quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

EM QUE SENTIDO ESPÍRITO E/OU ALMA EXISTEM?

Inês Lacerda Araújo


Quem leu a postagem anterior, talvez tenha concluído que seria impossível falar de alma e espírito, se eles não existissem. Faz sentido atribuir qualidades como imortalidade, espiritualidade, invisibilidade, capacidade de pensar, de isolar-se no íntimo de seu eu, sem que haja tais entes, quer dizer, algo em si ao qual podem ser atribuídas a existência, a subsistência, a temporalidade, e outras categorias?

É preciso levar em conta duas possibilidades:
A primeira possibilidade, considerar que a resposta à pergunta "o que existe?" é: entidades com a capacidade ontológica de ser, de existir ou de subsistir são uma resposta evidente e imediata a essa pergunta. Espírito/alma existem, mas não do mesmo modo que uma mesa existe, que corpos de um modo geral existem. A natureza dessa existência seria a espiritual, incorpórea. Prova disso: somos seres pensantes, nosso espírito subsiste nas ideias, imaginação, vida interior, pensamento. Difere do corpo, portanto, também difere do cérebro e de suas complexas engrenagens. Descartes defendeu essa visão dualista do homem.

A segunda possibilidade: o sentido ontológico de alma/espírito é atribuível a facetas, a características da cultura humana, às ações, às situações desde as mais corriqueiras, até os ritos mais secretos, às celebrações mais solenes. Exemplos de atos de fala com emprego contextual compreensível e que não levantam problemas ontológicos, isto é, perguntas sobre se se trata de espírito "mesmo" e como é sua natureza, imaterial, pessoal, imortal, etc.

"Pedro é uma pessoa boa, tem um espírito conciliador"

"O Espírito dos povos evolui e se aperfeiçoa"

"Pobres almas inocentes dessas crianças que morreram nos bombardeios da Síria"

"Um raio de luz me transpassa a alma: não é à multidão que Zaratustra deve falar, mas a companheiros!" (Nietzsche).

"Espíritos elevados constroem um mundo melhor".

E inúmeros empregos dos termos, como "parece uma alma penada" sobre o aspecto lúgubre de alguém; "espírito de corpo", para corporativismo, e "espírito de porco" em um xingamento; e tantas outras de nosso uso diário, por vezes na poesia, na literatura, nos ditos populares.

Assim, há os que creem na alma como uma entidade pelo menos subsistente cuja natureza difere radicalmente da corpórea, e aqueles que partem de outro pressuposto, o da vida humana inserida em uma cultura, com seus signos, linguagem, atos de fala, jogos de linguagem, símbolos. Estes últimos não precisam elucubrar, apenas ver o que e como ocorrem as situações em que faz perfeitamente sentido se expressar com termos que se referem às capacidades de pensar, refletir, falar, dar sentido ao mundo, comunicar, decifrar, inventar, imaginar, e tantas outras. 

Como resolver a seguinte questão, para os adeptos da primeira possibilidade. Sentir prazer ou dor é corporal ou espiritual? A dor física e a dor moral, a dor de uma perda, em que diferem? Valores morais pertencem ao corpo ou ao espírito? 

Ou essa outra, para os adeptos da segunda possibilidade: depressão (doença inventada/diagnosticada pela psiquiatria) é física, cerebral, mental, espiritual, cultural, genética, inclassificável em um só gênero? 

E mais essa: por que faz muito mais sentido dizer "força de vontade" do que "força de espírito"?

Quero dizer uma coisa aos que menosprezam o corpo: desprezam aquilo a que devem sua estima. Quem criou a estima e o desprezo, o valor e a vontade? O próprio ser criador criou sua estima e seu desprezo, criou sua alegria e sua dor. O corpo criador criou para si mesmo o espírito como procedência de sua vontade  (Nietzsche, Assim Falou Zaratustra).


INÊS LACERDA ARAÚJO - filósofa, escritora e professora aposentada da UFPR e PUCPR.

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