Coelho Netto (1864-1934)
(fragmento do romance Miragem)
(fragmento do romance Miragem)
– Eu?! Que pergunta!
– Mas por que me perguntas isso?
– Não sei... Tenho sofrido tanto! Que mal fiz
eu? E tu, meu pobre Nazário? E há por aí tanta gente ruim que vive nadando em ventura.
– E sabes lá o que se passa n’alma dessa
gente? A felicidade não é o que se vê, rapaz, como o céu não é isso que aí
está. Felicidade... Olha esta noite: mais alva que a neve e toda manchada de
negro. Quanto mais clara é a luz mais se carregam as sombras. Quem sabe o que
se passa no coração desses tais...?! Se houvesse na vida felicidade perfeita,
Deus seria injusto e os infelizes teriam razão de revoltar-se contra Ele. Nós sempre
nos imaginamos os maiores desgraçados do mundo, do mundo! desse bocadinho de
terra em que vivemos. O mundo é tão grande!
Os dias deviam passar de vez levando tudo,
tudo! Mas não, deixam ficar bocadinhos e esses bocadinhos crescem, como
sementes caídas das árvores, e dão flores tristes e venenosas, como a saudade. Que
somos nós? passado. Queres saber? quanto mais peno mais cresço; quanto mais
sofro mais me achego à cruz.
Sabes qual é o teu mal? é isso de andares
sempre imaginando. Põe-te num alto, bem alto, olha para baixo e tudo te
parecerá sereno; desce, e verás as pedras que magoam, os espinhos que ferem, as
ondas que afogam, as podridões que tresandam, as maldades da terra e do
coração, a vida, enfim. Lá de longe, de onde estavas, vias tudo aqui cor de
rosa. Chegaste, aí tens. É assim, meu rapaz. Um parente meu, que esteve em
África, contou-me que naqueles sertões de areia anda-se, anda-se dias e dias a
fio sem ver água nem sombra. De repente lá surge um bosque de palmeiras. Os que
vão morrer de sede dão graças a Deus, aos brados, e galopam para a delícia. É correr,
é correr que nem o vento os ganha... E o bosque a fugir diante deles e, quando
os coitados chegam ao sítio das verduras, não acham mais que areia e ossadas de
outros que morreram da mesma mentira. Isso tem um nome, que me não lembra. Eu chamo-lhe
ilusão. Na vida é a mesma coisa: além, sempre o tal bosque, corre-se e que é
que se encontra? Tu ainda podes seguir, és moço. Eu... já não tenho olhos para
ver ao longe, não me iludo mais: fico onde estou, no meu quieto, até quando
Deus quiser. Aqui estás e é o que vês. Tua mãe... tua irmã... Já agora, rapaz,
não sei. Salvá-las...? duvido muito! Vai-te embora.
NETTO, Coelho. Obra seleta: volume 1:
romances. Rio de Janeiro: Editora José Aguilar, 1958. p.215-217
Que belo trecho, professor Isaac!❤
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