quarta-feira, 11 de outubro de 2023

BENEDICTO MONTEIRO: O Cancioneiro do Dalcídio

Benedicto Monteiro (1924-2008), numa intertextualidade com fragmentos dos romances de Dalcídio Jurandir (1909-1979), compõe o seu “O Cancioneiro do Dalcídio”. Um livro cheio de delicadezas e encantos.

Tenta recordar noites, serões, em que a mãe, com ele no colo, costurava à luz da lamparina. Não via senão a mãe, à janela, com o farol sobre a enchente, a apanhar da água com a zagaia a toalha da mesa. Ou naquela noite em que Merência paria no curral, ao pé do atoleiro e quando a Felicia, no chalé sabrecada, levantou o rosto, ou a aflição do mundo?

Dalcídio Jurandir, Primeira Manhã, p. 131

 

 

RECORDAÇÃO

 

Ao recordar noites

vê a mãe

com ele no colo

costurando

à luz da lamparina.

 

Vê só a mãe à janela

com o farol sobre a enchente

a apanhar da água

com a zagaia

a toalha caída.

 

Enquanto no curral

pare uma vaca

ao pé do atoleiro

Felícia

a meretriz

levanta o rosto

com toda a aflição do mundo. p. 37

 

 

Andou pela beirada do rio, saltando nos barcos podres, trapiches velhos, espiou o estaleiro do mestre Afonso. Arqueado no mangue, o navio morto varava a noite com um chaminé de aflição e ferrugem.

[...]

Lá no fundo, a lamparina clareia-não-clareia o joguinho de cartas, gente ou meios fantasmas? e as coisas, tão nenhumas, ao som de um pássaro-preto na gaiola debatendo-se.

Dalcídio Jurandir, Primeira Manhã, p. 135/136

 

 

CEMITÉRIO DE NAVIOS

 

Arqueando no mangue

encharcado de lama

o navio morto

varava a noite

com uma chaminé de aflição

e ferrugem.

 

Vomitava escuridão.

 

E inchava tudo

de silêncio.

 

havia gentes

ou meios fantasmas?

 

As coisas

tão nenhumas

ao som de um pássaro-preto

na gaiola

              de – ba – ten – do – se p. 39

 

 

A montaria avançava sobre a lua agora solta e alva como uma garça.

Dalcídio Jurandir, Três Casas e Um Rio, p. 36

 

 

NOTURNO DO RIO Nº 1

 

A montaria avançava

sobre a lua

agora solta e alva

como uma garça

 

A linha dágua

era um horizonte reflexo

tanto a lua navegasse

como a montaria voasse

a garça iluminava

o voo da noite

na curva do rio. p. 65

 

 

A água se arrepiava de sardinhas e matupiris que catavam o farelo do pão e dos beijus de tapioca.

Dalcídio Jurandir, Três Casas e Um Rio, p. 43

 

 

A ÁGUA E O MENINO

 

A água se arrepiava

de sardinhas

matupiris e maparás

quando se jogava farelo de pão

e beijús de tapioca.

 

Se arrepiava

por alguns instantes

um peixe talvez

um sopro de vento

um vago reflexo

ou tremeluzir das estrelas

no espelho tranquilo

ao pé do menino. p. 67

 

 

Que delícia ver a terra desalagada, se enxugando.

Dalcídio Jurandir, Três Casas e Um Rio, p. 78

 

 

VÁRZEA

 

Que delícia

ver a terra desalagada

se enxugando.

 

Colhe-se barro

como se fossem flores

a terra brota também

do seio das águas

como se fossem plantas

desabrochando

em gretas e raízes. p. 73

 

 

Num luar, surpreendeu o rosto do chalé com os seus quatro olhos fechados sem aquele ar um tanto carrancudo. Estava adormecido, porém satisfeito com os seus habitantes. De ordinário, era aquela cara cheia de reflexões, as quatro janelas olhavam o rio com visível desdém. Havia, com efeito, uma espécie de conflito entre o rio e o chalé.

[..]

A água descia vagarosamente sobre a lama, arrastando resíduos misteriosos, uma pena de pássaro, uma asa, pequenos náufragos como formigas, sapinhos, mosquitos acompanhando o curso, folhas, reflexos e vozes de outros países diluídas naquele murmúrio leve, por vezes indistinto.

Dalcídio Jurandir, Três Casas e Um Rio, p. 149/150

 

 

NOTURNO DO RIO Nº 2

 

Numa noite de lua

surpreendeu o rosto do chalé

com seus quatro olhos

fechados.

 

É que havia

uma espécie de conflito

entre ele e o rio.

 

Mas mesmo assim

a água descia vagarosamente

sobre a lama

arrastando resíduos misteriosos

uma pena de pássaro

às vezes até uma asa

pequenos náufragos

como espinhos

                 mosquitos e formigas

e reflexos e vozes

de outros países

diluídas em murmúrios

que corriam e escorriam. p. 79

 

 

No faz de conta de Alfredo, eram ondas, vagalhões do mar nunca visto. Ali estavam muitos mares e muitas matas submersas. Transatlânticos e boiunas circulavam nas profundidades e correntezas daquela água rasa, quieta e transparente. Quando banhava o rosto suado, sentia o sal do mar que nunca provara. [...] Uma e outra vez passava, lá pelo fundo ou rente do degrau, um jeju lento. E aí então voltava a água às suas proporções reais. [...] Ali estava um habitante típico da inundação, vejam o olhar, o rabo, como volteia amorosamente entre os morurés, como espia para cima e boia e desce e vem, circula e some, sutilmente, sem um borbulho, no seu silêncio de peixe, com um tênue movimento da água menos que um estremecimento. Alfredo ficava, depois, mirando-se naquele espelho, sentia-se um outro naquela sombra sua movendo-se, a dissolver-se na extensão e intimidades da enchente.

Dalcídio Jurandir, Três Casas e Um Rio, p. 27

 

 

CAROÇO DE TUCUMÃ Nº 2

 

No-faz-de-conta

do mar nunca visto

estavam muitos mares

e muitas matas submersas.

 

Na correnteza

daquela água rasa

quieta e transparente

transatlânticos e boiunas

circulavam

Mas um jeju

lento e arisco

dava à água a proporção de água

e o seu silêncio

o silêncio de peixe

trazia à tona

a intimidade da enchente. p. 81

 

 

Mas ao guardar a medalha entre as roupas deixadas pela irmã na mala grande, estremeceu: deveria ter dito a Mariinha que o que enterrara, naquela tarde, era uma borboleta e tinha sido malvado, traindo ao mesmo tempo um juramento. Dissera-lhe que plantava uma semente. Que semente? perguntara-lhe Mariinha. Ele respondeu: Mistério.

Estaria ela sabendo agora o mistério?

Dalcídio Jurandir, Três Casas e Um Rio, p. 215

 

 

O ENTERRO DA BORBOLETA

 

Era uma louca ideia

enterrar no chão a borboleta

as cores

as asas

e todo o movimento.

 

Cavou o buraco

jogou dentro o inseto

mas na hora de responder

à sua mãe

disse que tinha enterrado

no chão

uma semente.

 

Que semente ?

 

Não, mamãe

não foi uma semente

foi um mistério. p. 87


MONTEIRO, Benedicto. O Cancioneiro do Dalcídio. Belém: Falangola; Rio de Janeiro: PLG Comunicação, 1985.

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