Neuza Machado
Cada capítulo de O Amante das Amazonas é um close que aumenta e ilumina o
espaço narrado, um close dilatado pelo olhar ficcional poetizado de
um escritor-narrador repleto de matéria lírica. Nas páginas rogelianas, o
chamado “simulacro pós-moderno” se agiganta, transformando o Palácio Manixi em
um local digno de grandiosas filmagens cinematográficas. Não importa que a
história se localize no passado histórico em confronto com um verossímil
presente ficcional, o que vale é a representação da mesma no presente
cronológico, para que seja reavaliada no futuro, quando a Floresta e seus
míticos personagens não mais existirem. Os leitores do futuro se sentirão
vazios com a perda, como hoje nos sentimos despejados de um passado de glórias,
ao lermos as grandes obras literárias que nos foram legadas. Satisfazemo-nos
(os leitores-eleitos reflexivos) com os preenchimentos prazerosos ou
mentalizados desse vazio, com nossas incomodações culturais,
com nossa ânsia de crescimento intelectual.
Mesmo que o autor afirme, em suas
Entrevistas, que, desde as primeiras páginas, imitou os autores amazonenses da
época do auge da borracha, os quais também foram imitadores de Euclides da
Cunha, mesmo que diga que a sua obra, como um patchwork quilt (só para expressar-me como os autênticos
críticos brasileiros pós-modernos, os quais preferem reverenciar as expressões
estrangeiras, em detrimento de suas falas tupiniquins), explicita as suas
dilatadas leituras teórico-filosóficas, posso afirmar que o todo de sua
narrativa se vale da intencionalidade ficcional.
A intencionalidade ficcional vai segurar e assegurar o diferente fio narrativo,
transformando em novidade, em criação, o já instituído. A visão distendida de
Rogel Samuel sobre o seu espaço romanesco é maior do que as informações que ele
colheu nos livros (em suas leituras filosóficas ou ficcionais). É uma visão
transcendental, particularíssima, que ele procura desmistificar, como se ele
não tivesse o direito de reivindicar a autoria plena de seu texto ficcional.
Ele “finge” saber menos do que os seus personagens (“o poeta é um fingidor”, já
disse Fernando Pessoa), por isto a criação de dois narradores visíveis, fora os
invisíveis que muito contribuíram.
Por meio dessa aparente simulação, ele
refez/refaz os aspectos e atitudes dos personagens perante a vida na Floresta,
evitou/evita os juízos pré-concebidos dos leitores desatentos, mas o propósito
de criação ficcional permaneceu/permanece direcionando o fio narrativo. Seus
narradores expuseram/expõem (e vão continuar a expor) seus pontos de vista
sobre a realidade da Grande Floresta, sobre aquele lendário universo que eles
desejaram/desejam perpetuar, para apresentá-lo aos leitores do futuro. A
criação ficcional é alguma coisa que independe de preço, porque a história do
conflito entre as duas realidades – a social e a mítica – poderá ser reavaliada
futuramente, quando os “verdadeiros” leitores de Rogel Samuel, desconhecedores
dessas passadas durações grandiosas, começarem a interagir com as camadas
ocultas de seu romance pós-moderno/pós-modernista. Enquanto não aparecem esses
futuros leitores, naturalmente os leitores privilegiados, aproprio-me de minhas
reflexões e passo a afirmar que, se há mais de um narrador atuando, isto prova
a intencionalidade ficcional. E se suas faces são incomuns, reduplicadas, estas
são próprias das autênticas narrativas ficcionais da pós-modernidade.
Enquanto o(s) narrador(es) rogeliano(s)
refletem os atuais problemas insolúveis da Grande Floresta e, por acréscimo, os
problemas da cidade de Manaus (e o personagem pós-moderno/pós-modernista de
Segunda Geração desta diferente narrativa ficcional é a Floresta Amazonense), a
autêntica criatividade ficcional de Rogel Samuel vai-se materializando ante o
entendimento catártico do leitor do presente (e assim será com o leitor do
futuro). Tal intencionalidade do(s) narrador(es) de Rogel Samuel, resguardada
evidentemente por uma linguagem especialíssima, vai permitindo que os
movimentos e percepções dos personagens, restritos ao interior da Grande
Floresta, se presentifiquem, revelando aos leitores uma específica realidade,
saída do particular conhecimento do criador ficcional, conhecedor, por sua vez,
dos diversos graus da chamada “linguagem figurada”.
E, graças a esse conhecimento anti-convencional,
o(s) narrador(es) desta ficção rogeliana, em particular, vão interagindo com a intertextualidade, aquela
intertextualidade que já foi considerada a marca de nascença das narrativas do
final do século XX. Os estudos literários, as análises e interpretações, as
sistematizações de textos-base (e foram muitos os textos-base sistematizados,
segundo o próprio escritor) possibilitaram a transformação da Grande Floresta
em ocorrência maravilhosa (atentar
para a etimologia desta palavra). A Grande Floresta como espetáculo, dinâmico,
interativo, e que, a qualquer momento, atingirá também outras mentes, aquelas
que ainda não tiveram o privilégio de dialogar com este instigante texto
ficcional.
Se há intertextualidade, esta se liga aos assuntos míticos da Floresta,
às questões políticas do Amazonas, às reflexões particulares do autor. Essas
controvérsias, diversas e desencontradas (ou se quiserem ajustadas), colocam em
destaque, apenas, um personagem principal. E este personagem principal é a
própria Floresta, com seus segredos e alucinações, uma Floresta estranha e
diferente, terrivelmente insólita, Floresta que nenhum outro escritor
amazonense da atualidade conseguiu resgatar, criativamente falando, em forma de
ficção (apenas o escritor Rogel Samuel, nobilitado no terceiro cogito da
consciência singular).
A visão do(s)
narrador(es) rogeliano(s), em um primeiro momento, poderia ser considerada como
uma “visão de fora”, ou seja, uma visão de narradores de narrativas
pós-modernas/pós-modernistas projetando a objetividade da câmara (como querem
os estudiosos da ficção da pós-modernidade), mas, a valorização da Floresta
Amazônica, subentendida, é maior do que a objetividade alienante. Mas é também
esta aparente “visão de fora” que impede a análise psicológica, tão do gosto
dos anteriores pós-modernos-modernistas. Ela se calca nas invenções do século
XX, como o cinema e a televisão. De certa forma, relaciona-se com o novo (já
antigo) romance francês da
década de quarenta, mas não se prende totalmente a essa forma narrativa, também
conhecida como a “escola do olhar” (de Robbe-Grillet, Claude Ollier, Jean
Ricardou; ou mesmo, dos escritores portugueses do pós-sessenta ao final dos
anos oitenta: Augusto Abelaira, Almeida Faria e outros), ao contrário, nesta
fase atual, dos anos noventa até ao momento, o imaginário-em-aberto do escritor
pós-modernista de Segunda Geração se dilatou. Os dois narradores desta
narrativa de Rogel Samuel se apresentam em pessoas diferentes: o Ribamar de
Sousa em primeira pessoa e um segundo narrador em terceira pessoa. São os
alternados egos do próprio escritor amazonense se confundindo com os inúmeros
personagens, todos importantes, todos eles fases-faces do próprio criador. Além
disso, há muito mais: esses narradores são porta-vozes de quem escreve, porque,
ao longo da narrativa, percebe-se que, independentes das assumidas colagens
(colchas-de-retalho ou patchwork
quilt), aqueles que enunciam
(anunciam) têm poder, possuem o poder dos que se colocam como testemunhas
importantes, de momentos incrivelmente importantes, momentos do próprio autor,
nato de um lugar que se localiza para além da imaginação comum, resguardados
pelos mistérios ocultos, mistérios diferenciados subjacentes na Imensurável
Floresta Amazonense.
> Neuza Machado, Doutora em Ciência da
Literatura/Teoria Literária pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e
Ex-Professora da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Amazonas.
> Texto publicado na página do escritor Rogel Samuel.
a querida Neuza se foi dessa vida... ficaram seus belos textos...
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