João Veras
Tenho como indiscutível a importância do
Festival Pachamama para o cinema latino americano, para o brasileiro e para o
acreano (existe!) como um evento que difunde, promove visibilidade e provoca o
pensar sobre as audiovisualidades produzidas nestes territórios geoculturais -
que é também refletir sobre a nossa condição latina - como processo político e
estético muito mais que como mero produto de consumo/entretenimento. Este é um
aspecto que carrega outros não tão expressos. Pretendo aqui pensar a respeito.
O Pachamama, todavia, com essa grandiosidade
de importância, não passa de una isla pequenita afastada em um lugar distante e
sem tradição na cena cinematográfica do continente para a qual alguns poucos –
muitos poucos – visitam/frequentam anualmente procurando acessar películas
contemporâneas que estão fora do esquadro da indústria mundial do cinema. Para
aonde outros buscam reconhecimento/troféu/título/currículo, aprendizagem,
troca, trabalho, grana, ocupar tempo, amizade, paquera, diversão, aprendizagem,
entretenimento... Alguns se limitam a cumprir a nobre missão social de abrir e
fechar o evento, quando o foco público mesmo reduzido é maior, coisa de poucos
socialites e políticos da aldeia. Imaginam: é fashion, é de vanguarda, talvez
popular... Os demais destas turmas, nem isso, passam ao largo. Vade-retro,
devem pensar.
Não por falta de divulgação, o público
escasso é quase sempre o mesmo. O Festival se esforça em não passar em branco
para a plateia e sai tentando se espraiar pela cidade. Muitas sessões e debates
são salvos (sobretudo em quantidade) por professores e seus alunos espantados
com o que não é Hollywood. Motivos todos legítimos! Ninguém é obrigado a gostar
(nem entender) de cinema, muito menos daquele tipo tão estranho à massa
celebrado pelo festival. Findo o evento, quase todos retornam à sua rotina
cômoda de consumir o mesmo em suas telas privadas. Ano que vem a ilhazinha
aportará de novo. Massa!
Insisto na figura da ilha para também pensar
a relação do festival com a realidade local. Interessa-me aqui tratar da
influência e importância para nosotros que ficamos depois da badalada
Pachafesta. O que faço não é só como contraponto para o não local, para los
otros. Não que o evento deva ser responsabilizado pela política audiovisual
desde aqui. Trata-se de pensar com ele e a partir dele – porque com ele sinto
uma sugestão de que estamos bem nesta área – e além dele – pois se trata de um
evento, como todo aquele dependente de verba estatal com a qual é possível a
sua realização e sem a qual vira tão-somente mais uma lembrança do que um dia
aconteceu nesta terra do “já teve”. É necessário ter muito claro os seus
caracteres, de índoles precárias, tanto temporário quanto de dependência – dois
dos seus limites.
Há sete anos que o festival é realizado em
Rio Branco. E tem acontecido, ao que me parece, sempre com apoio dos poderes
governamentais locais. Todavia, estes mesmos poderes, especialmente da área
cultural - nesse período (e também antes) jamais ofereceram qualquer política
de Estado voltada para o estímulo e apoio para o vídeo e o cinema da região. Se
este apoio ao festival – que é muito pequeno (tendo em vista que o evento tem
sido sustentado basicamente por verba federal) – é, para os governos locais, as
suas parcelas de apoio ao audiovisual da terra, então reafirmo: continuamos sem
política para área, inclusive sob o ponto de vista de um acesso democrático e
participativo.
Noutro aspecto, reduzir uma política de
audiovisual apenas ao intercâmbio (dado como um dos fortes objetivos do
festival vinculado ao apoio oficial) não basta, sobretudo esta espécie de
intercambio em que a reciprocidade não funciona, tendo em vista que sugestiona
– senão patenteia - um “lugar de fora” a partir do qual o conhecimento esperto
advém. Em regra, quem julga, quem palestra e quem ensina é “de fora”, o que
coloca o de “dentro” na outra ponta “oca” da condição de saber e poder. A velha
métrica colonial.
O fato dessa efetiva ausência de política
cultural para o audiovisual local reflete diretamente na própria programação do
festival que, a cada ano, tem dificuldade de atender à necessária (imagino)
cota de filmes acreanos. Nem pensar incluí-los no rol das obras competitivas.
Acho que nestes sete anos tal fenômeno nunca aconteceu. Não somente pela noção
de qualidade que os festivais impõem, mas por falta mesmo de obras. E porque
falta qualidade e porque não tem obra? Buscar respostas para estas perguntas,
penso, é fundamental.
Nesse sentido, no último dia do festival,
numa tarde quente de sábado, “foram rodados” três filmes que estavam fora da
competição e qualificados na programação como parte da Mostra Amazônia. Os três
foram feitos no Acre e sobre o Acre. Nenhum teve qualquer apoio dos poderes
públicos nem locais nem federal. Um deles faz questão de dizer isto, com todas
as letras, na sua abertura. O que demonstra que, apesar da ausência do Estado,
como fomentador da expressão audiovisual e garantidor do constitucional direito
cultural, a produção resiste. Não tenho dúvida de que se fossem feitos com
melhores condições (estrutura, equipamento...), o que significa com verba
suficiente para suportar os desejos criativos, tais obras estariam não na
programação de mostras em uma tarde quente de sábado, mas na competição e para
além das fronteiras locais. Quem sabe assim, para o cinema latino, esta
fronteira distante não seria tão distante e o evento não seria tão ilha.
Em alguma das edições do festival, as
condições de produção locais do vídeo e do cinema foram de fato debatidas em
sua programação oficial. Sei que o “pessoal do audiovisual” nesta oportunidade
reclamou política pública para a aérea. Lembro que foi realizado um evento
especial a respeito, inclusive com a chancela estatal. Apareceu até uma
associação nacional de vídeo com representação local. Mas nada foi feito. E
tudo se aquietou. Talvez o debate tivesse no fundo tal intento (coisa de
doido). E o Pachamama – essa é a minha impressão – deixou de tocar nesse
assunto, pelo menos de forma direta, objetiva, enfática. A sensação que tenho é
que as discussões de seu interesse estão voltadas ou para questões técnicas ou
para os temas – no campo da política - que o cinema latino americano (vale
dizer, tudo que se faz fora daqui) trata. Sobre a política local, nada. Na
verdade, outra intuição que tenho é que o “pessoal” do audiovisual daqui “não
gosta muito” de produzir algo que trate – de forma crítica – dos poderes constituídos
locais. E olha que só estou me referindo à questões em torno da política
cultural do audiovisual! Eu compreendo as razões. Não vivemos ainda em plena
liberdade de pensamento e criação. Especialmente se essa liberdade pretender
ser exercida com dinheiro público. Havendo o mínimo de indícios de crítica a
resposta é enfática: no hay dinero. Quem vive aqui sabe como funciona o “nosso”
regime democrático. Penso que realizar um filme a tal respeito nos colocaria na
tradição da crítica de um certo cinema latino, certamente. Enredos temos de
sobra.
Fachada do Cine Teatro Recreio anunciando o Festival Pachamama 2016 |
Desejo que o Pachamama, como um dos
importantes hospedeiros/difusores temporais do cinema latino americano
contemporâneo, tenha efetivamente uma razão local de existir (em torno de uma
produção audiovisual a partir do olhar daqui) e não se acomode no papel de um
tipo de “laranja” da audivisualidade externa (com as suas qualidades e
importâncias) e de uma espécie de capa que tem contribuído para acobertar, de
alguma forma, o violento déficit de política cultural local no campo do
audiovisual.
Não merecemos viver somente para expectar/reproduzir o que vem “de fora” (mesmo que este “de fora” não venha da Hollywood colonizadora), tampouco silenciar frente a uma forma velada de política estatal de censura ao audiovisual (especialmente em sua potência de criticidade). Será que a condição colonial - contra a qual, em regra, o cinema latino americano se debate historicamente - ainda permanece e se fortalece justamente no contexto do evento que se propõe a homenagear a resistência? Que martírio é esse, Acre?
Não merecemos viver somente para expectar/reproduzir o que vem “de fora” (mesmo que este “de fora” não venha da Hollywood colonizadora), tampouco silenciar frente a uma forma velada de política estatal de censura ao audiovisual (especialmente em sua potência de criticidade). Será que a condição colonial - contra a qual, em regra, o cinema latino americano se debate historicamente - ainda permanece e se fortalece justamente no contexto do evento que se propõe a homenagear a resistência? Que martírio é esse, Acre?