Leila Jalul
Agnus
Dei, qui tolis peccata mundi, miserere nobis.
Cordero
de Dios, que quitas los pecados del mundo, ten compasión de nosostros.
Cordeiro de Deus, que tiras os pecados do mundo,
tende piedade de nós.
Assim aprendi a pedir clemência pelos meus
erros e pelos erros da humanidade. Nas missas, era um momento de contrição e
demonstração de arrependimentos. Aquele sininho que o sacristão sacudia
freneticamente, das duas, uma: ou o cristão debandava, por conta do barulho, ou
entrava em sintonia. O medo dos castigos de Deus, afinal, foi sempre o motor de
arranque da doutrina e o freio dos desregrados fiéis. Se isso é bom, se é ruim,
não é o foco principal da conversa. Esse assunto do medo imposto pelas
religiões, por certo, não cabe em duas laudas, muito menos num arremedo de
crônica.
Aos fatos: era quaresma. Os santos estavam
todos encapados de roxo. As imagens grandes dos altares secundários, confesso,
causavam medo. Havia passado toda a semana percorrendo a via sacra na catedral,
puxando as músicas pertinentes a cada estação. “Stabat Mater Dolorosa, juxta crucem lacrimosa, dum pendebat fillius...”.
Momentos de fé e de dor. Tenho sentimentos bons, apesar de tudo, apesar de
muitos...
Saí dali e fui direto para o profano. Um
jantar, um violão e muitas vozes me esperavam na chácara do Flávio Mariano. Uma
seresta modesta para espantar o sono das músicas sacras que as emissoras de
rádio tocavam. Os velhos, que nem eu, sabem do quanto de mistério e respeito se
devia guardar naquele período. As casas não eram varridas, nossos pais e avós
jejuavam de forma radical. Nada de carne, nada de festa, nada de música. A
exceção da comida era para com os doentes e menores de idade da primeira
infância. Estes podiam mastigar um ossinho de galinha, uma farofa de ovos. Aos
marmanjos, por cortesia, apenas pão, batata doce, mungunzá e água.
Flávio Mariano não aceitava estas injunções
religiosas. Mandou preparar uns quibes (crus e fritos), um tabule, umas
berinjelas assadas na brasa e temperadas com molho de gergelim, uns bifes de
coxão mole e outras iguarias fora da dieta e do jejum. Muita gente estava ali
para tomar cerveja, cantar e comer. Jamil, a voz de ouro, cantava coisas de
Orlando Silva, Vicente Celestino, Francisco Alves e Cauby Peixoto.
A festa corria solta. Marileide, mulher do
prefeito Almir, era outra que impressionava com a voz e com a vastidão do
repertório. A criatura só sabia músicas de efeito sado-masoquista, tipo: “Se
queres compreender o que é saudade, precisas conhecer um grande amor...”, “Chegou
com aquele olhar de quem sente saudades...”, “Eu vi lá no cinzeiro do seu
quarto as pontas de cigarro com batom...”, “Entra, meu amor, fica à vontade...”
e mais outras, e outras mais.
Perto das vinte e duas horas,
tresloucadamente, bem alterado pelos graus do álcool e de cumplicidade com o
anfitrião, Evaristo Mathias pede ao dono da casa que mande executar um carneiro
que estava amarrado no pé de laranja-lima. Já bêbado, teve desejos de comer os
bagos do animal à moda árabe, quer seja, escalopes de escrotos ao alho, sal, azeite
e pimenta bahar. A execução deveria
ser no sábado de aleluia já rompido, mas, a insistência foi tanta que Flávio
Mariano não teve outra escolha. A única alternativa era acordar o caseiro. Aos
gritos, como costumavam agir os coronéis de barranco.
– Tavinho, acorda a Olindina e anda cá!
Tavinhoooooo, acorda, homem! Sai do gancho que hoje é pecado!
– Já vou, Doutor Mariano, já vou.
– Tavinho, corta os ovos deste carneiro. Pra
já, homem!
– Mas Doutor, hoje não é dia... Isto é uma
heresia. Não era pra amanhã?
– Não, é pra já! Peraí, não é pra matar.
Heresia é aguentar esta tua cara de tatu de cemitério. Capa o bicho. Amarra um
cordão na parte de cima, outro nó na parte de baixo e zás! Só quero os bagos,
cuida!
Escutei a ordem, olhei para a expressão
sonada, espantada e apiedada do Tavinho. Olindina ficou muda. Não deu um pio. Saiu, pegou um prato, uma
faca amolada e dois pedaços de barbante de sisal. Ordem é ordem, patrão é
patrão, quem pode manda, quem tem juízo obedece, deve ter pensado. Esta não era
a lógica de Tavinho. Seu desejo era, creio eu, tirar os ovos do Evaristo e
mandar o patrão ir para as profundezas do inferno.
O carneiro, resignado, parecia adivinhar o
triste fim de Policarpo Quaresma. Olhei para o casal de empregados, para o
patrão e para o carneiro. Não sei se consegui captar o sentimento de todos.
Lembro, todavia, que o carneiro pareceu ter deixado escorrer uma lágrima. Pode
ter sido apenas uma impressão, sei lá!
Queria dizer que na hora H veio um raio de
luar sobre a cabeça de Evaristo, o levantou no ar e o jogou no chão chorando,
olhos transtornados, pedindo perdão, já beatificado naquele momento. Mas não
foi assim, é certo.
Deixo o procedimento cirúrgico para que façam
suas próprias deduções. Apenas digo que, na hora do zás, foi horrível. Tremi da cabeça aos pés. O animal, idem.
Fiz das tripas coração. Não tinha como
arredar o pé dali sem o meu caroneiro. Fiquei assistindo o desenrolar da
maldade que, ao final, rendeu um prato de sobremesa com escalopes de culhões
temperados com alho, sal, azeite e pimenta bahar.
Nesta noite chorei. Não olhei o que sobrou no
prato de sobremesa. Um teatro com cenas
fortes demais para quem tinha acabado de sair da décima quarta estação. Nos
meus ouvidos ainda tilintavam as palavras finais:
No sepulcro Vos
deixaram,
Enterrando-Vos
choraram,
Magoado o coração.
Afe! Afe!
> Agradecemos gentilmente o envio da
crônica lá das terras sagradas da Bahia pela nossa querida Leila Jalul. A crônica
também integra o livro DAS COBRAS, MEU VENENO (2010), p.99-102.
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