

 

Como se anuncia no título de sua obra, o que parece ser mais urgente, a primeira vista, para Dalmir Ferreira não é o dito, mas o como é dito. O que se expressa a partir da escolha exclusiva de uma estrutura canônica de poema, o soneto.

De fato, o nome da obra Sonetos apolíticos já anuncia a forma Sonetos de conteúdo apolíticos, o que pode ser interpretado também como sonetos dedicados aos políticos. Ao final, ambos os sentidos são aceitáveis coetaneamente expressando de forma potente o sentido da obra.

Mesma intenção parece perseguir Danilo com a sua Fractais. Figuras geométricas, uma forma, seguida do conteúdo: abstrações poéticas em imagens diluídas. No próprio subtítulo, há um subconjunto que replica a regra forma/conteúdo: abstrações poéticas em imagens diluídas.

O que acontece de tal modo que, em ambos, a forma precede – se anuncia - a substância. O que pode ser explicado, talvez, pelo fato de os dois serem também artistas da imagem. Artistas plásticos, portanto das formas e não da palavra como substância. Isto é uma hipótese.

Em sua obra, Dalmir mantém-se preso a uma forma fixa e pré-determinada de poema. Não são sonetos de amor, como popularmente é conhecida esta forma de poema. Dalmir usa os materiais clássicos (a métrica e a rima) para substanciá-los de desassossegos sociais e políticos. O que não é novidade na literatura acreana. Nem na forma nem no conteúdo.

O soneto Acre, de Juvenal Antunes, de 1923, já destila a verve crítica, pessimista e irônica do poeta sobre esse lugar. Com isso, no aspecto estrutural, Dalmir estaria vinculando-se à gênese acreana do modo de se fazer poemas, visto que era muito comum no Acre o uso de sonetos pelos poetas inaugurais.

Enquanto Danilo experimenta com a manipulação dos versos em suas formas livres de métricas e rimas, sendo quase performático, senão completamente diante do que se considera a forma tradicional do verso, ele vai reciclando sentidos simbólicos do que sai sua poética sem perder, a exemplo de Dalmir, os vínculos com a realidade social a qual se encontra profundamente voltado, e que se amolda à forma com o que sua tradução se torna enviesada pela tendência performativa, a que Laélia vai denominar de “linguagem dos símbolos”, por onde o eu lírico busca significações que ultrapassam “à lógica do diálogo objetivo.”, pela qual se “fustiga o leitor  na busca das significações  novas vislumbradas na beleza das imagens poéticas, a fim de descobrir tudo o que povoa os textos e vai além deles.”, com o que a pesquisadora vai caracterizar a poética de Betho e de Bartolomeu, a qual Danilo, como vejo, não só se filia como a radicaliza ainda mais.

Assim, considerando os processos da poesia acreana, enquanto Dalmir, no aspecto formal, se associa à tendência sonetista presente na sua gênese histórica, da qual Juvenal Antunes é um de seus expoentes, Danilo se conecta diretamente à expressão poética, também em seu tempo, minoritária, na década de 80 do século passado, na poesia de Betho e Bartolomeu.

 

DOIS CRÔNISTAS

 

Penso que a poesia acreana, aproveitando-se de sua forma curta, tem um pé muito presente no relato, na crônica, nos causos, na necessidade de contar, posicionando-se, reflexivamente, a respeito das coisas e fatos da vida do lugar.

Danilo conta de uma maneira peculiar, digo por onde parece não haver relatos, do tipo linear, com certeza.

Dalmir é declaradamente um contador da pequena aldeia (“o nosso Acre de cada dia”, soneto XI), daquele molde, num aspecto da gama de poemas, que procura não dar nome aos bois. Vai construindo causos como que um jogo de adivinhações. Quase como quem não quer se comprometer pessoalmente nessa terra de muro baixo. Quebra cabeças da história local. Lendo seus sonetos sempre vem a indagação: de quem, que é vivo ou morto, ele está falando mesmo?

Os dois relatam sobre o que veem no campo da existência social no mesmo lugar em que vivem e de onde são naturais. Ambos observadores mais próximos do momento presente da perdição que para Danilo não tem futuro (“para onde iremos se não tem pra onde ir, p. 76). A ausência de destino, nos seus caminhos “silente” e “dolente” (p. 14), o que para Dalmir significar não ter presente: “Este é um livro do meu lugar/e de meu tempo para o futuro/tempo sem luz, tempo escuro/em que perdemos nosso situar (soneto II).

Ambos, fincados no tempo contemporâneo sob um olhar de cor niilista, aquele que não acredita mais na redenção da vida social. Para Dalmir, “Só para repetir nós viemos”, Soneto I), no presente onde “nada é novo”(soneto I) e de “futuro incerto” (Danilo, p. 76).

Afinal, os dois parecem ler, da mesma forma crítica, a realidade em que vivem e observam. Para Danilo “O mundo acaba e tudo continua sendo a mesma coisa de sempre” (p. 56). Para Dalmir “Passado e futuro que nada são/inútil fruto que o presente gera”. (soneto LII). A indistinção das palavras diante do que traduzem como uma realidade imutável social e politicamente.

Por eles, como poetas de uma geração, é possível saber como é viver o tempo presente no Acre. Em desesperança no campo coletivo. Esta característica, presente em Juvenal Antunes, mas não expressa no lirismo autobiográfico existencial de Betho e Bartolomeu, por onde as questões sociais, pelo menos em cores expressas, não ganharam relevo como ganharam nos poetas contemporâneos do agora e mesmo no de lá dos tempos iniciais.

 

SEUS SUJEITOS-TEMAS

 

Os sujeitos de Danilo são os que estão no mundo, na rua, nas feiras, mercados e praças. Estão expostos na vida do cotidiano para quem “à vista a vida basta” (p. 16). Os de Dalmir são os que estão escondidos, embora públicos, o que estão na tradição, nas instituições. Os tipos políticos. Os que estão fincados nos relatos históricos oficiais. Estão na sua memória política chapa branca. Mas são também as suas presas, o povo.

Danilo fala das pessoas para falar do poder. Dalmir fala do poder para falar das pessoas. Um é o motivo do outro que se entrelaçam na vida real. Ambos não nomeiam, não individualizam. Tudo é uma questão da relação entre o poder e o coletivo, “a geração de sofredores” (Dalmir em soneto XI), a que vive “de promessas feitas em fatias indivisíveis” (Danilo na p. 22).   

Vejo em Dalmir uma preocupação em ser patente. Um desejo educativo, quase à beira do normativo. Ele quer falar para as gentes e ser entendido. Há um desejo de diálogo com o leitor. Em Danilo, não tanto, pelo menos de forma explícita. A preocupação do Danilo se funda mais na construção simbólica da forma de dizer. Ele experiência a linguagem, no que não resulta uma clareza didática. É o que Laélia vai denominar de “linguagem simbólica” pela qual cabe muito ao leitor a tarefa de garimpar o entendimento “a fim de descobrir tudo o que povoa os textos e vai além deles”, segundo o ensino de Laélia.

 

NENHUM É PITORESCO AMAZÔNIDA

 

Nem inferno nem paraíso. Onde estão os animais, a floresta misteriosa e os povos selvagens, as lendas, a barbárie versus civilização, o passado passado, o meio ambiente como a cor local de disputa, o exótico... Vida que se vive num mundo de expressas afetividades e antipatias. Um mundo que se vive e se viveu des-ignorado. Um momento de incômodos só pode produzir sujeitos poetas inquietos.

Dois urbanos. Mas um, Dalmir, de infância seringal (nasceu no Seringal Bom Destino). Mas outro, Danilo, de experiência transatlântica (morou por anos na Itália). O que vai determinar suas temáticas. Estão expressos em suas experiências os contornos estilísticos de cada um fincados num tema recorrente, suas vivências no lugar de vida presente e memorial.  

 

O NÃO LIRISMO E O TOM ANTI-ÉPICO

 

Em nenhum dos dois percebo intenções líricas. O mundo pega fogo em suas penas. A coisa como ela é vista por quem (acre)dita (Danilo) e des(acre)dita (Dalmir).

Em nenhum dos dois impera o discurso da florestania/sustentabilidade, essa espécie de lirismo político inventado pelo poder local contemporâneo do período histórico de suas produções poéticas. Tal ausência vai significar o desvalor dado por ambos a tal discurso.

Em Dalmir e Danilo, cada um à sua maneira, mas potentemente em Dalmir, constato o tom dominante de uma literatura anti-épica, isto é, a expressão de um poema épico às avessas, pelo qual a voz dominante não é do herói que vence (o personagem das histórias oficiais), mas aquele que se encontra em estado perdedor, que é o povo.

Trata-se de um desvendamento da história oficial, a da injustiça colonial e seus personagens arquétipos. A que busca a salvação do povo, que só é heroico por resistir ao poder político que lhe explora, domina, racializa. São narrativas a respeito das armadilhas em que caem em sua “triste sorte” (soneto XIX), de “massa de manobra” (soneto XXII).

Dalmir fala para esse povo (constata e adverte), enquanto Danilo fala a respeito (mostra, joga na cara sua miséria).  Para ambos, impera uma inércia social, daí o pessimismo apolítico e fractal. O contrário da festiva e enganosa florestania que inventa um povo revolucionário para si.

 

PARA NÃO DAR ASSAS À COLONIALIDADE LITERÁRIA

 

Especialmente no que diz respeito às formas, fosse querer moldar a poética de Dalmir e de Danilo à historicidade canônica da chamada literatura mundial (replicada pela brasileira na qual a acreana não está contida) – que dispõe de um estatuto universal do fazer poético como algo progressivo que começa e se desenvolve na Europa se espraiando a sua adoção normativa pelas, por ela considerada, periferias -  festejaria a ideia de atraso cultural da poética acreana apontando, no caso, Dalmir como um parnaso dos fins do século XIX e Danilo, Betho e Bartolomeu uns modernistas de 22, do século XX.

Creio que aceitar isto – como um carimbo de subdesenvolvimento literário - é aceitar à condição histórica-colonial, instaurada há mais de 500 anos na relação da Europa, que busca se impor como o Centro (avançado, moderno) e, como tal, produtor e difusor de poder e saber padrões ditos civilizatórios do modo de viver e, no caso, conceber a arte, a literatura. 

Cada lugar constrói, por obra de seus, o modo de se relacionar com as coisas do mundo e consigo próprio. Dalmir, Danilo, Juvenal Antunes, Betho Rocha e Bartolomeu são poetas e como tais produtores estéticos e históricos de seu meio e tempo.

Todavia, é indispensável não perder de vista que a re-existência artística-cultural – a luta pelo direito de ser e criar, de ser próprio, - carece da manutenção da resistência politica e cultural frente aos sistemas de educação e de cultura estatais que nos move para a condição inerte de consumidor da matriz, isto é, colonizado, explorado e racializado. 

 

POR FIM

 

Como procurei demonstrar aqui rapidamente, Sonetos Apolíticos é uma obra que se comunica com outros tempos e outras formas, contemporâneas ou não, de expressão poética produzida no Acre. Vincula-se a um conjunto de manifestações estéticas plurais as quais se pode denominar de literatura acreana.

Uma obra que faz jus à sua história, tanto na forma quanto no conteúdo, que não ignora a vida vivida. A do tipo que nos conta e reflete em que lugar e tempo vivemos. Justamente como fez Juvenal Antunes, em 1923, com o seu soneto Acre pelo qual destila a verve crítica, pessimista e irônica a respeito desse lugar, tão insistentemente o mesmo. 

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