José Augusto de Castro e Costa*
Ainda no final do século XIX o Acre, por ser um dos maiores produtores de borracha, este combustível torrificante, responsável pelo robustecimento financeiro do orçamento da República brasileira, leva a Amazônia inteira a experimentar dias de grande prosperidade econômica. Muitas pessoas não se contentavam apenas com a vida luxuosa e oferecida por Manaus e Belém, as capitais da "belle époque" brasileira e embrenhavam-se rios acima em busca do látex oriundo do Acre. Ali estavam os mais produtivos seringais e, consequentemente, os mais abastados seringalistas da região. Era esse paraíso econômico que atraia e seduzia muitos espíritos aventureiros dispostos a explorá-lo ou simplesmente conhecê-lo, caso em que se encontravam jovens profissionais liberais da época, tais como guardas-livros (contabilistas), professores, advogados, odontólogos e médicos.
Esses jovens chegavam ao Acre embevecidos por inexplicável atrativo e, não raras vezes, eram levados a constituir famílias quando não as possuíam, ou mandavam buscá-las depois de um certo tempo de adaptação. Houve até caso de alguém ter sido surpreendido com a inesperada chegada da esposa com a filharada – providência tomada por algum compadre comandante de gaiolas ou chatinhas.
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Dr. Esperidião de Queiroz Lima
Foto.: Álbum do Rio Acre 1906-1907 |
A maioria ao Acre chegou, viu e ao torrão acreano se dedicou de corpo e alma. A esses a admiração e respeito muito são-lhes devidos. Este ensaio dirige-se aos médicos que se lançaram dos mais distantes rincões para regar com suor, sangue e lágrimas o solo acreano. Arí Rodrigues, Adib Elias, Manoel Marinho Monte, José Nabuco de Oliveira, Wagner Brasiliense Euleutério, Júlio Alves Portela, Barral Y Barral, Laélia Gonçalves, Gilson Moreira, Tetsuo Kawada, Augusto Hidalgo de Lima, Carlos Afonso, José Amorim, Maia Barbosa, são nomes que sempre serão lembrados pela abnegação e dedicação a outrem. A estes, extensivas a seus colegas atuais, que por certo serão incluídos na lista dos bem lembrados, as nossas homenagens contidas na história de um médico que pelo Acre passou, muito antes dos aqui mencionados: ESPERIDIÃO DE QUEIROZ LIMA.
Logo após sua formatura no Rio de Janeiro, onde vivera oito anos estudando, ainda em 1904, Dr. Espiridião, cearense de Baturité, depois de visitar sua familia na cidade natal, resolve realizar seu desejo de conhecer o Amazonas e Acre, que tanto seduziam seu espírito aventuroso.
Em Manaus, em parceria com um companheiro de tempos escolares, abriu consultório médico próximo a uma Farmácia e em seguida foi nomeado Inspetor do Serviço Sanitário, onde permaneceu durante algum tempo.
No entanto, continuava empolgado pelo espírito de aventura e, não adaptando-se à tórrida e férvida cidade de Manaus, resolveu ir clinicar no Território do Acre, que o fascinava, como em geral aos audaciosos cearenses que o haviam descoberto e conquistado.
Aparelhou-se convenientemente para o almejado empreendimento com microscópio, um pequeno laboratório para exames de sangue e de fezes, uma Monografia britânica "Culicidae" de Theobald do Museu Britânico, um grande ambulatório com remédios apropriados, muito quinino e ampolas para injeção.
Aparentemente bem munido, com roupas leves e mosquiteiros de rede, embarcou para o Acre, seguindo contente seu destino, levando grandiosos projetos de estudos e pesquisas.
Decidido a viver realmente no Território do Acre, resolveu tomar uma embarcação que, nas primeiras águas, subiria os rios Purus, Acre até Xapurí esperando, assim, conhecer a área e escolher a sua localização.
Observou as circunstâncias de navegabilidade dos rios e o cotidiano da viagem como o atracamento em vários portos para receber carvão e lenha e a luta contra os piuns, de dia e as carapanãs, ao escurecer.
Notou e percebeu que o Acre parecia ter sido desenhado pela natureza, "no imenso painel de terra firme coberta de floresta". E no Acre fixou-se o Dr. Esperidião, primeiro morando em Xapurí mudando-se, posteriormente, para a Empresa, onde presenciou ambiente de bajulação, de falsidade e de intrigas formado em torno das autoridades federais, destacando-se competição de proveitos e interesses. Levava a vida medicando pelos seringais, como Capatará, Remanso, Santa Flora, Itú.
Com a afluência de novos elementos e a fundação de jornais e de lojas maçônicas, intensificaram-se as competições políticas e rivalidades sociais. Já radicalizado na área, Dr. Esperidião viu-se envolvido, por influência do meio ou por simples companheirismo. Tanto que, em certa ocasião, foi publicado num jornal adverso uma quadrinha de pé quebrado, traçando seu perfil:
"É um ilustre esculápio,
Mas quando a raiva o ataca
Ou dá sopapos no ar
Ou murro em ponta de faca".
Em fevereiro de 1908, Dr. Espiridião vai à sua terra natal selar o compromisso de casamento com sua prima. Em agosto, recebe a noticia da morte de Plácido de Castro, com quem mantinha relacionamento de amizade. "Sabia que Plácido de Castro rompera com Alexandrino José da Silva, que se colocara ao lado do prefeito Gabino Bezouro, que vivia apavorado com o prestígio do grande chefe acreano".
Seu regresso ao Acre deu-se em 1909 e é digno de nota. Procurando prever e prover as maiores necessidades de seu estabelecimento no Acre, resolveu levar seu "cavalo Tuxaua com seus arreios, uma vaca boa de leite, um grajaú de galinhas, um caixão telado de roseiras, e sementes de flores, frutas e verduras, e pessoal para todo o serviço. A mobília foi desmontada e arrumada dentro de um grande caixão, feito de boas tábuas de cedro, que seriam transformadas em mesas e estantes. A louça e trens de cozinha encheriam grandes barricas caprichosamente embaladas. Baús de livros, malas e roupas e pequenos objetos e sacos de viagem, completariam a grande bagagem, uma verdadeira mudança." De pessoal levou cozinheira, uma menina para servir de babá, um casal para cuidar da horta e lavagem de roupa, um tratador de animais e um carpinteiro.
Dr. Esperidião encontrou um Acre já diferente. Tinha de viajar frequentemente, de canoa ou a cavalo, para atender aos chamados dos seringais, pernoitando às vezes fora de casa. Havia como único vizinho, do outro lado do rio, o quartel da Companhia Regional, cujos oficiais o mantinham sob suspeita e vigilância, não obstante as relações de cortesia. Com o pretexto de tratar-se de militares, sua família era intimidada com gritos de alerta contra um imaginário ataque, sabendo-se que a metralhadora apontada para sua residência poderia disparar a qualquer momento, e outras intrigas diversas. Eram feitos treinamentos de tiros contra a praia de sua casa, frequentemente.
Com o assassinato de Plácido de Castro, deu-se a fuga de seus amigos mais chegados, pois muitos foram intimados a deixar o Acre, sob pena de morte. Dr. Esperidião continuava sua vida de consultas e tratamento na Empresa e nos seringais, tendo vivenciado "in loco" toda a opressão no Acre, a revolução no Juruá, os atentados inomináveis, a demonstração de força. Da viagem que fez para Sena Madureira guarda vivas lembranças.
Em suma, o que mais o jovem médico cobiçava, não era a ambição desmedida de riqueza, não era o desejo sôfrego de possuir bens materiais, mas viver em contato direto com a natureza propriamente dita, empregando seus conhecimentos profissionais para fazer o bem sem olhar a quem. Precisamente a 4 de setembro de 1911, Dr. Esperidião de Queiroz, sem vislumbrar perspectivas favoráveis no horizonte dada a turbulência política, acompanhado de toda a família, empregados e a incontável bagagem, deixa o Acre, numa viagem de mudança definitiva, a bordo de um batelão a varejão, construído com a madeira que antes integrara a construção de sua casa na Empresa – Rio Branco.
Ainda fascinado pelo ambiente amazônico, radicou-se no Amapá, onde prosseguiu prestando inestimáveis serviços de natureza médica, científica e assistencial.
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NOTA.: Esperidião de Queiroz Lima nasceu na fazenda Califórnia em Quixadá (Ceará), no dia 31 de outubro de 1880. Era o quarto filho do Dr. Arcelino de Queiroz Lima e de dona Rachel de Queiroz Lima. Formou-se em Medicina aos 23 anos de idade, pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Era casado com Maria de Jesus Marinho de Goes (que adotou o nome de casada: Maria de Goes e Queiroz Lima), Tia Mariinha, irmã de meu avô José Marinho Falcão de Goes. Médico, cientista, historiador, poeta e escritor, clinicou por longo tempo em Manaus e no Território do Acre, realizando estudos científicos que lhe valeram a nomeação como Médico do Serviço de Indústria Pastoril, do Ministério da Agricultura, no Pará, de onde foi transferido seguidamente para: Minas Gerais, Rio de Janeiro, Espírito Santo, São Paulo, Mato Grosso e Santa Catarina. Deixou inéditos alguns trabalhos de grande importância e de repercussão mundial. Faleceu no Rio de Janeiro aos 86 anos, no dia 1° de janeiro de 1967. (Informações de Claudia Maria Mattos Brito de Goes). Esperidião também era tio da escritora brasileira Rachel de Queiroz.
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*José Augusto de Castro e Costa é poeta e cronista acreano.