Aldisio Filgueiras
Ai de ti Manaus:
tu viste
na televisão
o crime
suprir
tua lei
-- no teu olho --
& preferiste
voltar
as costas
para o rio
& a floresta
& riste
& te chamaram sorriso
& riste
...Deus dá o riso
a quem não tem dentes...
(...o riso...
& não o ciso...)
& riste!
De quê Manaus?
Decidi
ser didático contigo:
Muitas
cidades já foram devoradas
pelo fogo
& pela água
& pelo vento
& pela terra
& pela...bala...
& pela peste
Muitas.
Tu não:
depois
de um porre
no Bar do Armando
em qualquer
poste tu estás
qualquer
& o teu rancor
de pobre
porto de lenha:
a província
se defende
como pode.
Entre o porto
& o aeroporto
a retórica dos hipócritas
desfila
a fome das favelas
em fila única.
Mas tu cagas pra isso.
“Quem vencerá:
o ovo ou a galinha?”
& te chamaram equívoco, Manaus.
Ai
de mim de mim
poeta
menor
em prosa
com o
mundo
-- que será de ti?
-- o que é de mim?
Perco o fôlego
& logo & logo
os olhos leigos
-- curto triscar --
surpresa
de taxistas
furiosos
com a vida &
mulheres
&
crianças
-- malditos idiotas --
sem crédito
& sem dúvidas
na chacota dos boçais.
Ai de ti Manaus.
Um simples
cisco de rio
no teu sistema
viário
nada demais
um risco simples de giz
mas não Manaus.
Negas-te
& te basta.
Quando te dás
és outra.
& te bastas.
Já capitulaste
tantas vezes
que a próxima
não te fará
nenhuma
vergonha na cara.
Ninguém te amou mais de uma vez.
& se disseres:
-- por que não outro sítio que não eu...
-- de tantas caras & máscaras é impossível
fugir de ti sem encontrar-te em cada
esquina de aeroporto & polícia rodoviária
:
a última vez
-- conta um signatário
anônimo: foi
a que jurei estar livre!
otário!
& mais não disse
não disse, Manaus
mas lhe foi perguntado.
Todo descuido
em ti será
fatal, Manaus.
Espremeste
todas as seringueiras
& oprimiste
todos os seringueiros
que o Nordeste
não teve tempo
quente o bastante
para queimar.
& extraiste
látex
& extraiste
sangue
& extraiste
divisas
& extraiste
sonhos
& vaudevilles
& foste produzir
pneus em Detroit
& guerras
neuróticas na Europa.
& se eu
acreditasse
mesmo em Deus
rezaria
que ele estudasse
mais geografia
& te descobrisse
aqui onde estás
encolhida & devassa
& te bombardeasse
nem que fosse
com uma nuvem
enxuta de Chernobyl
sobre os legumes
que vêm de São Paulo
alimentar
de cadáveres &
filmes
de Spielberg
tua produção
de informática.
Mas o anjo
não me diz
nada. Deus?
Arcanjo?
Quê -- senão
o nada
dimensionado?
Mas tu cagas pra isso.
Massacraste
os teus poetas &
pintores
& músicos & malucos
de todos os matizes
-- os que mais te amaram --
com discursos
& crimes pós-barba
& piadas obscenas
& quadros & romances
que só tu
superas em ficção
& maldade
Ouve a pobreza
dos teus
bairros Manaus.
Eles comem
lixo & tu vestes luxo.
Eles querem viver
& ensinas
lições suicidas
desde a Baixa
Cachoeirinha
-- onde quintais
viram danceterias
& os igarapés
estão bêbados de
neon & mercúrio.
Sim: eles querem viver.
Mas o ônibus
fede & os sovacos
& as bocetas
& os homens bebem
movidos a ódio cru
para sonhar
mas o sonho fede
& tu cagas pra isso.
Ai de ti Manaus
não venhas chorar no meu ombro.
FILGUEIRAS, Aldisio. Manaus – as muitas Manaus. Manaus: Edição do Autor, 1994. p. 71-90