Altino Machado
(1924-2011)
Com
cento e cinquenta e três mil quilômetros quadrados, bem maior do que Portugal,
situado no Centro-Oeste brasileiro, vizinho da Bolívia e Peru, confinando com
os estados de Rondônia e Amazonas, o Acre é o maior produtor de borracha do
país. Borracha nativa, extraída da majestosa seringueira, Hevea brasiliensis, filha da Amazônia gigantesca, de quatro milhões
e meio de quilômetros quadrados, mais da metade da área do Brasil, país
amazônico. O Acre ocupa um canto dessa região pátria; ele é todo floresta, com
pequenas clareiras e poucas cidades incipientes, pequeno arquipélago no imenso
mar de mata verde; cidades ilhadas pela selva espessa, fechada, indevassável.
Nessa selva, de onde sai a borracha, vive o pigmeu-gigante, vive e trabalha,
livre-escravo, o seringueiro, o herói – herói da Amazônia-acriana!
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Fotografia presente no livro O
seringal e
o seringueiro (1956) de Arthur
Cezar Ferreira Reis.
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O
seringueiro em geral provém do Nordeste – nordestina é a origem histórica do
Acre. O homem começa a trabalhar bem moço, à roda dos dezoito anos, senão
antes... Trazido pelo seringalista, o proprietário do seringal, ele é
encarregado de explorar determinada área, a “colocação”, de limites fluidos,
sem demarcação. Ali permanece com a mulher, nova, muitas vezes com treze anos,
mas já mulher, que ele traz de sua região, a namorada, agora esposa. Sua tarefa
é o corte da árvore e o recolhimento do látex. São aproximadamente cento e
vinte “madeiras” ou seringueiras, naturais, situadas no meio da mata ciclópica.
De início, ele já deve ao patrão o preço da mudança, por aquele fixado
arbitrariamente, e contabilizado unilateralmente em seus livros. A dívida é
acrescida de juros periódicos, sem controle e ciência do seringueiro, que
jamais dela se libertará, por impagável...
Constrói,
ele mesmo, seu barraco – toras de palmeira fincadas no chão e cobertas com suas
próprias folhas; inteiramente aberto por causa do calor equatoriano, o barraco
não tem paredes; apenas soalho e teto, sendo acessível, pois, às feras, aos
mosquitos e tudo o mais. Nele viverão todos da família, em comum, na
promiscuidade da intimidade forçada. Ali se dorme, se come, se cozinha, se toma
banho. Os filhos assistem aos pais se amando, tudo prematuramente, mas, para
eles, absolutamente natural. No barraco se arma a rede; uma para começar, do
casal, e, a cada nove meses, mais uma para a criança que nasce...
O
casal terá inúmeros filhos: dez, doze, até dezoito! Muitos morrerão, outros
sobreviverão, numa demonstração de resistência do gênero humano. em dez ou
quinze anos, ambos estarão velhos, desdentados, impaludados, com vermes, se não
tuberculosos. As filhas maiores serão cobertas pelo próprio pai; novas crianças
surgirão. A miséria vai aumentando em progressão geométrica, a desnutrição é
crônica, a mortalidade impressionante.
Só,
absolutamente só, sem ver ninguém, sem contato com a chamada civilização,
desassistido inteiramente, isolado naquele mundo primitivo, distanciado
centenas e centenas de quilômetros da povoação, contando somente consigo, o
seringueiro-herói é um pigmeu ante o gigantismo da mata, do cumaru-ferro, da
bela castanheira, rainha da floresta pelo seu porte; da seringueira, sua
conhecida companheira de trabalho, na medida em que ele dará a base de seu
sustento; de milhares de espécimes vegetais que formam a maior reserva
florestal do mundo!
Além
de pigmeu, frente a cenário de tal jaez, cósmico, que o deslumbra, maravilha,
fascina, e a um tempo o atemoriza e o acachapa, ele é também um gigante, pela
tarefa que exercita, pela luta homérica contra a natureza hostil, os animais
ferozes, o ilhamento, o mosquito e o pior: o homem! O homem que o explora!
Livre,
naquele cenário sem limites, sente-se dono de tudo, sem dono aparente ao seu
redor, sem controle visível! Ao mesmo tempo em que se sente liberto, é
manipulado por cordões invisíveis, a distância; é escravo eterno do homem que o
trouxe, a quem ficará devendo pelo resto da vida, por mais que venha a produzir,
e de quem dependerá, doravante, para o fornecimento de gêneros, de ferramentas,
de munição para a defesa pessoal e a caça. O homem é o escravizador para o qual
trabalha, árdua, asperamente, de doze a dezoito horas por dia, durante o ano
todo, sob o sol e a chuva, são ou doente, queira ou não queira, sem qualquer
proteção legal, sob pena de sucumbir, de não produzir o esperado, de não ter o
que comer.
O
trabalho do seringal tem mão única: só entrada; não há saída, a não ser pela
morte do seringueiro. Gigante-pigmeu, liberto-escravo, ele é o herói da
Amazônia-acriana!
O
seringueiro Severino deixa o barraco bem cedo, antes do sol aparecer. A mulher,
Raimunda, o sacode forte para acordá-lo. Faz poucas horas que se deitou,
fizeram amor, como o fazem quase todas as noites. Desta vez foi com ela,
Raimunda, e não com a Maria, filha já moça e mãe de dois filhos dele, seu pai.
Severino acorda resmungando; ainda é noite escura, mas se levanta, emborca o
café ralo que ela requentou, pega a matula embrulhada numa folha de bananeira,
guarda-a na bolsa de pano de saco, a tiracolo. Põe fumo no bolso da calça rota
com a qual dormiu e trabalha. Apanha a poronga e a coloca na testa acendendo a
vela que lhe iluminará o caminho. Enfia na cintura a faca afiada e põe a
carabina de caça às costas; apanha, ainda, o balde e as canequinhas de latão,
beija a mulher, olha os oito filhos ainda adormecidos, os filhos-gêmeos, e sai
para iniciar a faixa diária.
Ainda
pela “penetração”, trilha batida pelos seus próprios pés, chatos, grandes e
grossos, descalços, no meio da selva misteriosa. Segue cantando modinhas do
Nordeste que aprendeu menino, bem como o “salvelindo” e o “ouviram do
Ipiranga”, de que se recorda vagamente; sabe que eram músicas importantes, mas
ignora por quê. Segue também falando sozinho, em voz alta, para manter-se
acordado. Vai à procura das “madeiras”, distanciadas umas das outras,
obrigando-o a andar em ziguezague. Não há ordem na localização das árvores, não
se trata de plantação artificial. Cuida-se de seringal nativo: uma aqui, outra
acolá, mais uma, mais outra, alhures, perdidas em meio à mataria compacta. Em
cada seringueira, faz o corte: um risco com a faca especial, e finca uma caneca
na base do risco. Nela pingará o látex branco que a árvore suará. Leva mais de
quatro horas para perfazer o percurso, de aproximadamente sessenta “madeiras”,
que corta em dias alternados. Na vez seguinte serão outras sessenta.
Severino
anda, salta obstáculos, pula, tropeça, cai, arranha-se, corta-se, machuca-se em
espinhos e farpas, sopra o ferimento, estanca o sangue com o látex, mas não
esmorece. Foge das cobras, quando não abate para comer; tem gosto de peixe.
Evita as feras maiores trepando nas árvores e esperando que se afastem. Procura
caçar bichos comíveis: além das cobras, citadas, veados distraídos, caititus
roncadores, pacas mansas, antas preguiçosas, todos de gosto excelente. Caça
também aves: galinhas selvagens, pombos, patos, papagaios. Tudo vai para a
panela em casa. Macacos, lagartos e até gaviões, em último caso, quando a fome
é grande e não consegue coisa melhor. peixes, só nos igarapés longínquos, pois
inexistem em sua “colocação”. De vez em quando adentra mais na floresta e os
localiza pelo ruído da água fria correndo; são lindos e refrescantes. Então,
ele se farta em banhar-se; pesca uma ou outra qualidade de pequenos peixes, que
corta, limpa, e come ali mesmo, cru e sem sal. Leva outros para a família. À
hora do almoço, quando já completou a volta, “poronga” apagada, pois é dia
alto, cerca das nove horas, senta-se num tronco caído e come e macaxeira que
trouxe, pedaço de rapadura, alguma farinha – a matula que a Raimunda preparou.
Raimunda, a heroína! Neste momento, ele se lembra da mulher e conversa com o
eco da floresta:
–
Raimunda, bonita de cara e boa de bunda!
–
A minha Raimunda, boa parideira, boa cozinheira, boa companheira! Boa mulher...
Boa na rede, boa no amor, boa de bunda, a Raimunda.
–
A Raimunda, a Raimunda, boa de bunda, boa, boa...
E
dá o grito final:
–
Raimunda, Raimundinha! Espere por mim, Raimunda...
Seu
pensamento divagava. Lembrou-se do aviador, que estivera no barraco certa vez e
levava a segunda filha para a cidade, prometendo arranjar-lhe bom emprego e bom
casamento... Já era mais que hora. Ela ia completar quinze anos, ainda era
virgem. Não sei, não...
–
Eu já estava de olho nela; também, com aquele corpo, andando nuazinha o dia
todo, como aguentar?... – pensou e falou, alto.
Soube,
meses depois, que a segunda filha, a Rosa, morava numa casa bonita, de Madame
Fifi. Mudara de nome, passando a chamar-se Dedê. Era muito requisitada, muito
valorizada!...
Ele
gostava mesmo era de ouvir aviador contar coisas sobre a cidade grande: muita
gente, todos ricos e chiques, muitas casas, automóveis, cinema – coisa difícil
de acreditar... Algum dia ainda viajaria para Rio Branco; teria dinheiro no
bolso e passaria um mês pegando mulher nova... Nunca vira mulher de cabelo
vermelho, como lhe falara o aviador – “rúvia” ou “ruiva”, não tinha certeza. O
aviador lhe dissera que elas são de fogo. Deixam o homem louco... Ele não
queria morrer sem pegar uma...
De
repente, ele se levanta e recomeça o périplo no mesmo sentido, agora para
recolher o conteúdo das canequinhas, que já devem estar cheias. Despeja no
balde que se vai enchendo e ficando pesado. Esta parte do trabalho demora de
quatro a cinco horas. Finda a tarefa na floresta, inicia a marcha de volta ao
barraco, andando muito cuidado para não entornar o vasilhame cheio de líquido
branco e gosmento. No barraco ainda trabalhará mais duas ou três horas, na
defumação do material.
A
volta é festejada por todos; os filhos correm ao seu encontro, a mulher o saúda
e lhe oferece mais café ralo e requentado. Relatam as labutas do dia: plantaram
milho, capinaram ao redor do barraco, carpiram a macaxeira, colheram feijão,
mataram um galo, velho e doente, para a canja das crianças. Ele se dirige ao
“fumador”, pequeno alojamento onde acende o fogo, finca o “bastão” numa
forquilha e vai girando-o sobre o próprio eixo, derramando nele, devagar, o
precioso látex do balde, látex que se coagula na fumaça, que vai direto à sua
cara e lhe intoxica os pulmões... Aos poucos se vai formando a “péla”, bola
oval de finas camadas – peles – que chegará a pesar sessenta quilos e que de
branca passa a marrom-escura, quase preta. Tem cheiro forte e enjoativo de
borracha queimada. De quatro em quatro meses, mais ou menos, o patrão lhe
enviará o aviador, aquele que avia as mercadorias: sal, óleo, açúcar, sabão em
pedra, velas, munição, panelas, vestidos, remédios para maleita, xarope para
tosse e até brinquedos. Ele permuta as “pélas” por mercadoria. É a forma de
controle de seu trabalho. O aviador avalia, por critérios subjetivos e
peculiares, quanto mercadoria corresponde a produção. Antes, queixa-se de que a
borracha caiu de preço no mercado, enquanto os produtos que traz subiram...
Tudo trazido de longe, pela tropa, em lombos de burros cansados. Tantas “pélas”
correspondiam a quantas mercadorias, ao seu talante!...
O
aviador em geral pernoita no barraco, escolhendo uma das filhas ou um dos
filhos do seringueiro, ou mesmo sua mulher, que levará para a rede. Há o
conformismo, que faz parte do preço. A dependência é absoluta, total. Símbolo
do patrão, preposto do seringalista, o aviador é recebido com respeito e temor,
naquelas paragens perdidas; é o homem importante e poderoso vindo da
civilização, que sabe das coisas, que manda e desmanda... Seu poder, naquele
instante, é absoluto. Daí a adulação, o servilismo, a rendição. Ou paga o preço
ou não leva. De posse das “pélas”, o aviador as entrega ao seringalista, que as
acumula na cidade, em seu imenso depósito de alvenaria, coberto de zinco. Em
seguida, são embarcadas para as máquinas de benefício, em Manaus ou Belém.
Tudo, após reivindicar e obter do Governo aumento de preço da borracha, do qual
só ele, seringalista, se locupletará... O herói, o seringueiro, permanece à
margem, ignorado, abandonado, no isolamento absoluto, prisioneiro que é da
maravilhosa mas desumana floresta virgem. Enquanto isto, o
seringalista-proprietário reside e investe seus milhões no Rio, em Manaus ou
Belém, quando não em Paris, como ocorria no primeiro quarto do século, época em
que a borracha valia ouro. Não havia, também, a borracha sintética.
Severino
estava, há muito tempo, de marcação com aquela onça-pintada. Sentia sua proximidade,
mesmo que muitas vezes não a avistasse. Em mais de uma ocasião cruzara com ela;
era das grandes, ele fugira, embora tentasse abatê-la. Duas vezes o tiro
falhou; três outras teve a impressão de acertar; supusera-a pelo menos ferida.
Cada vez que surgia, porém, ela demonstrava estar intacta, intocada, e feroz!
Ele, sempre prevenido, conhecia o local em que ela costumava aparecer, trazia a
espingarda já engatilhada. A fera era manhosa, matreira. Não se aproximava mais
do que lhe fosse possível para escapar incólume. Ambos se pressentiam, ambos se
temiam, ambos se respeitavam. Ambos queriam surpreender um ao outro, ambos
queriam matar, o quanto antes. Uma, a fera, para comer. O outro, o homem, para
se ver livre dela e tirar-lhe a pele, valiosa, para negócio.
Numa
tarde, Severino se antecipara: trepara numa árvore alta e conhecida e
permanecera absolutamente imóvel por mais de duas horas, no aguardo da pintada.
Subitamente, ela veio chegando, macia e ondulante, luzidia, como se nada
quisesse, como se não o tivesse visto... Ele armou a carabina, apoiou-a num
galho e ficou dormindo na mira, esperando que chegasse ao alcance do tiro.
Desta vez, não erraria. Poucos metros antes do alvo, ela estacou, cheirou o ar
e olhou diretamente na direção dele, nos olhos dele, com a pata dianteira ainda
levantada. Ficaram a se olhar, longos e inacabáveis minutos, um com medo do
outro. Parecia namora da morte... Ele, apontando, dedo no gatilho, olho na
mira, imóvel; ela, mirando-o com ódio, presas arreganhadas, segura pela distância.
Os fatos se deram no mesmo instante: puxou o gatilho ,o tiro soou; ela saltou
de lado e fugiu, desaparecendo na vegetação cerrada. Severino desceu da árvore.
Havia perdido mais aquele tiro, mas confiava que ainda a mataria. Era questão
de tempo. Reencetou o trajeto, em demanda das “madeiras” para o corte. Não mais
a avistou naquele dia, nem nos próximos. A onça sumira.
Tempos
depois, novo encontro. Desta vez, fatal. Ele cansado, mal dormira. Tivera
violenta crise de maleita, febre altíssima, os comprimidos haviam terminado;
debatera-se na rede a noite toda, noite de apenas quatro ou cinco horas. Viera
trabalhar, pois estava com uma produção mínima e o aviador passaria em breve;
urgia aumentar o número de “pélas”. Mesmo exausto, mantinha-se atento e
vigilante; a pintada poderia aparecer. Tinha certeza de que ela não desistiria
enquanto não o comesse... Ele também não desistiria; pegá-la-ia antes.
Estava
acostumado a andar dormindo, embora acordando ao menor ruído, fosse de canto de
passarinho, de assobio de macaquinhos, ou de cobra sibilante. A onça era
absolutamente silenciosa. Quando ele acordou de todo, alertado pelo perigo
próximo, ou antes pelo subconsciente, viu-a na árvore baixa, à esquerda, pronta
para o bote. Pareceu-lhe entrever um sorriso de vitória em seu olhar vermelho
de ódio; ela o surpreendera...
Estacando
de pronto, puxou a espingarda em gesto reflexo e, mesmo sem apontar, atirou,
quase à queima-roupa, pois ela já saltara, rasgando seu peito com a patada.
Homem e onça caíram; ela por cima, pesadíssima, a esmagá-lo, mordendo-o e
arranhando-o. Ele ainda conseguira tirar da cintura a faca pontuda e cravá-la
na garganta da fera, cortando a jugular. Foi seu último gesto. O látex do balde
se espalhou pelo chão, tinto de sangue. Ouviu-se terrível grito de dor, que se
fundiu com o tremendo urro da fera agonizante. Os sons ressoaram na floresta –
deveriam ecoar por todo o Brasil, como grito de alarme e brado de alerta –,
espantando pequenos animais e chegando ao pobre barraco, longínquo. Barraco ao
qual Severino, o herói, não mais voltou...
Dias
mais tarde, passou o aviador. Sabendo da tragédia, arrebanhou a produção
existente, como pagamento adiantado, levando de volta à cidade a família de
Severino. O barraco teria que ser desocupado; outro homem viria nele morar,
continuando a faina. Apanhou Raimunda, Maria e os filhos, após pernoite,
conduzindo-os até a cidade grande, em cujas ruas eles passaram a viver,
mergulhados na indigência. Os homens a esmolarem, as mulheres a se
prostituírem...
MACHADO, Altino. A figura refletida: contos. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1986. p.189-199