João Veras 29/08/23
Para o artista local Diogo Soares
O que aqui será dito pode ser entendido como a
história de um dos modos como é produzida e mantida a colonialidade estética no
Acre. Mas se for difícil entender essa tal de colonialidade, então considere o
que será dito aqui como a história de como o artista local vem sendo
cunhado/tratado de alternativo ao longo das 48 edições da Feira Agropecuária.
O maior evento de massa do Estado do Acre é a
Expo Acre, que é realizada pelo governo estadual todo ano em Rio Branco e agora
também em Cruzeiro do Sul.
Muito embora o evento tenha um caráter multi
temático – de comércio em geral, entretenimento e negócios - centrado na
agropecuária, o seu carro chefe de atração de público são sempre shows musicais, a velha cultura, cuja
divulgação de massa se dá de forma diferenciada.
Existem as chamadas atrações nacionais. São
o(a)s artistas divulgados no marketing do evento com ênfase e entusiasmo nome
por nome, foto por foto, trilha por trilha, história por história. E existem
o(a)s artistas cujos nomes não constam nesse material. É que estes não têm
direito a ter nomes próprios nem de serem considerados nacionais. Ele(a)s são
reduzido(a)s a alcunha coletiva de artistas locais e também artistas da terra.
Mas o tratamento diferenciado não fica só na
divulgação e nas alcunhas.
O(a)s artistas locais não são convidado(a)s
pela organização do evento. Para participarem ele(a)s precisam fazer as suas
inscrições. O(a)s inscrito(a)s passam por uma seleção. Devem concorrer entre
si. O que não acontece com o(a)s nacionais, isto é, com aquele(a)s que a
organização do evento – via empresa terceirizada - considera como atração
nacional que são invariavelmente cantores, cantoras e duplas sertanejas. Os
ditos nacionais estão na categoria que os franceses vão chamar de
hors-concours, os fora de concurso, no caso, os fora de (ou fura) editais
públicos. Tudo legalizado.
De fato, o processo de escolhas dos nacionais
não passa por critérios públicos comumente estabelecidos em editais, senão pelo
critério de gosto que eu suponho que a organização do evento suponha serem os
gostos da massa, isto é, de toda a população, ou das próprias autoridades
governamentais do momento. Nunca se ouviu falar em pesquisa no sentido do
atendimento à vontade popular.
Mas o diferencial de tratamento não fica
somente nas formas de divulgação, alcunhas e seleção.
Os valores dos cachets, a qualidade dos espaços
de apresentações, dos camarins, da aparelhagem de som e luz, regalias outras de
produção como estadias, alimentações e transportes e até as acomodações
reservadas ao público, tudo é profundamente diferenciado entre os locais e os
nacionais. O do bom e melhor para estes. O do que for possível para aqueles.
Eis a medida do valor que se dá a uns e outros. Estou exagerando, né?
Para dar um exemplo contundente, o Parque de
Exposições em que a feira é promovida tem uma arena construída especialmente
para a realização de shows. A esse espaço foi dado o nome de Arena de Shows
Amilton Brito, feito em homenagem ao empresário já falecido que, por muitos
anos, foi responsável pela contratação dos artistas nacionais para a Feira. A
homenagem sempre vai para o dono do gosto.
Nessa arena, os artistas locais não se
apresentam. Esse palco especial é
exclusivo dos artistas nacionais. Exceção a outra categoria de artistas muito
em voga no show business que são o(a)s gospels. Estes estiveram no palco
principal e tinham um palco próprio à sua disposição no Parque, o Palco Gospel.
Tá pensando o quê, Jesus!
A Feira criou uma espécie de apartheid, digamos
estético, de caráter racializante. De um lado os melhores/daí superiores e
merecedores do ideal. De outro os piores/daí inferiores, merecedores do
péssimo. Pense num condenado da arte! Estou exagerando, né?
Tem mais.
Os artistas locais se apresentam no que a
organização da feira chama de palcos alternativos, aqueles minúsculos espaços
localizados em lugares em que a música divide, melhor dizer concorre, a atenção
com outras atividades. Não existe uma arena de shows exclusiva reservada aos
artistas locais. Estes ficam espalhados por espaços que a administração do
evento por sua conta e gosto decide destinar. Nada definitivo como a Arena de
Show. Uns em stands cobertos, outros nem tanto. Terminada a Feira, desaparecem.
Existem palcos que ficam literalmente nas ruas
do Parque de Exposição. No meio do caminho – comendo poeira no entre lugar – no
sem-lugar onde as pessoas passam para ir e voltar de algum lugar. O caminho é
um meio, não um fim. Um palco na rua é o acaso talvez encontrado.
O fato é que tanto nos palcos alternativos
quanto nas ruas, as condições de trabalho para os artistas e também para o
público assistir não são adequadas. Para dizer o mínimo, não há disponibilidade
de camarins para o artista nem de assentos para a plateia, por exemplo.
Na edição da Expoacre deste ano, a Fundação
Estadual de Cultura Elias Mansour inovou com a criação de dois palcos
simultâneos, o velho alternativo, desta feita cunhado de Palco Culturarte,
destinado às apresentações dos artistas locais, e o Palco Sertanejo, este
segundo para dar espaço aos chamados sertanejos locais.
Em cada um dos palcos se apresentaram 27
artistas. Uma espécie de apartheid intra local. De um lado, todos. Do outro, os
sertanejos locais. Uma novidade estranha não fosse o normal e estratégico modo
colonial de estratificação. Estou exagerando, não é?
Paralelo a tudo, não esqueçamos do Palco Gospel
com a sua intensa programação de bandas e nomes locais.
Neste ano, os espaços onde estão localizados os
palcos alternativos, como só acontece invariavelmente todo ano, não são
adequados. O Palco Culturarte ficou localizado em meio aos brinquedos do parque
de diversão, entre a fila da roda gigante e a praça de alimentação, além de
estar ao lado de um bar cuja altura do som era maior que a do palco.
Literalmente no meio do ruge-ruge. Lembro que ano passado ou em outros, o palco
alternativo estava localizado ao lado dos banheiros químicos. Parece que o que
resta para os locais é a poluição auditiva, olfativa... Estes espaços também
costumam não ter nenhuma segurança para os artistas. Os deste ano não tiveram.
É um cada um que se segure!
A FEM informa também outra inovação, a de que
os artistas locais passaram pelo crivo de uma comissão de avaliação. O que
nunca havia ocorrido, dizem. Na ficha de inscrição, o(a) artista proponente
teve que enviar um portfólio com relato da carreira profissional e documentos
comprobatórios. Por esta condição, parece que ficaram de fora do certame os que
não são considerados profissionais.
O que não se tem notícia é do rol de critérios
que levaram a comissão fazer a seleção dos 27 artistas locais e 27 sertanejos,
no universo de 216 propostas que recebeu. Aí fica a pergunta que não quer ficar
quieta: o que levou as demais 162 propostas não serem aprovadas?
No paralelo, seguem os gospels, para quem não
houve ficha de inscrição e seleção pela FEM. Como, com que critérios e por quem
foram escolhidos? Mais umas inquietas indagações.
Como se pode ver, os artistas locais são os
únicos que supostamente passaram pelos critérios e processos de avaliação dos
tipos comumente constantes da política cultural do Estado com a formação de
comissão ao estilo das comissões das leis de cultura. Muito embora, no caso,
não se tem notícias de comissões, processos, critérios e editais relacionados,
mas tão somente de uma ficha de inscrição e do resultado, claro!
Já quanto ao(a)s artistas nacionais, os
critérios não são culturais do tipo senão do mercado da indústria cultural
oriunda do brasilcentrismo. Vale o que
está fazendo sucesso a partir do centro econômico-cultural do país.
A escolha e contratação são terceirizadas. São
empresas privadas que se responsabilizam pelo contrato e têm o domínio da
bilheteria, haja vista que, enquanto para assistir os artistas locais a
população não paga, para assistir os nacionais ela paga. Os preços praticados
este ano foram nas faixas de oitenta reais (individual) a quatrocentos e
cinquentas reais (camarotes), podendo chegar até três mil e quinhentos reais,
caso dos camarotes empresariais. Pobre não pode entrar na arena de shows para
assistir os nacionais, mas pode assistir os locais.
Este ano, em razão da grita dos artistas
locais, a FEM teve que conceder um pequeno aumento no valor dos cachets que
havia estabelecido inicialmente. É que os preços ofertados não eram valores,
eram humilhações. Estou exagerando, não é?
Ademais, para quem acha tudo isso pouco, é
preciso dizer que, do preço contratado, se impôs a retenção do percentual de
30% em favor da empresa terceirizada repassadora dos pagamentos. Além desse
percentual, o artista se obriga a recolher, em favor da Prefeitura Municipal,
os 5% de Imposto sobre Serviços-ISS. E dependendo do valor, ainda podem ser
retidos do seu cachê, em favor do governo federal, valores referentes ao INSS e
Imposto de Renda.
Na ficha de inscrição, é possível saber dos
valores dos cachês dos artistas locais. Só para se ter uma ideia, um show com
dois artistas locais vale novecentos reais, dos quais serão descontados os 30%
em favor da empresa contratante mais 5% de ISS em favor da Prefeitura... Feitos
os descontos, cada artista local – no caso de dupla - leva para casa como
pagamento de seu trabalho o valor de duzentos e noventa e dois reais e
cinquenta centavos. Isto é, se não bebeu e comeu nada e se foi e voltou de
carona para a Feira.
Quanto aos valores dos cachês dos artistas
nacionais não se tem notícia. Não sai em Diário Oficial. É segredo de Estado
todo ano. Pelos preços praticados no mercado, o que se sabe é que são
estratosféricos em relação aos cachês dos artistas locais, podendo chegar até o
valor de um milhão (incluindo passagens, estadias, alimentações,
transportes...). Mas para ser objetivo, a média paga no evento não deva chegar
a casa dos quinhentos mil reais. O que é muito!! Estou exagerando, não é?
No paralelo, seguem os gospels, cuja previsão
de valor e pagamento de cachê não se tem notícia em lugar nenhum. Tocaram de
graça? Quanta graça!
O que faz um merecer tanto e outro quase nada?
No imediato, o papel da indústria e mercado culturais e religiosos casados com
os poderes públicos. No histórico-estrutural de longa data, a força da
colonialidade estética.
Estas condições acimas descritas praticadas
pelo Estado do Acre no seu maior evento são normas de estado. São produtos
histórico-estruturais de longa data, daí coloniais. Certamente naturalizados
pela educação do senso comum. Do sempre foi assim e assim sempre será.
Deste evento aqui narrado, muito provavelmente
não cabem bosquejos de subjetividades senão o registro cru da concretude da
vida do artista local no seu local de vida em que é tratado como um
alternativo, isto é, “Que ou quem não segue ideias, interesses ou tendências
dominantes.” Um dos sentidos do verbete alternativo no Dicionário Priberam da
Língua Portuguesa.
Liga, não, pessoal - diz a voz saída do
firmamento - fica a promessa, repetida há 48 anos, de que ano que vem [o pior]
vai ser melhor. Estou exagerando, não é?
Foto do site Ac 24horas que registra a cantora acreana Abigail Sunamita acompanhada pela instrumentista também acreana Gabi, no palco Alternativo Culturarte da Expo-Acre 2023.
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DOM HÉLDER CÂMARA
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