Jairo Nolasco
Ao chegar a uma
determinada repartição pública vi uma mulher de cócoras. Aliás, ela
estava de cócoras. No corredor e de cócoras. Alguns transeuntes a olhavam com
reprovação, outros, covardemente, a ignoravam talvez por que ela só estava lá,
assim de cócoras. E eu que não tinha nada a ver com isso e nem com a vida
alheia notei que estava de cócoras. E no corredor.
Quem seria? Qual
sua história? De rosto sofrido e cabelo rebelde, sem pintura e chapinha,
aparentava mais anos do que a cronologia da certidão indicaria. Mãe de alguém.
Talvez até avó e estava lá de cócoras. Possivelmente veio da zona rural a
procura de atendimento no serviço público. Notei que na sala tinha um aviso
dizendo que desrespeitar o servidor público no seu local de
trabalho é crime e etc e tal. Como não havia ainda sido atendida e não
podia reclamar sem cometer um crime, talvez tenha se encaminhado para o
corredor e lá ficou de cócoras.
Há quanto tempo
estava lá de cócoras? Não sabia ela que a Coreia do Norte, hoje, atacou uma
ilha pertencente a Coreia do Sul e matou dois soldados sul-coreanos e que pode ser
início de uma grande guerra? Que muita gente está perdendo o sono enquanto
aguarda o próximo mês para saber quem vai fazer parte do novo secretariado do
novo governo? Que o nosso prefeito declarou que será o melhor de todos os
tempos? Isso tudo acontecendo e aquela mulher ali de cócoras, sem milho,
sem pombos, sem praça e bancos?
Nem ria e nem
demonstrava irritação. Só estava ali de cócoras, impassível. Tive inveja
daquela mulher. Não por que ela era mulher, pobre e feia. Tive inveja por
que ela era livre para ficar ali de cócoras. Eu nunca poderia ficar de cócoras
em um corredor de uma repartição pública. Logo apareceria alguém para me
demover da ideia e se insistisse perderia o emprego e a família. Os amigos
teriam pena de mim e os conhecidos desviariam o olhar. "Como um cara desse
não tem vergonha de ficar de cócoras no corredor?" _ diriam na mesa
de bar quando eu passasse, inocente, do outro lado da rua.
Enquanto a
ignoram, eu a respeito. Estava ali de cócoras a desafiar nossa hipocrisia
e nossas etiquetas de regras de comportamentos sociais de homens fracos de
causar ânsia de vômitos no enfermo Nietzsche. Que se danem os olhares de
reprovação dessas pessoas afrescalhadas. Ela estava se sentindo em
casa e o seu mundo é o que importava. Estava de cócoras, mas não de joelhos a
implorar reconhecimento. Aquela mulher de fenótipo tosco me atormentou.
Sorte de Drummond
que tinha uma simples pedra no caminho. Eu tenho uma mulher de cócoras e minhas
retinas nem estão ainda assim tão fadigadas pelo tempo. Mas minhas pernas, sim,
cansaram de ficar paradas ali vendo aquela mulher de cócoras enquanto meu tempo
de homem moderno urgia. Fiz o que tinha de fazer e quando retornei para rever a
mulher de cócoras, ela já tinha deixado o local. Deve ter se cansado de ficar
ali servindo de escárnio ou foi convidada a se retirar por alguns sapientes
funcionários públicos que devem ter descoberto uma lei que diz que ficar
de cócoras no corredor de uma repartição pública é crime, etc e tal...
E ela, a mulher
que estava de cócoras, foi embora para qualquer dia retornar e ficar de
novo de cócoras. Talvez o mundo nem fosse melhor se em cada esquina tivesse uma
mulher de cócoras, mas cada homem livre devia ter o direito de ver pelo
menos uma vez na vida uma mulher feia e tosca de cócoras no corredor a espera
de qualquer coisa, menos da compreensão alheia. A essa hora o Japão já deve ter
ter declarado o seu apoio à Coreia do Sul. A guerra se aproxima e aquela mulher
continua de cócoras. Terei pesadelo à noite.
> Crônica publicada em 23 de novembro de
2010 no Jurubeba Juruaensis. Um dos mais belos textos do nosso amigo da terra
dos Náuas, Jairo Nolasco.
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