Crônicas Indigenistas
Ainda na colocação
Currimboque: Promessa feita, dádiva recebida e sacrifício pago
Num daqueles ‘dias
de branco’ - como costumavam dizer os
seringueiros adultos -, sai para cortar minha estrada de seringa, São José ‘de
cima’ (lembrem-se disso: toda estrada tem seu próprio nome) e no decorrer do
trabalho, naquele dia, adquiri uma febre fortíssima.
Ocorre que eu havia
passado por baixo de um pé de Palmari e não vi a árvore, e por isso, ganhei
aquela famigerada febre. Para aumentar minha má sorte naquele dia caiu uma
forte chuva, e eu ainda estava longe de casa. Tive que sobreviver toda aquela
chuvarada com a febre que me atacava de forma quase intolerável. Cheguei na
casa de meus pais usando uma ‘muleta’
improvisada, feita com pau de caneleiro, e sem querer deixei minha mãe
muito assustada, especialmente, ao me ver andando apoiado nessa muleta.
Passado mais de um
mês, minha mãe, senhora Carmina Caetano Barbosa, que era uma pessoa muito
religiosa e sempre bem motivada pela fé cristã, diante da situação que ela me
via ali, aleijado da perna direita, devido ao choque térmico ocasionado pela
febre e a chuvarada que tomei na estrada de seringa, caiu de joelhos ao chão e
pediu a Santa Maria da Liberdade que intercedesse junto ao Criador pela cura da
minha perna direita, que, ao que parece, já estava ‘encolhida’ há mais de 40
dias.
Santa Maria da
Liberdade
Ela prometeu para a
santa que, se a minha perna voltasse a se movimentar como era antes, ela me
mandaria a pé da colocação Currimboque
até o túmulo dessa jovem santificada para banhar minha perna na terra da
sepultura dessa ‘santa’, que era uma moça já morta há muitos anos, e que havia
sido ‘santificada’ pela população dos seringais. Assim, quarenta dias depois,
comecei a movimentar minha perna e todos os outros seringueiros que me viam não
se cansavam de dizer: Olhe o menino! Ficou bom da perna dona Carmina, a senhora
foi atendida.
O verão chegou, e
uma caravana de romeiros vinda de toda bacia do Rio Muru se deslocava para o
local onde se encontrava a sepultura da santa milagrosa. Minha mãe que, já
havia ouvido falar muito bem da referida moça que se santificou, não perdeu tempo:
Logo preparou uma farofa daquelas muito deliciosa e duradoura, colocou-a em um
saco encauchado com látex de seringueira e me ordenou acompanhar os romeiros
para pagar a sua promessa.
Não discuti e nem
pensei duas vezes: Coloquei a rede num saco. O saco numa estopa. Minha faquinha
na bainha. A bainha no cinturão e fui caminhando por vinte e dois dias pelos
varadouros da floresta, para cumprir a promessa feita por minha mãe,
banhando-me na terra solta da sepultura da Santa. - Durante a caminhada junto à
caravana de romeiros, compartilhei com eles momentos bons e momentos de sérias
dificuldades, apresentadas ao longo dos varadouros, às vezes limpos ou, na
maioria dos casos, com mata ‘serrada’.
Como a natureza é
rica, e ao mesmo tempo cheia de surpresas. Passamos por muitas colocações das
bacias dos Rios Muru, Rio Envira e Rio Paraná do Ouro. Dessas recordo de
algumas como: Morada Nova, Cius, Vai quem quer, Sobral, Mato Grosso, Tianguá,
Chato, Alto do bode, Alto Bonito e Paraná do Ouro. - Recordo-me dessas localidades
pela importância que cada local desses teve para nossa viagem, pois, eram
locais onde buscávamos informações sobre os varadouros, recebíamos refeição
caseira e gratuita, tomávamos água de fontes e igarapés tiradas de potes de
cerâmica. Eram locais onde descansávamos à noite, para, no dia seguinte, darmos
continuidade de nossa viagem.
Mas, teve uma vez
que andamos um dia inteiro na floresta, sem água para beber, pois, todos os
poucos e pequenos igarapés estavam secos, mas, ainda assim, todos nós estávamos
determinados a continuar nossa caminhada passando muitas vezes por dentro de
capoeiras de antigas malocas, antes pertencentes a grupos indígenas já
exterminados pelas “correrias”, praticadas por seringalistas como o Pedro Biló
na bacia do alto rio Envira, Paraná do Ouro, rio Humaitá, rio Muru, rio
Tarauacá, rio Jordão, rio Iboiaçu, rio Tejo, Paraná do Machadinho e rio Breu.
Depois deste dia de
sede, esforço altamente controlado, fomos pernoitar na casa de um dos filhos de
Pedro Biló, de nome Francisco Biló. Este senhor era um dos filhos que se
juntava a seu pai, como um dos grandes matadores de índios.
Na moradia de
Francisco Biló tinha água boa e abundante. Os donos da casa não estavam
presentes na noite que chegamos nesta colocação mas, a decisão unânime de nossa
caravana foi acampar ali naquela noite. Eu, deitado na rede ficava pensando nas
aflições vividas pelos grupos indígenas quando eram atacados pela “correria” de
Pedro Biló, e nós estávamos exatamente na casa do filho dele. De tanto pensar
nisso, o sono ainda estava distante, embora estivesse enfadado de caminhar.
Durante a noite, a
sede do dia anterior começou a aparecer. Foi quando me levantei para ir até uma
talha grande de cerâmica antiga, que ficava sobre um cepo localizado no
cantinho da parede de paxiúba. Para minha tristeza terminei encostando a
barriga na talha, que por sua vez tombou e esfarelou-se no terreiro da casa:
Meu Deus! E agora? - Eu, e os outros integrantes da caravana de romeiros
ficamos muito preocupados com o acontecido, e todos se perguntavam: E agora?
Quando o dono da casa chegar o que vai acontecer?
Antes da meia noite
a família da casa chegou, e eu, tomando à frente de todos, me levantei da rede
e expliquei para o dono da casa o que havia acontecido com a talha de cerâmica
dele. Ele entendeu e, graças a Deus, nos perdoou sem promover qualquer alarde.
Depois disso fomos dormir.
Eu, deitado na
minha rede, ficava com minha cabecinha, de apenas onze anos, dando voltas e
voltas no mundo da imaginação e das lembranças. Recordações das grandes
histórias que me eram contadas pelo o seringueiro Rufino Coelho, vulgo Muru, um
senhor que chegou à casa dos meus pais quando eu ia fazer meu primeiro
aniversário e terminou ficando junto com nossa família para o resto da vida
dele, vivendo muitos anos junto a nós.
Muru dizia que até
chegou a ser recrutado para participar de turmas de correrias, onde viu muitas
desgraças praticadas contra os povos indígenas brabos (isolados), naquela
época.
Entre estas
histórias, Muru me contava sobre as “correrias” praticadas por um homem, se não
me engano este era procedente do Maranhão, de nome Maximiano da Fonseca, que, e
seu nefasto negócio, contava com as participações de chefes de correrias vindo
do Peru, conhecidos pelos nomes de Dom Elias, Dom Abudy e Dom Eloy.
Segundo a história
do Muru, Maximiano da Fonseca era um homem cheio de mistérios e poderes:
Chegava numa casa de família com sessenta homens em sua turma, pedia água
recebia e dava os sessenta copos d’água para seus companheiros, mas, o único
que os donos da casa viam era ele. Noutro ‘causo’ diziam que ele entrava
sozinho numa maloca Indígena no meio da noite, cortava as cordas dos arcos e as
molas de rifles em poder dos índios. Fazia tudo sem ser visto pelos índios,
para, em seguida, com seus companheiros atacar essas malocas às cinco da manhã.
Nestes ataques, as índias novas eram pegas e amarradas para trazer e entregar
aos patrões nos barracões. Tais presas eram depois vendidas pelos patrões aos
seringueiros e certas delas eram presenteadas a outros patrões. Bom e, assim
passei a noite revivendo tudo aquilo que me era contado antes pelos
seringueiros.
Finalmente o sono
me venceu.
No dia seguinte a
farofa de todos que integravam a caravana já estava no fim e, exatamente no
entardecer deste dia, chegamos à sede do Seringal Liberdade, na margem esquerda
do Rio Envira, de nome indígena Henê-Bariá ou Pixiã, na língua indígena Huni
kuin. É lá onde se localiza o túmulo da Santa Maria da Liberdade e naquela
noite de nossa chegada, logo à tardinha, cumpri minha missão de ir até o túmulo
e me banhar com a terra da sepultura da Santa, com a qual a minha mãe tinha
feito a promessa. Em seguida, me banhei nas águas do Henê-Bariá e, depois desse
banho, veio o chamado para a nossa caravana, para a refeição da noite.
No jantar, eu comi
carne de carneiro pela primeira vez. Até então, eu achava que aquele animal não
era para agente comer e não me sentia convidado pelo o apetite mas, finalmente,
comi aquela carne na janta, até porque sentia necessidade de repor minhas
energias dispensadas durante os primeiros onze dias de caminhada pela floresta.
Outro motivo, além da fome, eu não podia fazer feio na casa alheia como, por
exemplo, pedir outro tipo de comida que não fosse o prato oferecido pela
família, que nos recebeu e nos abrigou para o jantar da família.
Depois do jantar começaram
muitas conversas sobre essa santa, que era uma linda jovem nascida e crescida
no seringal, onde foi assassinada no local onde fica sua capela. Contaram que o
irmão de Maria tinha um amigo e queria que a jovem namorasse o referido rapaz,
e que, depois de um tempo viesse casar-se. Só que Maria não tinha o mesmo
propósito, e por isso, não aceitou a indicação feita por seu irmão, que ao se
sentir contrariado diante de seu amigo, pegou uma arma e atirou na irmã, vinda
a mesma a falecer.
Depois da morte da
jovem, logo santificada, o seringal Liberdade passou a ser um local de muito
destaque, tão importante que, até hoje todos os anos é muito frequentado por
diversos romeiros tanto do Acre quanto de fora do Brasil, que lá vão pagar suas
promessas naquele local, e tem outros que vão ali para conhecer a história
envolvendo aquele episódio.
Após pagar minha
promessa voltei caminhando mais onze dias, junto com a mesma caravana que minha
mãe havia me entregado. Chegando em casa minha querida mãe nos recebeu com uma
mesa sortida de muitas comidas, todas produzidas com a devida qualidade da arte
culinária de minha mãe e minhas irmãs.
Dou um salto na
minha história, rompendo com a narrativa...
Talvez por conta
desta importância, que, muitos anos depois, quando ocorreram os estudos de
identificação e delimitação das terras indígenas Kulina do Rio Envira e Kulina
do Igarapé do Pau, a faixa de terra que compreende a área do seringal Liberdade
ficou fora dos limites das terras indígenas, respeitando o credo católico, o
recanto sagrado e o livre arbítrio dos romeiros católicos que se apegam a jovem
assassinada e santificada. E, revoltados com o fato desta faixa de terra ter
ficado fora dos limites dos territoriais indígena, alguns Kulina (Madija),
chegaram a furar os olhos da imagem de massa da santa colocada na capela pela
Igreja Católica em homenagem a santa santificada. Isto foi feito quando os
Padres levaram o corpo da jovem Santa para Roma.
Em 2010, enquanto
realizava levantamento junto aos povos indígenas do rio Envira, para suprir o
Plano de Mitigação e Compensação nas terras indígenas da área de influência
direta e indireta de abrangência dose impactos da BR-364, parei nesse seringal
e aproveitei para renovar meus votos junto a santa, que morreu pela liberdade
de escolha. Nessa visita eu estava acompanhado eu Gessé-la, Maiane, Jucelino,
Francisco Apurinã e Vanderlei o motorista de nosso barco fretado na cidade de
Feijó no Acre.
Nessa viagem eu
pude registrar outra versão da história, sobre a morte da jovem, contada pelo
nosso barqueiro Vanderlei:
“Eu era criança
quando ouvia a minha mãe contar que um marreteiro (comerciante itinerante) de
nome desconhecido parou no seringal atualmente denominado de Santa Maria da
Liberdade, com objetivo de apresentar e comercializar seus produtos. Naquela
oportunidade o marreteiro foi convidado pelo dono da casa, pai da jovem para
almoçar ali. Como de costume, este comerciante estava de posse de um revólver
de calibre 38, o qual deixou sobre a mesa da sala. Nesse recinto estava a jovem
de 16 anos, e a moça, sem noção do que poderia ocorrer, pegou a arma que estava
carregada e brincando apontou para o rapaz, apertando o gatilho por várias
vezes, sem que a arma realizasse qualquer disparo, Todavia, o jovem para quem
Maria apontava a arma, era aquele que seu irmão queria que fosse seu namorado.
Neste momento, o irmão da jovem pegou a mesma arma e falou: – vou mostrar como
se atira. - E acabou que dessa vez a arma disparou contra a adolescente,
ocasionando o falecimento dela. Antes da sua morte, enquanto agonizava, pediu
para não fazerem nada contra o rapaz, pois ele não havia feito aquilo com o
propósito de atirar nela, era tudo brincadeira.
Após alguns dias de
seu enterro, o local onde ela foi sepultada começou a inspirar cheiro de
flores, e todos que por ali passavam percebiam que se tratava de um túmulo
diferente. Aquela notícia chegou até ao conhecimento dos padres do município de
Feijó, que vieram para fazer uma inspeção e se surpreenderam ao constatar que a
jovem falecida, havia se santificado.”
Deixo aqui essa
história da jovem santificada, que me ajudou a fazer minha perna direita voltar
a funcionar. O resto da história continuará no texto seguinte, ainda na
colocação Currimboque.
Antônio Batista de
Macêdo, o Txai Macêdo, é sertanista da FUNAI e uma figura importantíssima para
o indigenismo e para os povos indígenas no Acre. Juntamente figuras como com
Txai Terri, Dedê Maia foi (e continua sendo) uma memória viva do que foram os
anos de luta, desafios, vitórias, alegrias e tristezas em prol das questões
indígenas nesse rincão da Amazônia. Vivas a esse grande txai, cuja história
merece ser contada e recontada por quem
admira e conhece o seu trabalho. (Jairo Lima)
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