sexta-feira, 27 de julho de 2012

DESTA VEZ, A ÚLTIMA

ROBÉLIA FERNANDES DE SOUZA


A casa às escuras. A luz que vem do poste da rua, espionando pelo vidro da janela, são olhos embaçados fitos nele. Caminha escorregando os pés para não topar em nada. Apalpando os móveis, correndo a mão pela parede, encontra a maçaneta. Uma porta. Faz pressão, devagarinho, torcendo, plec. Um quarto. A luz azulada fluorescente que irradia da imagem de Nossa Senhora sobre a mesinha no canto tira-lhe a respiração e o assusta. Uma visão? Foi só um segundo. Rapidamente se recompõe. Milagres não acontecem. Era só um abajur em forma de santa entre mais três ou quatro imagens. Na cama, uma senhora encolhida, como se sentisse frio, dormindo idosamente. Lembrou da mãe, àquela hora dormindo no barraco, sem proteção de santo algum. Na outra cama, do outro lado do quarto, o desgraçado do sargento, de cuecas samba-canção e meias, roncando alto. Sente medo apesar de há dias vir planejando essa invasão. No quarto não entra. Sabe que ali não encontrará o que procura. Foi só curiosidade. Afasta-se com cuidado mesmo sabendo que aqueles não acordariam. Têm o sono pesado das comilanças, da ociosidade, da despreocupação. Sono leve tem a mãe, sobressaltada, a qualquer chuva a água invadindo o barraco, a qualquer hora, uma bala perdida procurando sangue. Além disso, noite curta. O dia para ela começa às quatro para cuidar da vida, pegar duas conduções, chegar na casa da patroa antes das sete.

Tinha raiva do sargento. Sujeito ignorante, prepotente: "esses meninos são uns delinqüentes. Esses pivetes". Para ele toda mulher sem marido era vadia. Todo pobre era indigente, vagabundo.

Pela sala alcança a área da casa protegida por uma grade trabalhada, cheia de arabescos. Muitos vasos de plantas, samambaias penduradas nos xaxins, e num canto, coberta por uma toalha, a gaiola pendurada, como um troféu.

Era comum ouvir as conversas do sargento com outros aposentados que viviam, feito lagartos, tomando sol na pracinha. Assim foi que num dia em que engraxava os sapatos dele ouviu-lhe a gabolice: um pássaro. Tinha um pássaro raro, maravilhoso, vindo da Amazônia debaixo de sete capas. Na realidade poucos tinham o tal pássaro cantador, linda plumagem, custou uma nota.

Ficou tão curioso que nesse dia mesmo resolveu dar uma espiada no tal pássaro. Era só subir na amendoeira da rua, rente ao muro. Avistava o jardim, a casa, a varanda, a área. E o viu. Era um pássaro pequenino, engaiolado, sozinho! Era um pássaro triste! Era só um passarinho. Naquele mesmo dia decidiu-se:

Com cuidado pega a gaiola e vai saindo. A casa dorme, respira e ronca. Saiu por onde entrou. Pelos fundos. Os meninos já lhe tinham ensinado uns truques. Entravam nas residências e faziam pequenos furtos. Tênis, calças jeans. Um dia dois deles pegaram uma bicicleta. Foram parar na casa de detenção de menores. Desde esse dia, afastou-se da turma e já prometera à mãe que nunca mais ia roubar nada, nadinha. Dessa vez... dessa vez era a última.

Difícil era caminhar pelas ruas com aquele trambolho. E se o vissem? Livra-se da gaiola, põe o passarinho debaixo da blusa. De lá para o barraco não era longe. As ruas estavam praticamente desertas àquela hora. Atravessou a pracinha, seguiu as quadras da rua pavimentada fugindo da luz dos postes, entrou pela rua de barro. A partir dali, não tinha mais problemas. Estava em casa. Maior cuidado deveria ter para não acordar a mãe. Era capaz de levá-lo pela orelha para devolver o passarinho. Coisinha de nada ela acordava. Vai para o fundo do quintal onde começa o mato e por onde passa o canal. Pega o passarinho com cuidado e carinho. Afaga-lhe a cabeça. Pensa soltá-lo ao vôo livre - Vai amigo, agora é com você - mas acha que à noite ele não voará. Enfia-se no mato, coloca-o no entroncamento de uma árvore: - Te cuida garoto!.

Entra no barraco, como um gato. Diacho que essa porta é rangedeira.

- Zeca?

- Senhora!

- Fazendo, menino?

- Nada não, mãe. Fui só urinar.

Pela manhã, a notícia. O sargento alardeava. Deu até no jornal: "Ladrão invade casa do sargento aposentado Fulano de Tal, (64). Misteriosamente leva somente um pássaro na gaiola. Suspeita-se de uma quadrilha que rouba pássaros para vendê-los a preço de ouro a estrangeiros. Um crime inafiançável.

- Mãe, hoje vou engraxar lá pros lados da Estação. Na pracinha não tá dando nada.


*
ROBÉLIA FERNANDES DE SOUZA é da Academia Acreana de Letras. Com este conto, “Desta Vez, A Última”, na categoria Literatura, venceu o 9º Concurso Talentos da Maturidade, promovido pelo Banco Real (2008).
** Conto também publicado no site Lima Coelho.

quinta-feira, 26 de julho de 2012

LEMBRANÇAS DE CHEIROS

OLIVIA MARIA MAIA


Sinto o cheiro de óleo de peroba e lembro-me do Natal. Perguntarão alguns: — Natal? O que tem a ver peroba com Natal? Não seria cheiro de peru, galinha, pato, marreco, porco?

Explico.

A casa em que nasci era de madeira e avarandada. Situava-se na Avenida Brasil, perto da Praça do Quartel. No coreto, a banda de música da tropa da Guarda Territorial do Acre tocava aos domingos, após a missa.

Na semana que antecedia o Natal, minha mãe começava os preparativos para o grande dia. O início era a limpeza. Todas as casas são limpas e arrumadas, principalmente para festejos. O que a minha tinha de diferente? É que muitas outras não tinham “perna manca” — peça de madeira, que nunca entendi muito bem por quê, recebia esse nome —, nem eram enceradas com óleo de peroba.

E lá estava minha mãe, com um balde de água, limpando tudo... Depois, vinha a parte que mais me chamava a atenção. Ela pacientemente pegava um pano e ficava lustrando as ripas, a perna manca, com óleo de peroba. Passava várias e várias camadas, até que o brilho aparecesse.

Na véspera do Natal, enquanto ela adiantava a ceia assando peru, leitão e bolos, intercalava os afazeres com mais uma mãozinha de óleo de peroba.

Chegava o grande dia. Os encostos das cadeiras, vestidos com paninhos de linho, impecavelmente passados na goma. A toalha de mesa, guardada durante todo o ano apenas para aquela ocasião. Tudo pronto. Sentávamos à mesa, meus pais, eu e meus cinco irmãos.

Olhos arregalados, esperando as guloseimas. De repente, a entrada triunfal de Sua majestade o Peru, decorado com jambos, carambolas, cajás e... Ah! O cheiro de peroba no ar. Era Natal. Papai Noel vinha nos visitar e, certamente, adorava o cheiro de óleo de peroba.

Fecho os olhos, depois de quase cinquenta anos, e sinto a lembrança do cheiro... peroba... emoção... cheiro... peroba... saudade...



* OLIVIA MARIA MAIA é escritora acreana.
** Crônica publicada no livro Em rio que menino nada raia não ferra (2010).

sexta-feira, 20 de julho de 2012

COPO DE LAMA

OLIVIA MAIA


Bem-aventurado o poetinha Vinícius de Moraes quando disse que a crônica deve ser um copo de água fresca, limpa e luminosa. Sempre concordei com Vinícius, durante todo o tempo que escrevo esse gênero. Ando em crise nos últimos tempos. Quando inicio um texto meu coração aperta, as ideias não saem. Fogem. As poucas que insistem em sair são permeadas de dor, de desesperança. Um copo de água salgada. Crônicas com lágrimas...

Existem momentos em que parece que os porões das sombras são abertos de maneira tão intensa que nos aterroriza. Somos inundados de tragédias, de dramas, de dores. Este é um desses momentos. Abre-se um jornal ou revista, liga-se a TV e lá está estampada a morte: matou porque o outro era gay; porque olhou para a sua namorada; porque não aceitava a separação; porque se dizia hostilizado; porque desejava a herança. E somos entupidos pela morte. Muitas.

Duas em Cunha (cidade do interior paulista). Duas irmãs que não tinham medo do lobo-mau da mata em que moravam na zona rural. Por causa da lama e dos buracos, o ônibus que as transportava da escola para casa as deixava a mais de um quilômetro de onde moravam. E foi nesse percurso, caminhando já no escuro, que o lobo assassino as executou. Motivo? Quem tem medo do lobo mau, lobo mau, lobo mau... Lobo bobo, nós não gostamos de você... – talvez elas tenham cantado ao entardecer.

Doze... Doze crianças fuziladas. Realengo. Realeza. Real... Muita falação e pouca ação: governador, prefeito, secretários, repórter procurando o furo de reportagem; emissora se dizendo a única a obter informações exclusivas sobre o caso; legistas opinando; psiquiatras e psicólogos transformando-se em estrelas televisivas e sendo disputados a preço de ouro para programas e telejornais.

E eu, que ainda não curei minha dor pelas vítimas das tragédias do Rio de Janeiro, de Friburgo, de Petrópolis, da favela do Bumba, e tantas outras que depois de saírem dos holofotes da mídia continuam na situação de abandono em que ficam os desamparados pelo poder público.

E de tanto lembrar e relembrar... esqueço! Realmente, estou em crise existencial e não consigo produzir nada. Nem mesmo um grito de indignação. Sinto-me afogada num copo de lama podre.

Meu poeta! Mande a bem-aventurança. Aí do seu lugar de estrela, envie a luminosidade necessária para que eu consiga produzir uma crônica como um copo de água limpa e cristalina... Onde reine a poesia, a justiça e a beleza...



* OLIVIA MAIA é escritora acreana.

Nota do blog.: a crônica, apesar de refletir acontecimentos passados, continua a tocar em pontos atuais. Na 'angústia' da cronista, a angústia de um país em que os acontecimentos de ontem, assustadoramente, parecem ser repetir nos de hoje.

segunda-feira, 16 de julho de 2012

A MONTANHA DOS VENTOS

LUIZ FELIPE JARDIM


Everdingen - Alegoria do nascimento
de Frederik Hendrik
Esta história do general e suas canções, existe a pouco mais de dois mil anos. Tem origem na Magna Grécia e foi muito popular na região da Anatólia no período posterior a Alexandre Magno. É, portanto, do tempo do florescimento do estoicismo e do maniqueísmo, e de ambos, contraditoriamente, contém alguns elementos.

Como já foi contada pelo menos três trilhões de vezes, nesses dois mil anos, e nas mais diversas línguas faladas e mudas, escritas e apagadas, acrescento aqui o seu trilionésimo primeiro ponto de quem conta um conto. Ressaltando, porém que pelo fato de eu havê-la escutado uma única vez e quando tinha 16 anos de idade, qualquer semelhança com a original é, aliás, seria verdadeiramente espantosa coincidência...


A MONTANHA DOS VENTOS...


...Era uma vez um soldado. Mais que isso: um grande soldado. Um soldado vencedor. Havia vencido em dezenas de batalhas. Havia matado dezenas e dezenas de pessoas. Havia feito sofrer a milhares de pessoas por onde passara. Era um grande soldado vencedor.

Por ser um grande soldado, fez-se general. Mais que isso: um grande general. Um general vencedor. Por ter bem mais poder como general, matou muito mais dezenas e dezenas de pessoas. Fez sofrer milhares e milhares mais.  Era um grande general vencedor.

Albert Bierstadt - Na Montanha
Certo dia, ao pé de uma montanha muito alta, em um lugar que fora palco de muitas batalhas entre exércitos rivais e que agora era um campo desolado, estéril, quase sem vida, ele encontrou um homem já de bastante idade a quem pediu um pouco de água. O ancião atendeu-o com delicadeza e naturalidade, mas não o reconheceu e não o reverenciou.

O General, já ficando irado, perguntou-o se não o reconhecia.

O ancião disse, então: "O que fez você de bom para ser reconhecido pelas pessoas"?

O general surpreendeu-se com o atrevimento do velinho, mas, orgulhoso, começou a enumerar as coisas boas que já havia feito. Matara tantas pessoas naquela batalha. Decapitara tantas outras naquela outra. Havia destruído pontes, casas, animais etc. etc.

Por fim perguntou se o ancião já o reconhecia.

Ao que o velhinho respondeu: "Me diga o que você fez de bom para ser reconhecido pelas pessoas".

O general chegou a pegar no cabo da espada que tinha sempre consigo, tal foi seu espanto com a ousadia daquele homem magro que o interpelava daquela maneira.

Mas, numa atitude rara, o general conteve-se e recomeçou a narrar seus grandes feitos. Falou de mais e mais mortes. De mais e maiores sofrimentos. De decapitações, esquartejamentos, mutilações, orfandade, demências de toda sorte... Falou da guerra e dos guerreiros dentre os quais ele era o maior. Falou durante muito tempo, muitas horas, quase um dia. Por fim convencido de que sim, perguntou ao velho se já o reconhecia.

O velinho respondeu: "Me diga o que de bom você fez para ser reconhecido pelas pessoas".

O general ardeu em fúria. Quase, quase o velinho era mais uma vítima dos seus grandes feitos. Mas, numa atitude ainda mais rara e surpreendente, o general conteve o golpe de espada que já tocava a garganta o ancião.

Na noite desse dia ele não conseguiu dormir bem. Nem na noite seguinte, nem nas demais, nem em muitas e muitas noites desde aquele dia. Mal começava a dormir e o velinho lhe aparecia em sonhos e reafirmava a pergunta. Ele narrava seus feitos, mas nunca encontrava algo de bom que houvesse feito para dizer e convencer ao velinho.

O general foi aos poucos compreendendo toda a maldade que havia protagonizado em toda a sua vida. Percebeu que só havia cultivado e disseminado ódio pelo mundo em que estivera.

Abatido, mas como grande homem que era resolveu abandonar os exércitos onde sempre vivera desde que, órfão de pai e mãe perdidos em guerras, fora adotado por guerreiros do seu clã. Suas costas lhe doeram quando se fecharam atrás de si os portões da sua vida de guerras.

Queria se redimir. Queria compensar com o bem o mal que já houvera feito. Tinha agora trinta anos, queria poder viver outros tantos para equilibrar a balança da equidade.

Jan Asselyn - O Cisne Ameaçador
Soube, então que no alto da montanha daquele deserto em que um dia encontrou o ousado ancião, havia um mosteiro. Soube que nele habitava um grande monge. O mais sábio que jamais existira. Esse sábio, que conhecia a linguagem dos pássaros e a vontade das plantas; que conhecia o sentimento dos peixes, que dava conselhos ao tempo e apaziguava os tormentos dos ventos que em sua montanha nasciam por certo se sensibilizaria com sua história e lhe ensinaria como se redimir dos seus feitos.

Resolveu ir ao templo, lá no alto da mais alta montanha da região. Foram dias difíceis. Mesmo para ele que tinha vigor de guerreiro subir a montanha não era fácil. Dias e dias mal alimentado, mal dormido, acossado por insetos, quase sem água... Até que, já quase se entregando ao abandono, viu-se diante do templo.

Recebido por monges, num enorme pátio onde houvera dado, bebeu, alimentou-se e contou sua história e o porquê de estar ali. Queria ser recebido e aconselhado pelo Grande Monge.

Mas isso também não era fácil. Ninguém ‘falava’ com o Grande Monge. Ele sim, é que falava com as pessoas. Ele é que sabia o momento certo de olhá-las, ou não. Havia monges que há anos esperavam por um simples olhar que ainda não acontecera. Falar com ele então!!! Havia que se ter paciência. Deixar o Grande Mestre escolher o momento certo para as coisas certas.

Ficou decidido que o ex-soldado, todas as manhãs varreria uma ampla sala por onde todas as manhãs, o Grande Monge passava ao ir para o seu salão. Assim, todos os dias ambos poderiam ser vistos. Após a passagem do Mestre o ex-soldado deveria varrer e manter limpo o enorme pátio por onde houvera chegado ao templo.

Na manhã seguinte, antes do nascer do sol, lá estava o ex-general varrendo a sala antes da passagem do Mestre, que logo depois apareceu com sua comitiva. O general pode então vê-lo. Nunca houvera visto uma pessoa assim, com tanta luz, com tanta paz, com tanta bondade... O mestre, por sua vez, sem parar, dirigiu-lhe um breve olhar, um leve sorriso e seguiu para seu salão.

Enquanto varria o pátio, monges comentavam que raramente acontecera de o Mestre olhar para alguém em tão pouco tempo, e muito menos olhar sorrindo. Só pessoas muito especiais, de grandes feitos houveram tido tal merecimento.

Na manhã seguinte, antes do nascer do sol lá estava o ex-general varrendo a sala antes da passagem do Mestre que nesse dia não lhe dirigiu olhar. Nem nesse dia nem nos seguintes.

Mas, em todos os dias, e nos seguintes, lá estava o ex-soldado varrendo a sala e o pátio. Humilde e serenamente.

Como a vida é curta, mas os dias são longos, e as tarefas do seu dia-a-dia também o eram, foi preenchendo os dias cantando canções enquanto trabalhava. Como conhecia muito poucas, começou a criar canções para ter o que cantar. As músicas que cantava falavam de um lugar que ele ia povoando de imaginações a cada dia. Num dia pessoas chegaram ali. Em outros dias construíram habitações e uma aldeia. Em outros fizeram plantações, e plantaram alimentos, jardins e bosques. Todos os dias, enquanto varria o pátio cantava essas canções que eram diferentes a cada dia, pois a cada dia acrescentava imagens novas à paisagem de sons que construía. A cada dia desenhava, na tela imaginária em que tecia, as paisagens sonoras que animavam o seu canto nas longas passagens dos dias.

E assim se passaram dias e dias. Anos e anos. O lugar imaginário de que falavam as canções já nem era mais uma aldeia, nem uma vila. Era, já, uma grande cidade. Todos os dias ele houvera varrido a sala antes da passagem do Mestre ao nascer do sol. Houvera humildemente retirado cada granito de pó que pudesse haver e ver dentro da sala, mas nunca, em mais de dez mil dias o Mestre sequer lhe olhou. Nem lhe sorriu. Nem lhe falou.

Trinta anos haviam se passado desde que ali chegara. Num arroubo resolveu ir embora. Percebeu que houvera perdido muito tempo. Que o Mestre jamais falaria com ele. Que tudo fora em vão. Que nada aprendera do que fazer para reparar o mal que fizera outrora.

Largou a vassoura no pátio, e sem despedidas se pôs a descer a montanha. Foi-se embora.

Não foi fácil. Dias e dias de fome, de sono, de frio... Até que, ao pé da montanha caiu desfalecido.

Acordou-se em uma sala ampla, clara, cheirosa. Estava em um hospital. Muito diferente dos hospitais de campo de batalha que conhecia. Nesse havia luz.

Um médico veio até ele, falou-lhe de sua debilidade, e disse-lhe que em pouco tempo estaria recuperado.

Everdingen - As Quatro Musas e Pegasus
Em pouco tempo, enquanto se despedia, perguntou a uma paciente, de quem se fizera amigo, onde ficava exatamente aquele lugar. A amiga respondeu que ali era o antigo deserto que havia ao pé da grande montanha. Contou que seu povo sofrera muito com as muitas guerras que aconteciam naquela região. Até que um dia, o vento que nascia das montanhas começou a soprar canções. As canções, que o vento lhes soprava, e que troavam no deserto, eram canções simples, envolventes que diziam coisas simples a serem feitas: onde construir casas; onde encontrar e como cuidar da boa água; como fazer nascerem e crescerem plantas e bosques; como encontrar alento para as tristezas; como compreender detalhes de um gesto amigo.  Primeiro as crianças, depois os mais velhos, logo todos passaram a cantar e a experimentar fazer o que diziam as canções que o vento cantava ao soprar.

As pessoas ficaram mais ternas, tolerantes, alegres, amigas, boas. A cidade foi se fazendo com as formas e fisionomia que as canções do vento mostravam e as pessoas se fizeram mais criativas.  Por isso a cidade era assim acolhedora e bela. E por isso nela havia claridade, árvores, pássaros, alimentos, felicidade e vida em todos e em tudo. Disse também que todos estavam agora apreensivos. Depois de trinta anos o vento parou de soprar as canções. Todos estavam sem entender, e por isso preocupados. Não por dependência do que diziam as canções, afinal, todos sabiam e faziam o que deviam saber e fazer para serem felizes juntos, mas pela saudade que sentiam de cantar com o vento. De cantar com o vento e dizer da alegria de serem os amigos que eram e que sabiam ser.

O ex-soldado despediu-se da amiga e passeou pela cidade. Não precisava de guia, conhecia cada cantinho daquele lugar, cada uma das ruas; cada uma das casas; cada uma das plantas e cada detalhe de suas flores. Viu que reconhecia os rostos das crianças e dos jovens e que todos o olhavam como se muito íntimo de todos fosse. Todos os que o olhavam, tinham marcados no semblante aquele mesmo sorriso que um dia o Grande Mestre tinha no rosto quando para ele olhou uma única vez.

Olhou com orgulho para as ruas, para as construções, para as árvores e animais, para as pessoas e para a vida que em tudo havia.

Sorveu o ar daquela alegria, atravessou a cidade e seguiu seu caminho.

Subiu novamente a montanha. Foram dias difíceis. Dias e dias mal alimentado, mal dormido, acossado por insetos, quase sem água... Até que, já quase se entregando ao abandono, viu-se diante do templo.

Comeu, bebeu. Recuperou-se.

Na manhã seguinte, antes do nascer do sol, lá estava ele varrendo a sala antes da passagem do Grande Monge que logo surgia com sua comitiva. Nessa manhã, o Mestre parou diante dele e voltou-lhe o olhar com um leve sorriso. Num gesto cerimonial, com a mão direita pousada sobre o peito esquerdo e uma leve inclinação da cabeça, fez-lhe um honroso cumprimento. Um cumprimento simples, verdadeiro. De quem, verdadeiramente admira e ama a quem com seu cumprimento honra. Cumprimentou-o e foi para o seu salão.

Após a passagem do Mestre, o ex-general foi para o pátio, sorveu alegria da brisa que ali nascia ao nascer do sol, com o peito cheio dessa alegria, pôs-se ao seu trabalho e se pôs a varrer e a cantar. Cantava canções que falavam de um lugar de lindos bosques, boa água, de belas pessoas. De pessoas que ouviam e compreendiam o que cantava o vento, e ao vento cantavam a alegria de serem assim como eram, amigas e boas...


* LUIZ FELIPE JARDIM é historiador e cronista acreano.

domingo, 15 de julho de 2012

O SOM ACREANO

A banda acreana LOS PORONGAS recebeu recentemente seu primeiro prêmio nacional, na categoria melhor álbum de indie rock brasileiro de 2011, na 10ª edição do PRÊMIO DYNAMITE, ocorrido em São Paulo. A banda que teve início em 2003, tem conquistado a crítica e o público por onde passa, pela excelência de seu som mesclado em letras inteligentes.

sábado, 14 de julho de 2012

BÓSON DE HIGGS, DEUS E A METAFÍSICA

PROFª. INÊS LACERDA ARAÚJO



Bóson de Higgs
A Física teórica, que usa cálculos e comprova suas hipóteses pela experiência e/ou pelos produtos técnicos e tecnológicos, é de certo ponto de vista, recente. Surgiu nos século 16, com Galileu, foi aperfeiçoada por Newton no século 17 e deu enormes saltos no século 20 com o modelo atômico.

Partículas já foram pressupostas pela filosofia natural com Demócrito, século 6 a. C., mas a intenção dos primeiros filósofos era dar uma resposta metafísica sobre a causa natural e primeira da existência de corpos e de seu movimento.

Há diferenças importantes entre a fé em Deus (monoteísmo cristão), a ciência natural e a indagação filosófica. Essa diferença reside em métodos, propósitos, perspectivas, resultados e visões de mundo. A religião e a crença em Deus dispensam provas, não requerem experiência sensível, muito menos resultados aplicáveis.

É muito estranho e mesmo absurdo, paradoxal, que a comprovação da existência de uma partícula, por mais essencial que ela seja para entender a relação entre matéria e energia, seja "a partícula de Deus", como tem sido chamado o bóson de Higgs.

Nesse caso Deus ou seria materializado ou então teria que fazer parte de sua própria criação. Então, não seria Deus como os cristãos o concebem, e como pressupõe a fé em um ser absoluto, transcendente, que tudo sabe e que não está em lugar ou espaço algum. Criar algo, a tal partícula que decifraria todo o universo, significa que o próprio Deus seria perfeitamente inteligível pelos humanos. Mas como Deus criou, precisou sair de si? E partir do que, como? De sua vontade?

Faz parte da religião e mesmo da ciência e da filosofia, o desconhecido, o misterioso. Nossa mente, nossa inteligência e o modo como significamos e nos comunicamos resultou de uma evolução histórica; o modo como produzimos conhecimento depende de teorias, cálculos, fórmulas, instrumentos. A ciência progride com esses recursos. E todos eles são produtos de nossa história e de nossa evolução. Não há como sair dessas situações e circunstâncias. Quer dizer, o modo como indagamos e as razões que nos incitam dependem dos tipos de conhecimento, da curiosidade, da linguagem e dos signos. São eles que permitem fazer essas perguntas. Respondê-las pode abrir caminhos, ou não...
E essas são reflexões filosóficas.

A metafísica é aquela parte da filosofia que indaga pelas causas primeiras de todas as coisas, os princípios do ser, como é possível que haja ser e não nada. É um pouco difícil entender essas perguntas em torno do ser, do nada, do vir a ser, se os seres são determinados, como identificá-los, se todos têm uma finalidade ou não, se são fruto do acaso ou de um princípio superior.

A ciência até pode ser reflexiva e mesmo crítica quando os cientistas se perguntam sobre os limites de seu conhecimento e os objetivos mais gerais da ciência, sobre seus fundamentos e modelos (matemático, empírico, lógico, tecnológico).

Mas a ciência não deve e nem pode pretender ter a verdade última ou ter descoberto e decifrado a origem do universo.

Certa dose de ceticismo é uma precaução contra a risível pretensão de, com nossos instrumentos e recursos, responder a todas as nossas dúvidas.

Inclusive porque o tipo de pergunta que fazemos, pela causa ou origem, é característica de nosso humano modo de ser.



* INÊS LACERDA ARAÚJO - filósofa, escritora e professora aposentada da UFPR e PUCPR.

sexta-feira, 13 de julho de 2012

BRASILEIRO POR OPÇÃO – X

JOSÉ AUGUSTO DE CASTRO E COSTA


Don José Paravicini estava à frente da administração do Alto Acre há três meses quando, de repente, rebenta um tumulto revolucionário na Bolívia, sob o comando do general Pando, em oposição ao Presidente Don Severo Alonso.

Na qualidade de funcionário público, ocupante do cargo de Ministro Plenipotenciário da Bolívia, Don Paravicini tomara a providencial atitude de reassumir seu posto na capital brasileira, onde ficaria aguardando o desenrolar das medidas adotadas pelo novo governo boliviano.

Em Puerto Alonso, assumiria a função de delegado-substituto Don Moisés Santivañez, titular do cargo de Cônsul em Belém do Pará.

O General Don José Manuel Pando é justamente aquele militar boliviano que por volta de 1894, após uma tentativa de golpe contra seu governo, refugiou-se no rio Beni, atingindo o Acre, de onde testemunhara o sucesso extrativista brasileiro.

Ao assumir as atividades em Puerto Alonso, Don Moisés Santivañez encontraria a seu serviço, deixado por Don Paravicini, um armazém bem provido de mercadorias, uma serraria manual, grande quantidade de ferramentas, móveis e utensílios, material de expediente e mais de quarenta barracas construídas.

Enquanto a Bolívia respirava, sufocada, nova atmosfera política, com alteração de  comandos, transformação de gabinetes e transição de encargos, em Manaus os ânimos dos brasileiros aqueciam-se e alastravam-se, alimentados pelo combustível inflamado e lançado por José  Carvalho, transformando a imprensa brasileira num porta-voz  dos periódicos amazônicos, que transcrevia artigos, notícias e comentários sobre o que ocorria de negativo no Acre.

As representações políticas do Amazonas e do Pará levam ao conhecimento do Congresso Nacional e da Presidência da República os sentimentos de um povo em uma demanda, na qual se acham envolvidos não apenas os dois estados, mas a integridade do território brasileiro – a alma de uma nação.

O espírito de rebeldia dos brasileiros inconformados estava realmente bastante inflamado, tomado por uma espécie de paixão, ardente.

As autoridades bolivianas, ao tomar ciência das manifestações dos brasileiros, passaram a argumentar, em correspondência ao governo brasileiro, acusando a imprensa amazonense de jornalismo exacerbado, tendencioso e agressivo.

Os fatos intensificavam-se e ardiam em progressão geométrica acerca da problemática acreana, focalizado na suposta invasão boliviana.

Entretanto, apenas os que se aproximavam do fogo poderiam sentir sua veemência e teriam a percepção de que, a qualquer momento, uma séria refrega poderia ocorrer.

Em Puerto Alonso, o gabinete de Don Moisés Santivañez, buscava desarmar o espírito de rebeldia, insinuando-lhe maus pressentimentos.

Esse espírito de obstinação de um grupo de discordantes, inconformados e inflamados, sob a coordenação do advogado José Carvalho, que acabara de regressar de Manaus, deu início a um movimento que viria perturbar o ânimo em Puerto Alonso.

Desde a noite de 30 de dezembro de 1898, no barracão da Intendência da Vila do Antimarí, que o bisneto da heroína da revolução pernambucana, estupefato, estranhara, espantara-se e incomodara-se com a invasão boliviana, vindo a debruçar-se diuturnamente sobre meios de combatê-la. Nasce, de José Carvalho, a primeira insurreição acreana.

Esse jovem cearense, era mais um exemplo de tantos outros nordestinos, que por uma razão ou por outra, costumavam, no final do século XIX, depois de formados,  tomar a decisão de realizar seus  desejos de conhecer o Amazonas e o Acre, que tanto seduziam seus espíritos aventureiros.

Após vencer, pesarosos, amistosas oposições, embarcavam em algum vapor e, a poucos dias de viagem, estavam penetrando na imensa planura de matas gigantescas, sob o equador, onde o sol desce verticalmente para o ocaso, e a ausência de horizonte e de crepúsculo causa uma impressão que jamais será esquecida.

Para a região acreana seguiram outros jovens das mais diversas profissões, como Dr. Acauã Ribeiro, Martinho Rodrigues, Francisco Mangabeira (autor da letra do Hino Acreano) e muitos e muitos outros jovens que, verdadeiramente, sentiam arder o patriotismo no coração, que não sujeitavam-se ao domínio estrangeiro no solo pátrio, que como tal haviam descoberto e desbravado – é bom frisar!

Acendendo, então o facho da insurreição, o advogado cearense partiu do seringal Caquetá, de Joaquim Victor da Silva, numa canoa com oito homens, saltou, duas horas depois em Puerto Alonso e intimou, em nome do povo acreano, o Cônsul Moisés Santivañez a abandonar o Acre e embarcar com todos os bolivianos, cerca de cinquenta, no vapor “Botelho”, ali esperado, a qualquer momento com destino a Manaus.

Houve um princípio de discussão áspera, com rebates ríspidos de ambas as partes, que durou alguns minutos. O jovem advogado concluiu seus argumentos fazendo ver que, não estando as demarcações devidamente aprovadas, pelos poderes competentes de ambos os países, e, sobretudo, sendo brasileiro o utis possidetis, aqueles acreanos não reconheciam legal o governo da Bolívia no Acre.

No dia seguinte, a 1° de maio de 1899, José Carvalho voltaria com trinta homens para receber a rendição, sem resistência, da praça fortificada, donde foi arreada a bandeira boliviana, perante o majestoso silêncio dos brasileiros, em respeito à tristeza dos vencidos.

Todavia, prestigiados pelo governo do Brasil, voltariam depois os bolivianos a ocupar o Acre, dando lugar a uma série de revoltas de seus habitantes, que optavam para continuar brasileiros. A única opção seria tornar aquele torrão brasileiro!

Essa heroica e desamparada resistência, inflamou por fim a sensibilidade patriótica em todo o Brasil.


Leia também:



* José Augusto de Castro e Costa é cronista e poeta acreano. Mora em Brasília e escreve o Blog FELICIDACRE.

quinta-feira, 12 de julho de 2012

AMORCEGAÇÃO

morcego
            persegue
                       na noite
                       no norte
           secreto
do som

soma
   sequencia
                   no cimo
                   do sonho
   sirene
sonora

namora
           morando
                       na ponta
                       na porta
           sonando
a amada

insensato
            insiste
                       no ato
                       no fato
           do amor
cegando

realidade
            rebrilha
                       na aurora
                       do dia
           nega
paixão

morcego
           espera
                       na volta
                       da noite
           o amor
chegar

insensato
            persiste
                       no ato
                       do fato
           do amor
cegando



AMORCEGAÇÃO figura na Antologia dos Poetas Brasileiros: Fase Moderna (Volume 2), organizada por Manuel Bandeira, com colaboração de Walmir Wayla, em 1967. Uma nova edição saiu em 1996, no Rio de Janeiro, pela editora Nova Fronteira. 'Amorcegação" também saiu em MONTEIRO, Clodomir. Derroteiro de Rotinas. São Paulo: Quíron/Práxis, 1976. p.55 
CLODOMIR MONTEIRO é o atual presidente da Academia Acreana de Letras.