Assim como fora em todo o Brasil, o Acre, nas décadas de 70 e 80, também experimentara o frenesi proporcionado pela chamada “cultura marginal” que marcou, sobretudo, a poesia (geração do mimeógrafo), a música, o teatro e as artes plásticas. Como um dos frutos dessa agitação literário-social, para nós, acreanos, está a publicação das primeiras antologias poéticas.
Em 1981, surgia a pioneira coletânea de poemas publicada pela “Cia Teatro 4o Fuso”, organizada e prefaciada por Jorge Carlos. A antologia era resultado da “Mostra de Poesia do Movimento Akiry Arte”. Tratava-se uma produção independente, sem ficha catalográfica, no formato de brochura, composta por 50 poemas, de 28 autores, ilustrada com desenhos, gravuras e reproduções de quadros de artistas locais, como Hélio Melo, Raimundo Mendes (Dim), Carlos Mejido, etc.
Um ano depois, 1982, era a vez de “Algumas Poesias Acreanas”, antologia que reunia os trabalhos premiados (e menções honrosas) dos concursos “Prêmio Vinicius de Moraes” e “Concurso Acreano de Poesias 81”, respectivamente, dos anos de 1980 e 1981, lançados simultaneamente por ocasião da III e IV Feira do Livro no Acre, promovido pelo Serviço Social do Comércio (SESC), em parceria com instituições locais e a Fundação Joaquim Nabuco, de Recife. Como se demonstra, nas páginas iniciais, o propósito da antologia não era colocar em evidência o trabalho de círculos intelectuais, mas incentivar a produção literária entre as camadas e faixas etárias da população, nas mais diversas localidades do Estado. Reúne trabalhos de 22 poetas, num total de 37 poemas. A Francis Mary pertence o maior número de poemas, cinco ao todo, seguida por Severino Giovanni de Souza Siqueira e Marcos Afonso, ambos com quatro.
Por sua vez, a Casa do Poeta Acreano, sob o patrocínio da extinta Fundação de Desenvolvimento de Recursos Humanos, da Cultura e do Desporto (FDRHCD), em 1986, faz vir a lume a “Antologia dos Poetas Acreanos 1986”. À época, a Casa do Poeta Acreano era presidida por Mauro Modesto, tendo Clodomir Monteiro como secretário geral. Essa antologia é mais sistematizada que as outras duas mencionadas anteriormente. Nela estão incluídos poemas de grandes nomes da poesia acreana dos primeiros tempos, que já haviam falecidos, como Juvenal Antunes, Garibaldi Brasil e Raimundo Thomé da Rocha. A antologia é composta por 91 poemas, de 91 poetas distintos, além de um belíssimo poema, na quarta capa, de autoria de Jacó Cesar Piccoli.
A temática dessas antologias, grosso modo, pode ser assim estabelecida: 1) poemas que retratam a opressão e os conflitos dos povos da floresta, sobretudo, os da Cia Teatro 4o Fuso; 2) poemas com ênfase no amor (sentimento); e 3) poemas de exaltação da natureza, no caso, da floresta amazônica com seus encantos e problemas, muito evidente nas antologias de 1982 e 1986. As palavras da professora Lucília Maria Parra Pastro, no prefácio da antologia de 86, fazem uma boa síntese da temática dessas antologias, aí ela diz que é evocada a presença viva e constante da floresta, dos rios, dos seringais, enfim, de todo o cosmo que faz parte da vida e dos sentimentos do povo acreano.
A importância dessas três antologias, portanto, se dá, sobremaneira, pelo fato de reunir a produção literária de um momento importante (e conturbado) da política e da cultura acreana, encetado a partir de 1964, a semelhança do que ocorrera em todo o país. Era o tempo do combativo e lendário Jornal Varadouro, do grito da ecologia, da luta contra a “zebunização”, dos empates de Chico Mendes, etc. Enfim, revisitar essas antologias é uma oportunidade de fazer reviver poesias e poetas, cujas ideias e ideais, bem como valores, ainda hoje persistem e se fazem necessários.
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Abaixo, uma pequena amostra do que há nessas antologias.
SEMENTE CORAÇÃO
Francis Mary
A Wilson Pinheiro
Na minha terra
planta-se corações
e nascem lutas
dessa plantação.
O chão é regado
com sangue
e as balas são sementes
que fazem calos
nas mãos...
A AMAZÔNIA E A ÚLTIMA ESTROFE
Severino Giovanni de Souza Siqueira
Meu Deus! Meu Deus!
Tristes lembranças na vida se desfazem.
Minha querida Musa do meu pranto!
Um povo heróico se lamenta e chora.
Traíram meus irmãos!
Não tenho mais inspiração.
Amazônia consorte! Eterna amante!
Na tua história, na expansão guerrida,
Desde o império arcaico, torpe e duro,
Promessas colossais jamais foram cumpridas.
Quando os meus versos renascerem no canto,
Numa balada de amor e de ternura,
Escreverei cativo em um prelúdio santo,
Tudo que sei exaltarei num grito.
Meu Deus! Meu Deus!
Agora eu te suplico,
A santa inspiração...
A última estrofe escreverei no pranto:
Amazônia dos céus! Vejo-te mansa...
Minhas lembranças não serão matizes solitárias.
Serás eleita rainha dos poetas,
Esta promessa não será desfeita.
INFERNO VERDE
Isabel Carpaneda
Ouvi falar de ti
Há muitos e muitos anos
Ouvi dizer que eras selvagem
Que tuas matas guardavam mistérios
Teu chão do inferno era a miragem...
Ouvi dizer que eras inóspita
Que em teu seio abrigavas feras
De todas as eras
Que seus uivos despertavam séculos
De esperanças e quimeras...
Ouvi falar de tua extensão
Que abrangia grande parte do Brasil
E os brasileiros te ignoravam
Te repudiavam e temiam
Cobrindo de mistérios o Brasil que dormia.
Vim de longe pra te ver
Te escutar e te conhecer
“Amazônia Legal”?...
Assim me disseram... É isto onde pisas!
E como de um sonho desvairado
Acordei e senti o Brasil despertado!
Então vi que tuas matas tombavam
Pelo braço do estóico forasteiro
Vi teus regatos se turvarem
No turbilhão da conquista
De impetuosos aventureiros...
E o Brasil te conheceu
Desvendou teus mistérios, tua riqueza
Penetrou tuas entranhas
E extraiu o feto do progresso:
Lá se foram a borracha e a castanha
Transformando teu chão em culturas
Sem sucesso.
Cadê tua paisagem verde?
Cadê a sinfonia de teus lindos pássaros?
E a fauna... exterminada, expulsa...
Ok! Amazônia,
Teu brado em vão sondou o infinito
Na história serás sempre o inferno maldito
Que o homem cruel, mil segredos há de buscar!
LAMENTOS DA AMAZÔNIA
Belkiss C. Leitão
Eu já fui verde!...
Já fui livre!
Terra sem dono,
Terra virgem.
Acolhi no meu seio o desterrado,
Dei-lhe comida,
A sombra, a habitação.
Vesti de verde,
Verde de esperança,
O seu mutilado coração.
E hoje, o mundo,
Inebriado pelo fogo da ambição
Queima as minhas entranhas
Fere a machado o meu verde coração.
FILHOS DA AMAZÔNIA
Ângela Batista
Terra água. Água de fartar.
Paisagem de dramas. Palco secular.
Medo e coragem. Floresta mulher.
Braços exangues. Bocas abertas.
Olhos pasmos de fé.
Trabalhar é bom. Morrer é difícil.
Gira a terra. Gira a lua.
A mata varre pensamentos.
Santo Daime. O apocalipse.
Meu Deus! A alma martela,
Constrói a Arca de Noé!
Outras terras, outras mentes
Veriam essas explosões de luz?
O estômago doente.
Lata. Sardinha. Água e farinha.
Preços. Vermes. Patrões.
Compreensão partida. Calma violência.
Os olhos presos à cruz...
O pasto cercado por arame farpado.
Criam. Pocriam. Entregam.
Esfregam-se nas redes suadas.
Tocam as alavancas do universo.
Trabalham. Trabalham. Morrem.
Já nascem diminuídos todo dia.
Todo dia o clarão de Deus
Obscurece a vista. O dono ilude.
A semente cai na terra fria.
E o passado despeja todo drama,
Toda luta, bem abaixo do chão.
PAISAGEM BRASILEIRA
Jorge Carlos
Os camponeses
A terra vão lavrando.
Não têm nada!
Pro patrão
A terra vão lavrando.
CADÊ A MACAXEIRA?
Silene Farias
É pouca farinha no prato
E muita fome na macaxeira.
É da gripe crônica
À falta do lambedor.
É um filho no peito,
Outro no bucho,
Outros quatro lambendo o dedo.
A rapadura foi pouca!
É a tristeza do companheiro,
A goteira que aumenta
E molha um outro filho
Que arde em febre...
É a peste!
É o andar curvado,
Do peso secular da carga.
É o brilho dos olhos desfeitos
Pela fumaça do látex.
A memória é forte! [...]
TODO CORAÇÃO
Beto Rocha
Todo coração
Tem um veneno
Uma chama
Um segredo
Uma magia.
Todo coração
Tem um amor
Uma dor
Um vexame
Uma fadiga.
Todo coração
Tem um arraso
Tem agonia
Um barato
Uma mania.
Todo coração
Tem um instante
Uma folia
Um acaso
Uma alegria.
Todo coração
Tem um pecado
Todo coração
É perdoado!
VENDO TARDE
Fátima Almeida
Essa vagareza que desliza lua
Acalma o coração o dia
Desce uma luz, sob outra luz
No tear da vida tênue algodão doce.
O tempo assim quem o percebe
Está morto – matou a criança
Na qual o tempo nunca se vê
Até o carrasco ir comprimindo o laço.
ANOITECEU O SONHADOR
João Veras
A noite
Anoitece
E tece a dor
A dor, o sonho
A noite
Anoitece
Eu e a dor
Tu e o sonho
A noite
Anoitece
E tece
Eu, o sonhador
A dor no sonho
O sonho na dor
A noite
Anoitece
Te tece
Sonho
Anoitece
Eu e o sonhador.
RELATO
Rângela Barros de Alencar
Rolou no seio da noite
A vontade de que tudo fosse belo
Amar é qualquer coisa de belo
Que se perde na noite.
ROSA VERMELHA
Vera Maria G. de Sá
Meu coração
Menino vadio
Fugiu
Do meu domínio
Meu coração
Moleque de beira de rio
Mergulhou
Na primeira canção
É rosa vermelha
Agora
Meu coração
Desabrochando em mim.
TEU AMOR
Fernando de Castela
O teu amor é doce suave e brando
Como cantiga d’água cristalina
Embalando e ninando,
Teu beijo morno, bálsamo piedoso
Cura a tormenta que me tira a calma
E vai bater de leve acariciando
as profundezas d’alma.
Tudo em ti é bondade, é beleza e perdão.
O teu amor suave e brando
Não tem as lavas de vulcão,
Não é loucura,
Nem é paixão.
O teu amor é simplesmente tudo
De uma simplicidade fervorosa
Tem uns sopros de brisa
Com perfumes de rosa.
Ah! Se esse teu amor um dia copiassem
E com amor assim as pessoas se amassem
Num sonho bom, feliz, quase irreal,
Talvez
que esse exemplo de amor trouxesse ao mundo
A paz universal.
CEMITÉRIO CÊNICO
Altino Machado
A crueldade
opaca da melancolia
tomou o cemitério em seus braços
e acalentou os mortos
com o estridente réquiem
que ficou gravado no peito amargo
das melancolias
das necrópoles inertes
Então os mortos nefastos
adormecidos, embriagados
dormiram perpetuados na esperança
necromântica, romântica
do necrólatra e necrófobo que sou.
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REFERÊNCIAS
Antologia dos Poetas Acreanos 1986. Rio Branco: Fundação Cultural/Casa do Poeta Acreano, 1986.
Algumas Poesias Acreanas. Rio Branco: SESC; Recife: FUNDAJ/Editora Massangana, 1982.