quinta-feira, 21 de setembro de 2023

POEMAS DE DALCÍDIO JURANDIR

NOTURNO

 

Eu e o silêncio

da sala,

leio e penso.

Ninguém me fala

do luar que há lá fora.

 

Hora a hora

a vida passa, como uma carícia...

 

E eu, no silêncio,

da sala...

Silêncio. p. 79

 

 

OS JAMBEIROS

 

No silêncio do arrebalde

A manhã amadurece os jambos

E anima a festa dos pássaros.

E os jambos são tão gostosos

De um gosto ingênuo de ternura

Macio e selvagem,

Gosto de boa terra orvalhado e cheirosa

De água travessa a cantarolar no fundo das espessuras,

De alegrias anônimas,

De sossegos vegetais pelo mundo,

De infâncias perdidas que ficaram,

Como raízes humanas nas fruteiras.

 

Quando vais entre os jambeiros

Colher os jambos maduros,

As árvores te cobrem de orvalho

E o céu se veste de sol,

E vens coroada de orvalho como toda

Enfeitada de pérolas

E envolta de luz como se fosse toda

A manhã de verão

Com as mãos cheias de jambos... p. 21

 

 

TEMPO DE MENINO

 

Asa de garça

passou por cima da minha cabeça ao entardecer...

Chuva encheu a lagoa.

 

Me lembro de Cachoeira

ao entardecer, no tempo do inverno.

O quintal da casa

cheio d'água,

para minha alegria de menino levado,

doidinho pela água como filhote de pato brabo.

Alegria de brincar com meus navios de miriti

E de espantar as sardinhas.

Me lembro das piaçocas,

Das marrecas,

Dos tuiuiús passando muito alto

indo embora pros lagos desconhecidos.

Me lembro daquele moinho de vento

Parado no meio das águas.

Montarias levando meninos para as escolas.

O Velho Mané Leão, surdo e trôpego,

Subia a torre da igreja para bater a ave-maria.

 

Gaviões,

Colhereiras,

marrecas, piaçocas,

tuiuiús

passavam por cima da igreja...

 

Eu não pensava nos reinos encantados

que há nos livros caros dos meninos ricos

(quando eu conhecia os contos de Perrault)

Sabia histórias que a Sabina, cria de casa, me contava,

Pensava nas canoinhas de miriti bubuiando nas águas,

nos matupiris que comiam os miolos do meu pão,

nos cabelos verdes da mãe d'água,

no choque dos puraqués,

no ronco dos jacarés,

nos sucurijus que podiam vir

buscar a gente

quando estivesse descuidada

tomando banho no quintal de casa...

(quando eu pensava nas fábulas de La Fontaine).

Eu tinha a Sabina, cria da casa,

Para me ensinar a linguagem dos bichos marajoaras.

Eu me mirava, horas e horas, no espelho das águas,

E quando o vento vinha arrepiando as águas,

O meu retrato se arrepiava também, se desmontava,

[perdia,

o sério de um retrato bem tirado

para ser uma criatura que o vento bolia

no espelho das águas...

 

Não vejo mais nenhuma asa de garça...

Não vejo mais nenhuma paisagem de água e mururé

[em volta de mim

 

Infância, tempo de menino,

Sucuriju te levou p'ro fundo das águas

Com todas as histórias de Sabina

As canoinhas de miriti

Os cabelos da mãe dágua

O acalanto da rede no balanço bom demais que

[mamãe me fazia...

É por isso que com meu velho dicionário

Leio os contos de Perrault

E Compreendo a fala dos bichos de La Fontaine. p. 39-41

 

 

Velho Mané Grigório

 

A febre do Arari matou meu amigo Mané Grigório...

Mané Grigório me contava histórias

De fazendeiros ricos e honrados

Que iam, de noite, marcar o gado

Das “fazendas nacionais”...

 

Aquela sua mão dura como o couro

Quebrou muito boieco nos dias de ferra!

Peiou garrotes que faziam medo pro “seu” Guimar!

Curou bicheira dos bezerros

E puxou peito de vaca braba como onça,

Que enchia as cuias de leite espumoso,

Gostoso como luar na noite quieta

da gente, trepada nos paus da porteira,

comer carne com pirão de leite

E ouvir histórias da Mãe de Fogo...

 

Mestre das malhadas,

Chefes dos embarques,

Chefão na condução,

Sarado na castração!

Novilho ergueu a cabeça na ponta do gado

Vera, diabo, vera!

Que nada, é teimoso!

Trepida o alazão nas terroadais

Atrás do novilho!

Velho Mané Grigório finca o pé no vazio do seu cavalo

e laça o bruto só na mão virada!

Vaqueiro de brio, feitor como poucos

Lhe dessem a fazenda pra tomar conta

O gado aumentava que nem um milagre!

 

Cansado, já velho, fez um chalé em Cachoeira...

Era longa a sua carreira!

Fazia, devagar, no remanso das tardes,

os relhos e esticando as cordas com seus netos

Contava pra gente histórias:

Ferras!

Embarques!

Malhadas!

Patrões unhas de fome

Brancas de estimar...

 

Velho Mané Grigório:

Você foi um santo de tanto vaqueirar!

S. Sebastião lhe deu o lugar que merece,

Muito bezerro chorão pedia por você quando ficava bom das

bicheiras...

Você que rezava pro santo na tiração das esmolas.

Beijava, benzendo-se, as fitas azuis, verdes, cor de rosa do santo...

S. Sebastião, S. Sebastião, santo dos vaqueiros!

O senhor bem sabe a fama do velho Mané Grigório

por estes campos, S. Sebastião! p. 25-26

 

JURANDIR, Dalcídio. Poemas impetuosos ou o tempo é o do sempre escoa. Organização Paulo Nunes. Belém: Paka-Tatu, 2011.

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