quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022

DO RIO DE JANEIRO AO ACRE 1905-1906

Muitos eram os passageiros, dominando em numero os de 2ª classe, todos seringueiros. O termo “seringueiro” serve não só para designar o homem que, affrontando todos os perigos, vae dar o golpe na arvore de cujo leite se faz a borracha, como também para qualificar o proprietário de seringal.

Nos “gaiolas” só existem duas classes. Viajar em primeira é um sacrifício; em segunda, que será?

Entre o gado que é levado para a alimentação exclusiva dos passageiros de 1ª classe e officialidade de bordo, os que viajam em segunda, á falta de outro logar, armam suas redes e ahi se aboletam até o fim da jornada. Essa espécie de cama é tão usada na Amazônia que os passageiros de 1ª classe, tendo camarotes com algum conforto, preferem dormir em redes, de sorte que será caso de espantar ver-se um “gaiola” em viagem para o Alto Amazonas sem essas originaes e agradáveis camas.

A base da alimentação a bordo é a carne velha, como chamam os paraenses ao xarque, mais conhecido no Rio como carne secca e em vários Estados do norte como carne do Ceará e jabá. Todos os sabbados, á noite, no “Rio Purús” era abatido um boi, fosse qual fosse o número de passageiros. Das vísceras, a que especial cuidado merecia era o bofe, chamado de “bobó” pelos paraenses.

O cosinheiro de bordo era de uma fertilidade assombrosa no preparo dos pratos. Assim é que vi: “carne velha á japoneza” e “bobó á carioca”. No Rio nunca conheci tal prato e creio que no Japão se desconhece a carne secca.

Sobremesa, depois de Manáos, é um mytho; quem quizer uma lata de fructas em calda ou um pouco de vinho, pagará á parte. As refeições constam de café, ás 7 horas da manhã, com bolachas ou biscoitos ordinários e manteiga (só vi pão á mesa, depois que sahimos de Manáos, em Antimary e Empreza, e que pão!...); ás 10 horas, almoço; ás 4 horas da tarde, jantar, e... mais nada. Essas refeições são servidas á portugueza: cada um tira a quantidade que quer. Entretanto, os criados de bordo, de accordo com o armador e conhecimento de toda a officialidade do navio, teem sempre para vender aos passageiros chá, leite condensado, chocolate, café, biscoitos finos, doces, vinho, cerveja e até aguardente. Os preços por que esses domésticos vendem taes gêneros espantam. Por uma garrafa de vinho Rocha Leão, do mais ordinário que há no mercado, pedem 6$, e por uma lata pequena de peras em calda, 3$ e mais, quando em Belém se compram esses artigos por 2$ e 800 réis, respectivamente!


Note o leitor que esse tratamento a que acabo de me referir é o que se dá ao passageiro da 1ª classe; quanto ao modo por que são tratados os de 2ª, apenas sei que lhes dão de manhã café ou matte com bolachas e á tarde escaldado de carne secca ou carne secca com feijão; do boi que se abate aos sabbados elles somente sentem o cheiro da carne...

O tratamento que o proprietário do “Rio Purús” dava aos seus committentes era igual áquelle que os outros armadores dão aos seus freguezes. Nesse ponto e no preço das passagens e fretes elles andam de accordo...

Só um individuo que tiver muita força de vontade poderá conter o riso por occasião das refeições. Vi innumeros proprietários de seringaes, possuidores de muitas dezenas de contos e ás vezes centenas em deposito no Banco do Pará, tratando-se mutuamente de major, coronel, tenente-coronel e capitão, botaram farinha na sopa, cortaram em cruz a laranja sem descascal-a, levarem a faca á bocca, introduzirem no assucareiro a colher com que provaram o café, etc. etc. Palitar os dentes, dando estalidos com a língua e fumar á mesa, onde outras pessoas continuavam ainda sua refeição, são cousas tão communs, vícios quasi tão generalisados, que passam desapercebidos.

Custando a passagem de Manáos ao Acre 360$ em 1ª classe e gastando o navio no trajecto de 15 a 20 dias, conforme a carga a levar para os portos intermediários, dada a qualidade má da alimentação, é uma exploração que os armadores amazonenses e paraenses exercem sobre seus freguezes. Vá que cobrem tal quantia, tendo em vista os preços dos alimentos e a riqueza da zona, mas, seja um pouco humanos e deem mais conforto aos passageiros.

 

TAVARES, J. Do Rio de Janeiro ao Acre 1905-1906. Rio de Janeiro: Typ. Revista dos Tribunaes, 1921. p. 121-124

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