CRÔNICAS INDIGENISTAS
Da colocação
Currimboque a cidade de Tarauacá
Diante a situação
de saúde da minha mãe e por necessidade de que seus filhos frequentassem
escolas, meu pai decidiu voltar da colocação Currimboque para a cidade de
Tarauacá. Nessa época eu estava com doze anos de idade...
Nosso retorno foi
muito trabalhoso, pois, assim como foi quando nos mudamos para a colocação,
tivemos que levar todas nossas ‘tralhas’ nas canoas igarapé abaixo a até
desaguar no Rio Muru outra vez. E assim descemos o igarapé São José, matando
paca para fazer nosso rancho da viagem.
Pernoitamos a
última noite de descida na colocação de seu José de Castro. Quando chegamos
nessa colocação recebemos a notícia de uma festa que aconteceria naquela noite,
na casa de seu Agenor Moura, localizada na margem do Rio Muru e logo abaixo da
foz do Igarapé São José. Eu e meus irmãos ainda nos animamos para chegar a
festa naquela noite, mas meu pai e minha mãe não permitiram, por isso nos
acalmamos e ficamos conformados com a decisão. No dia seguinte saímos na
confluência do rio Muru e dali era só descer até a cidade. Mal havíamos
começado a descida, e, ao cruzar com outros viajantes, logo ficamos sabendo dos
boatos da festa.
Cito como exemplo o
que aconteceu entre os seringueiros Valdir Machado e Francisco Felizardo...
Valdir namorava uma
moça de nome Maria Moura que, por sinal, era a mais bonita do seringal Colombo.
Valdir já era criminoso: Havia matado Nicodemos, um grande valentão ‘de má
conduta’, segundo os mais velhos me contavam. - Do outro lado da história tinha
o Francisco Felizardo, que também já havia matado outro seringueiro. Ambos eram apaixonados por Maria Moura e de
forma alguma, Francisco Felizardo aceitava o namoro de Valdir Machado com sua
‘pretendida’.
Ambos se toparam na
noite da festa, na casa de seu Agenor Moura, que era o genitor de Maria Moura.
Mal se encontraram, os dois pretendentes decidiram travar travar um duelo
sangrento: brigaram muito e, em dado
momento, utilizando as temidas ‘facas peixeira de 12 polegadas’ furaram e se
cortaram mutuamente, até morrerem caindo um para cada lado.
Maria Moura, dona
de muita beleza, continuou sua vida, vindo, tempo depois, a se casar com um
novo e sortudo homem da região.
A descida continuou
até voltarmos para a cidade, onde nos hospedamos em uma casa alugada. Minha mãe
foi logo cuidar de fazer o tratamento com o Dr Tomé, alcançando, ao término
desse, sucesso em recuperar sua saúde. Quanto a mim, fui estudar no jardim da
infância do Grupo Escolar João Ribeiro.
Vejam bem: naquele
tempo não se diziam muitos dos termos e palavras que se ouve hoje em dia. Muito
menos nos seringais.
Assim, quando
entrei na escola começou o jogo das novas palavras e de outros acontecimentos
muitas vezes inevitáveis…
Um belo dia, logo
de manhã, no decorrer dos primeiros dias de aula, comecei a ouvir coisas totalmente
desconhecidas na sala de aula - e confesso que eu não entendia bulhufas de
nada. Era algo como um ronco muito forte que entrou em funcionamento na
proximidade da escola e, quando aquilo aconteceu, me assustei e quis saber das
outras crianças do que se tratava, e logo me responderam que era um caminhão.
Mas, eu ainda não sabia o que era um caminhão e nem o que era uma garagem.
Acontece que nessa manhã um caminhão, que naquele dia estava sem o
escapamento, foi posto em funcionamento
dentro da garagem que se localizava logo atrás da minha escola.
Claro que insisti
perguntando aos coleguinhas o que era aquilo. Eles foram compreensivos e
objetivos, me explicando sobre o caminhão “que ia sair da garagem e que ia
devorar toda cidade”!
Assustado fiquei:
Caminhão? Garagem? - O complemento “devorar toda cidade” invadiu a minha
cabeça, e eu fiquei preocupado com minha mãe, e minhas irmãs, que podiam ser
todos devorados pelo bicho que eu ainda não conhecia. Esse bendito caminhão,
foi o terror que invadiu os meus pensamentos naquele dia.
O que fiz?
Respondo: Abandonei a sala de aula e de forma disparada sai na carreira para
alcançar minha família antes de serem devorados por aquele bicho desconhecido.
A casa onde minha
família morava ficava a uns dois quilômetros da sede da escola. Corri, corri e
chegou um momento que minha aflição era tanta, que me urinei por completo,
vindo a me agarrar no tronco de uma cajarana, localizada a beira da rua
Constância de Menezes, pela qual eu ia correndo.
Chegando em casa,
muito apavorado, peguei minha mãe pela beira do vestido e minhas irmãs e sai
arrastando casa afora, puxando um ‘um cordão de mulheres’. Meu objetivo era atravessar
o Rio Tarauacá na confluência com o Rio Muru, me embrenhar floresta à dentro,
até chegar onde se encontrava meu pai, que nesse dia estava numa colocação na
margem do rio, em frente a aldeia Kaxinawá da foz do igarapé do Caucho. Eu procurava meu pai para com ele somar
qualquer esforço que fosse necessário contra o bicho-caminhão, que estava
saindo da garagem, e segundo aqueles meninos da escola, ia devorar toda cidade.
Durante minha
aflição eu havia gritado muito com minha família, para que corressem junto
comigo, mas eles não conseguiam entender nada do que realmente estava
acontecendo. Até que de súbito apareceram os vizinhos de minha mãe e, ao
entenderem o que se passava e perceberem o que estava acontecendo na minha
cabeça, no meu estado nervoso, me convenceram a sossegar, me explicando o que
era um caminhão, desmentindo aquilo que os meninos da escola, os meus colegas,
ainda desconhecidos, haviam me falado.
A cidade era para
nós um abismo, e a floresta era a nossa verdadeira casa. O que mais eu ficaria
fazendo ali? Procurei convencer meu pai a me levar pra floresta de volta pra
casa onde nasci e fui criado até irmos pra cidade. Foi quando ele decidiu me
levar dali e voltei para morar com meu pai, junto aos Huni Kuin do Caucho.
E novamente comecei
uma nova diáspora: da cidade de Tarauacá a aldeia Kaxinawá do igarapé do Caucho...
Tudo ali andava
muito bem entre nós e os indígenas, todos estes vizinhos do meu pai. Eu e ele
morávamos sozinhos e trabalhávamos para manter a minha mãe morando lá na cidade
com minhas irmãs, que ainda eram menores nessa época. Meu irmão mais velho,
Raimundo Batista de Macêdo já havia se casado e morava relativamente perto de
mim e meu pai. E nesta convivência cheguei aos treze anos de idade.
Neste local
trabalhávamos com criação de animais e agricultura, vivendo praticamente junto
com o povo indígena Kaxinawá da aldeia Foz do Igarapé do Caucho, no Rio Muru.
Ali vivi até meus quinze anos de idade, e sempre estudando com a professora
Diva, na escola que ficava na colocação 18 Praias.
Numa noite de festa
na aldeia Kaxinawá da Boca do Igarapé do Caucho, na casa de Chico Luiz, filho
do velho Tuxaua Luiz Francisco. Essas festas eram animadas pelos bons
sanfoneiros Isídio e Simão, dois irmãos nordestinos que moravam na cidade de Tarauacá, e que quando contratados
pelos indígenas iam tocar na aldeia. Mas, nesse dia, o medo tomou conta de
todos os presentes, pois, o policial Pedro Leonel e seu irmão Pedro Dá, os
quais se diziam donos do Seringal Tamandaré, que era totalmente ocupado pelos
Kaxinawá, invadiram a aldeia, armados e tomaram tudo que os índios tinham em
suas casas: Espingardas, machados, terçados, enxadas dentre outros pertences
dos índios.
Meu irmão mais
velho, Raimundo Batista de Macêdo, aquele que havia feito o patrão tirar sua
conta corrente numa barra de sabão*, e João Herculano, enfrentaram os patrões
policiais e fizeram eles devolverem tudo que estavam levando dos índios,
pois, aquele ato praticado pelo policial
era imoral e meu irmão e seu amigo não aceitaram isso. A coragem desse meu
irmão era grande e o seu senso de humanidade era bem maior, no entanto, sua
atitude naquela situação foi muito perigosa para todos que se encontrava
naquela Aldeia.
Mas esse
enfrentamento começou com minha intervenção, pois, fiquei tremendamente
preocupado e, mesmo ainda criança, não aguentava ver aquela injustiça contra os
pobres índios, nossos amigos. Por isso, quando vi o policial fazendo aquela
arbitrariedade contra eles, não me contive e procurei meu irmão, que também
estava na festa. Mostrei e ele o que estava acontecendo e, sem medir o esforço,
foi pra cima do policial, que naquele instante, apontou sua arma para ele.
Nesse momento, meu irmão encostou seu punhal no peito do policial e falou:
“Aperta o gatilho, porque vou derramar tuas tripas, ou então, entregue os
pertences dos índios”. - Eu vi que uma arma estava apontada para o meu irmão e
fui chamar o João Herculano para ajudar. João tirou o revólver da mão do
policial com um pequeno golpe com o pé na mão do arrogante.
Eu fui crescendo
naquela aldeia, junto com seus ocupantes, conhecendo seus costumes e tradições,
que era diferente, mas, fui aprendendo e, também ensinando os txais conforme
seu próprio modo de vida naquele lugar.
Anos depois, após
concluir o segundo ano primário, fui morar novamente na cidade de Tarauacá,
para estudar com a professora Ritinha Catão, no Grupo Escolar João Ribeiro,
escola essa que até os dias atuais está localizada na Praça Valério Caldas de
Magalhães no centro da cidade. Foi nessa escola onde cursei até a 4ª série
primária.
No fundo dessa
praça funcionava o bar do seu Julebaldo que, também uma sorveteria. Eu e meu
irmão Luiz Gonzaga Caetano Barbosa íamos para a escola, mas, nenhum de nós
tinha dinheiro no bolso para comprar um picolé. Os filhos dos moradores mais
antigos ali da cidade compravam picolé sorvete, e a gente ficava olhando aquilo
com água na boca, pensando como seria gostoso poder também conseguir uns.
Meu irmão um pouco
mais encapetado do que eu, levava para a escola uma sonrisal no bolso do
uniforme, e nas primeiras vezes que ele fez isso eu não sabia das suas atitudes, e olha que ele era um ano mais novo de que eu. Só
que depois descobri, e pude perceber qual seu engenhoso plano. Pois bem…
O caso é que como
ele (Gonzaga) não podia comprar um picolé, esperava que os filhos das famílias
mais ricas da cidade comprassem, para que ele pudesse tomar o picolé das mãos
dos garotos ricos.
Quando ele pegava o
picolé saia correndo e a meninada corria atrás. Ele ai, quebrava o sonrisal e
colocava um pedacinho da pílula na boca, e caia no chão espumando pelos cantos
da boca, tempo suficiente, para que eu chegasse e afastasse a meninada de cima dele,
dando petelecos, tendo como pretexto que ele estava supostamente passando mal.
Era perigoso, mas que foram engraçadas aquelas terríveis proezas aprontadas
pelo Gonzaga, a isso foram. Os meninos que perderam os picolés quando aquilo
acontecia, ficavam muito assustados temendo terem causado um por terem
derribado o Gonzaga.
Da Escola na cidade
aos seringais do Rio Iboiaçu no alto rio Muru.
Eu ainda contava só
14 anos quando meu pai juntamente com o velho Chagas Kaxinawa, a quem eu
chamava de companheiro, decidiram subir o Rio Muru praticamente todo, e em
seguida, subir o Rio Iboiaçu até o seringal São João. Meu pai me levou para
esta viagem com ele. Nossa canoa tripulada somente por mim, meu pai e o Chagas
Kaxinawá, era uma canoa feita de tábuas, com capacidade para mil e quinhentos
quilos de carga.
Nossa viagem era
tangida a remo, faia, sisga e varejão. Passamos 11 dias subindo o Rio Muru e 04
dias subindo o Rio Iboiaçu, 15 dias varejando na popa daquela canoa.
Desenrolamos muitas
curvas, estirões e cachoeiras até chegar ao seringal denominado São João. Nesta
viagem, ainda ajudei meu pai e o companheiro Chagas a montar uma armadilha para
pegar um Gato Maracajá; e pegamos aquele Gato muito bravo.
Na verdade,
tratava-se de uma caçada, que eu terminei também transformando em uma pescaria.
Tanto tinha muita caça na floresta deste lugar quanto tinha muito peixe no Rio
Iboiaçu.Ali peguei o primeiro Jundiá manteiga, o Jundiá amarelo, também pesquei
Jau ou Jundiá Açu, Piroaca, surubim, Caparari, Pirapitinga, Bacu e Bacurana.
No Rio Iboiaçu, meu
pai localizou em uma cachoeira o casco de uma tartaruga gigante quase do
tamanho de uma canoa. O casco estava quebrado, e havia sido por conta da
atividade madeireira antes realizada ao longo daquele Rio. Uma grande tora de
madeira que descia no rio bateu-se no casco da antiga tartaruga quebrando o
casco da mesma, que ficou ali mesmo, e deve está lá até hoje.
A viagem não logrou
muito êxito pensando do ponto de vista dos caçadores adultos, mas, para mim,
apesar do cansaço foi quando peguei os maiores peixes que conheci até ali.
Passamos ali duas semanas na floresta do Iboiaçu.
Matamos quase nada
de caça, deu água no Rio, e então meu pai decidiu junto com o companheiro
Chagas ir baixando, e fomos embora pra casa. Eu já estava com saudades da minha
mãe, apesar de estar gostando de estar naquela aventura. Meu pai sábio o quanto
era é que não perdia aquela oportunidade de aproveitar as águas grandes dos
rios, para que pudéssemos chegar para nossa casa rápido, e ao sabor da
correnteza das águas. E assim foi feito.
...No Acre,
especialmente, na cidade de Tarauacá, além de seringueiro fui também
agricultor, estivador, marinheiro prático trabalhando nas embarcações
marítimas, vivi um tempo como pescador, e depois de ser basicamente forçado a
servir ao Exército brasileiro, fui operador de máquinas pesadas e mecânico de
autos-motores.
Antônio Batista de Macêdo, o Txai Macêdo, é sertanista da FUNAI e uma figura importantíssima para o indigenismo e para os povos indígenas no Acre. Juntamente figuras como com Txai Terri, Dedê Maia foi (e continua sendo) uma memória viva do que foram os anos de luta, desafios, vitórias, alegrias e tristezas em prol das questões indígenas nesse rincão da Amazônia. Vivas a esse grande txai, cuja história merece ser contada e recontada por quem admira e conhece o seu trabalho. (Jairo Lima)
Antônio Batista de Macêdo, o Txai Macêdo, é sertanista da FUNAI e uma figura importantíssima para o indigenismo e para os povos indígenas no Acre. Juntamente figuras como com Txai Terri, Dedê Maia foi (e continua sendo) uma memória viva do que foram os anos de luta, desafios, vitórias, alegrias e tristezas em prol das questões indígenas nesse rincão da Amazônia. Vivas a esse grande txai, cuja história merece ser contada e recontada por quem admira e conhece o seu trabalho. (Jairo Lima)
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