sábado, 30 de novembro de 2013

O HOMEM ENQUANTO SUJEITO

Inês Lacerda Araújo


Há algo em comum entre o "homem como medida de todas as coisas", famosa afirmação de Protágoras, o homem racional, cujo cogito (pensamento) é fonte de certeza e o além-do-homem de Nietzsche?

Todos os filósofos abordam o tema do homem, porém de diferentes modos e com diferentes propósitos.

Em meio aos entes, às coisas todas que nos cercam, há um ente cujo ser desvela todos os demais, condiciona o aparecer e as mudanças de tudo: é o homem medida das coisas que são e das que não são, das qualidades, das sensações.Tudo o que se conhece depende de o homem perceber e entender. Tudo é relativo às sensações, às percepções, enfim, ao modo de ser humano.

Mas, para Protágoras nem de longe há um sujeito de conhecimento, fonte de certeza, um sujeito que se sabe ser aquele por meio do qual há representação das coisas e que para isso se serve de algo que apensas ele possui: sua racionalidade, ou melhor, sua alma racional. Pensar, o cogito ergo sum, penso, logo existo de Descartes é em tudo diverso do homem medida de Protágoras. Distancia-os não apenas aproximadamente 20 séculos, mas uma nova visão de ser humano. Protágoras nem poderia entender a subjetividade do sujeito como pessoal, como doadora de certeza, inclusive a certeza da própria existência.

Com Descartes nasce o sujeito moderno, fonte de conhecimento e de liberdade, ele medita e conclui que se ele, Descartes, pensa necessariamente existe. E não simplesmente em meio às coisas do mundo. A metafísica cartesiana pressupõe inclusive que Deus depende do pensamento humano. Pensar em um ser supremo o mais perfeito de todos, sem que, ao mesmo tempo, este ser não exista, é impossível. Conceber a perfeição inclui, pressupõe, exige a existência. De sua cadeira, em seu gabinete de trabalho, o filósofo reflete, medita, sabe que é ele o "dono" de si, de seus pensamentos, de sua existência. Não precisa saber do mundo, nem fazer experiências para concluir que a consciência de si basta. Essa autossuficiência é o ponto de partida para o reconhecimento da subjetividade, desse eu interior que tanta importância terá para a filosofia, para a psicologia, para a futura psicanálise, para fundamentar conceitos jurídicos como imputação de culpa ou dolo, para reconhecimento de autoria de obras de arte, etc.

Mal nasce o sujeito moderno, ele se vê, com Nietzsche transformado em vontade vital de superar, de sobreviver, de esforçar-se para obter mais e mais poder, a capacidade de satisfazer impulsos da vontade. Vontade de que? de poder, não no sentido de poder político ou econômico, nem de longe! Poder no sentido de potência vital, todos os entes são dotados desse poder, a vontade não é de uma pessoa livre, um sujeito que pensa e de quem depende a verdade e a certeza. Esse sujeito cartesiano, metódico, que representa e que tem consciência representar as coisas, cede lugar à vida, à sobrevivência por meio de luta, de força. Força vital caracteriza o homem, se ele se detiver nos valores de outro mundo, de Deus, do que transcende, é fraco, submete-se ao que ele próprio concebera como valor supremo, "ingenuidade hiperbólica"! Não percebe que ele criou o mundo de estilo platônico ao qual se submete. Atender à força vital implica negar os valores inventados para justificar sua fraqueza, e criar novos valores, dessa vez, terrenos. Ir além do homem, quer dizer, a busca de arte, criação, e não de verdade e nem de certeza, levam à potencializar o que é próprio à vontade de poder. Vontade e impulsos no lugar da consciência de si e da representação do sujeito.

Resposta à questão proposta no início, de se há algo em comum entre as três concepções de homem. Sim, há pelo menos nossa ignorância, nossa vontade de saber, os projetos e realizações ao longo da história, a defesa da liberdade de pensamento e da própria filosofia. A filosofia não está morta...


INÊS LACERDA ARAÚJO - filósofa, escritora e professora aposentada da UFPR e PUCPR.

IRACEMA: UMA TRANSA AMAZÔNICA

Considerado um clássico do cinema documental, dirigido por Jorge Bodanzky e Orlando Senna. Filme importante para se compreender o que veio sobre o dorso da farsa do progresso da Amazônia com a implantação da Transamazônica. O filme é de 1976, mas foi proibido pelos militares, sendo lançado oficialmente apenas em 1981.


Já no final do filme há esse diálogo entre Iracema e Tião Brasil Grande, os dois protagonistas.

– E pra onde tu tá indo agora?
– Pro Acre.
– Pro Acre? Num vai, não. Fica comigo.
– Lá no Acre agora tem mais futuro do que aqui.
– Fica comigo.
– Do outro lado do Brasil tem outro mar, não é o Oceano Atlântico, é o Pacífico. Fica lá no Acre. O Acre é o caminho para o outro oceano, o Oceano Pacífico. Dizem até que o Governo vai mandar construir um porto lá. Pra atracar navio e tudo, que nem o Porto de Santos, no Rio de Janeiro.

“A história narrada em estilo semidocumental segue a trajetória de um caminhoneiro e uma prostituta, que viajam juntos pela Rodovia Transamazônica recém-construída. O caminhoneiro, apelidado de Tião "Brasil Grande", fala sempre da sua confiança no progresso do Brasil e de quão bem a construção da rodovia em plena floresta ajudará a isso acontecer. Seu caminhão tem o famoso adesivo "Brasil, ame-o ou deixe-o" (popularizado pelo regime militar da época) no parabrisa e no parachoque está escrito "Do destino ninguém foge".
Contrastando com esse otimismo, aparecem as paisagens do desmatamento, queimadas e devastação da floresta pela janela do caminhão. As pessoas com quem Tião conversa reclamam dos grileiros que tomam as terras dos pobres. Tião diz que o povo é ignorante, que compra terras sem pedir a documentação. Para outros ele diz que a rodovia do governo é boa, mas os caminhoneiros dizem que muitas vezes eles próprios tem que construirem as estradas para chegarem até onde a madeira se encontra para as transportarem. Enquanto isso, Iracema segue o que ela acha ser a sua sina: vagar sem destino, acompanhando os caminhoneiros em suas viagens. Ao ser levada para uma fazenda no interior da mata, ela presencia uma negociação de mão-de-obra envolvendo um sitiante e um agenciador. O sitiante começa dizendo que não quer problemas, que deseja tudo legalizado. Mas logo mostra a precariedade do emprego ao negociar o preço da comissão cobrada pelo agente: reclama que está caro, que a maioria dos homens que ele contrata fugirão logo ou morrerão de malária. Já o agenciador diz que o trabalhadores que transporta são todos ignorantes, que nem sabe onde estão. "Pensam que aqui é Mato Grosso", afirma ele.”

quinta-feira, 28 de novembro de 2013

A ESPADA DAS MÃOS VAZIAS

ROGEL SAMUEL


Fernando Pessoa é perfeito. Em tudo o que fez. Leio «O guardador de rebanhos», a sua técnica de meditação. Na melhor tradição dos mestres Zen, ele diz: sou um pastor de pensamentos. 

"Sou um guardador de rebanhos 
O rebanho é os meus pensamentos 
E os meus pensamentos são todos sensações. 
Penso com os olhos e com os ouvidos 
E com as mãos e os pés 
E com o nariz e a boca. 
Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la 
E comer um fruto é saber-lhe o sentido. 

«Por isso quando num dia de calor 
Me sinto triste de gozá-lo tanto. 
E me deito ao comprido na erva, 
E fecho os olhos quentes, 
Sinto todo o meu corpo deitado na realidade, 
Sei a verdade e sou feliz."

Reúne ele os pensamentos como um pastor suas ovelhas. Para que não se percam. Não se extraviem. Não divaguem. Não delirem. Reúne suas ovelhas dentro de si. É o que o Zen diz: "Viver dentro da casa". Dentro da casa é dentro de si. "Permanecer como se é, estar completo em si mesmo... cada manhã é uma boa manhã, cada dia um lindo dia, não importa a tormenta que esteja desabando..." (Suzuki, "Viver através do Zen"). 

Diz Suzuki que o poeta Hakuin (1685-1768) explica aquilo assim: 

"As formigas vagarosas lutam para carregar as asas de uma libélula morta; 
As andorinhas da primavera pousam lado a lado num ramo de salgueiro; 
As fêmeas dos bichos-da-seda, pálidas e cansadas, ficam imóveis segurando as cestas repletas de folhas de amora; 
Os garotos da vila são vistos com rebentos de bambu roubados arrastando-se através das cercas quebradas.» 

Mas não é para ser compreendido! Se for compreendido, terá outro sentido. Nossas experiências diárias «são de fato experiências do Zen, mas não conseguimos reconhecer isso porque nós, como seres intelectuais, perdemos algo que nos permitia entender o significado". 

Que perdemos? Perdemos a beleza. A claridade. Não vemos a beleza dos pássaros no céu, as flores na terra. A luz sobre a montanha, as sombras estreladas da noite. 

A vida em si é beleza, algo misterioso. Escapa à compreensão intelectual. 

Sotoba, um dos poetas da dinastia Sung, escreveu: 

"A chuva nebulosa no Monte Lu, 
E as vagas encapeladas no Che Kiang; 
Quando ainda não se esteve lá 
Muita mágoa se possui; 
Mas uma vez lá e para casa se encaminhando, 
Quantas coisas prosaicas se observa! 
A chuva nebulosa no Monte Lu, 
E as vagas encapeladas no Che Kiang."
[Suzuki, "Essays in Zen Buddhism", I, p. 22.] 

"Não há nada especial": O mesmo velho mundo... e não obstante deve haver algo novo e belo na nossa consciência, pois de outra forma não se poderia dizer: "Está tudo o mesmo". 

Uma grande mudança, uma grande iluminação teve lugar. Mas tudo está o mesmo. 

Por isso um monge jardineiro aproximou-se certa vez do mestre e manifestou-lhe o desejo de ser iluminado no Zen. O mestre disse: "Venha novamente quando não houver ninguém por perto". No dia seguinte, o monge observou que não havia ninguém perto e implorou-lhe para revelar o segredo. Disse o mestre: "Aproxime-se mais de mim". O monge chegou mais perto dele. Disse então o mestre: "O Zen é algo que não pode ser transmitido por palavras". 

Algum segredo foi revelado? Sim, o sol brilha no luminoso dia. E ele está alegre e feliz. 

Pessoa reúne seus pensamentos como um jogador reúne suas cartas de baralho. São os pensamentos-realidade, pensamentos-pedras.

Desconfia das aparências, das ilações. O Ser só existe quando se torna consciente de si mesmo, diz Suzuki. Mantêm-se na arte da atenção, da presença. Quando ver, ver. Quando ouvir, somente ouvir. Não sair. A distração, para o mestre Zen, é a morte. Como para o lutador de espadas. A alegria, a felicidade está no momento presente, no fragmento presente. 

E os meus pensamentos são todos sensações. 
Penso com os olhos e com os ouvidos 
E com as mãos e os pés 
E com o nariz e a boca. 
Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la 
E comer um fruto é saber-lhe o sentido. 

O passado é um cadáver morto e podre, o futuro é ilusão e desconhecido. Passado e futuro trazem confusão mental, sofrimento. Se me deixo na confusão de minhas ilusões fico perdido e em perigo, como quem escala a montanha. Ver é ver, pensar é pensar. Cada um de cada vez. Ver e pensar ao mesmo tempo é a loucura burra das fantasias irreais. Uma realidade só se dá única. Ver e estar consciente de que estou vendo, pensar e estar consciente de que estou pensando. Um guardador de rebanhos.

É por isso que digo que Pessoa era perfeito, em tudo o que fazia, que fechava os olhos e deitava na relva. Pleno. Na rainha das meditações, a realidade plena. Plenamente alcançada. Desperto. Livre.

Como diz o Zen: "Seguro uma espada em minhas mãos e fico com as mãos vazias". 


quarta-feira, 27 de novembro de 2013

ENTRE AMIGAS, NA RUA

piadinha católica


– Onde vai tão cedo?
– À igreja.
– À igreja?
– Sim, vou me confessar. Quer vir comigo?
– Não. Esta semana não pequei.
– Ah! é verdade; teu marido já chegou.


Jornal A Reforma, 12 de maio de 1933, p.2

SOBRE A VAIDADE DOS HOMENS

Matias Aires (1705-1763)


Sendo o termo da vida limitado, não tem limite a nossa vaidade; porque dura mais do que nós mesmos, e se introduz nos aparatos últimos da morte. Que maior prova do que a fábrica de um elevado mausoléu? No silêncio de uma urna depositam os homens as suas memórias, para a com a fé dos mármores, fazerem seus nomes imortais: querem que a suntuosidade do túmulo sirva de inspirar veneração, como se fossem relíquias as suas cinzas, e que corra por conta dos jaspes a continuação do respeito. Que frívolo cuidado! Esse triste resto daquilo que foi homem já parece um ídolo colocado em breve mas soberbo domicílio, que a vaidade edificou para a habitação de uma cinza fria, e desta declara a inscrição o nome e a grandeza. A vaidade até se estende a enriquecer de adornos o mesmo pobre horror da sepultura. 


AIRES, Matias. Reflexões sobre a vaidade dos homens. Rio de Janeiro: José Olympio, 1953. p.23

> Matias Aires Ramos da Silva de Eça nasceu em São Paulo e faleceu em Lisboa. É o mais importante filósofo brasileiro do século XVIII, e um dos únicos. De grande erudição, estudou na Faculdade de Direito de Coimbra, depois em Madri, Baiona e na Sorbonne, em Paris. É considerado o primeiro moralista de nossa história literária.

terça-feira, 26 de novembro de 2013

A IARA

João Guimarães Rosa (1908-1967)


Bem baixo das colinas de ondas verdes,
onde o o sol se refrata em agulhas frias,
descem todas as sereias dos mares e dos rios,
irreais e lentas, como espectros de vidro,
para os palácios de madrépora de Anfitrite,
em vale côncavo, transparente e verde,
num recanto abissal, como uma taça cheia,
entre bosques e sargaços, espumosos,
e rígidos jardins geométricos de coral...

Por entre os delfins, sentinelas de Possêidon,
afundam, suspensas, soltas, como grandes algas,
carregando os jovens afogados:
Ondinas das praias, flexosas,
Nixes da água furtacor do Elba,
Havefrus do Sund e Russalkas do Don...
Loreley traz no esmalte doce dos olhos 
duas gotas do Reno...
E Danaides laboriosas se desviam dos cardumes 
de Nereidas,
que imergem, ondulando as caudas palhetadas
dos seus vestidos justos de lamé...

Mas a Iara não veio!...
Mas a Iara não vem!...
Porque Iara tem sangue,
porque a Iara tem carne,
sangue de mulher moça da terra vermelha,
carne de peixe da água gorda do rio...

Iara de olhos verdes de muiraquitã,
cintura pra cima de cunhantã
cintura pra baixo de tucunaré...
que veio, dormindo, Purus abaixo,
filha do filho do rei dos peixes
com uma índia branca Cachinauá...

Lá bem pra trás da boca aberta do rio,
onde solta seus diabos
o bicho feroz da pororoca,
ela ficou, cheia de medo,
brasiliana, tapuia, morena,
Tão orgulhosa,
que não quer ser desprezada pelas outras...

E a Iara é preguiçosa,
tão preguiçosa,
que não canta mais as trovas lentas
em nheengatu :
– “Iquê, ianê retama icu,
Paraná inhana tumassaua quitó...”

Nem mais se esforça em seduzir
o canoeiro mura ou o seringueiro,
meio vestida com a gaze das águas ,
na renda trançada dos igarapés...
E eu tenho de chorar:
– “Enfeitiça-me, ó Iara,
que eu vim aqui pra me deixar vencer...”

Mas custa-me encontrá-la,
e só à noite sem bordas dessas terras grandes,
quando a lua e as ninféias desabrocham soltas,
posso beijá-la,
nua,
dormida, 
esguia,
bronzeada,
oleosa,
na concha carmesim de uma vitória-régia,
tomando o banho longo
de perfume e luar... 


ROSA, João Guimarães. Magma. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997. p.16-19

segunda-feira, 25 de novembro de 2013

NAVIO-ESQUIFE

Astrid Cabral


Correm as águas do rio
corre veloz o navio.
Entre as faces do vento
entre as faces do tempo
corremos nós.

Ao abraço de que foz
viajam as águas
viajamos nós?

Árvores nas margens
céleres passam
sob remansos de céu
onde se apaga o sol.

Eis que longe o porto
acende seu colar de luzes:
grinalda para os mortos
que no navio-esquife
ante-somos todos. 


CABRAL, Astrid. De déu em déu: poemas reunidos (1979/1994). Rio de Janeiro: Sette Letras, 1998. p.52

> Astrid Cabral é outro grande nome da poesia brasileira nascida no Amazonas. Possui uma ampla obra, entre as quais, Alameda (1963), Ponto de cruz (1979), Torna-viagem (1981), Visgo da terra (1986), Rês desgarrada (1994), Ante-sala (2007).

domingo, 24 de novembro de 2013

SIMONE E AS MANDALAS DA FLORESTA

Há no Acre uma artista que por onde passa tem encantado o público com a sua arte. Trata-se da artista plástica Simone Bichara. As suas mandalas procuram expressar a multiplicidade sentimental e de tons dos povos da floresta e da própria floresta, na variedade de sua fauna e flora, a partir da interiorização desses valores. Daí surge uma arte rica em detalhes e expressões, que, por meio da beleza, possibilita a integração do caráter místico e holístico do ser humano.
Mandala Renascimento

Mandala Contemplação

Mandala Flor

Mandala Floresta

Mandala Fundo de rio

Mandala Percepções

Mandala Vitrais

sexta-feira, 22 de novembro de 2013

É MAIS BELO O MAR

VERLAINE (1844-1896)


É mais belo o mar
Do que as catedrais,
A matriz sem par
Que acalenta os ais,
O mar por quem ora
A Nossa Senhora.

Ouço-lhe a canção
Que aplaca e delira;
Ouço o seu perdão
Como a sua ira...
Este mar alado
Não é obstinado.

Ó tão paciente
Menos quando espanta!
Um sopro é paciente
Na vaga e nos canta:
“Vós sem esperança
Morrei morte mansa”.

Sob o firmamento
Na manhã gloriosa
Tem um ar cinzento,
Verde e cor-de-rosa...
Belo em sua voz,
Melhor do que nós!


VERLAINE, Jean-Marie. Poemas. (trad. Jamil Almansur Haddad). São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1962. p.187

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

COMO A NOITE APARECEU (cosmogonia Tupi)

Couto de Magalhães
in O Selvagem (1876)


No princípio não havia noite – dia somente havia em todo tempo. A noite estava adormecida no fundo das águas. Não havia animais; todas as coisas falavam.

A filha da Cobra Grande – contam – casara-se com um moço.

Esse moço tinha três fâmulos fiéis. Um dia, ele chamou os três fâmulos e disse-lhes: – Ide passear, porque minha mulher não quer dormir comigo.

Os fâmulos foram-se, e então ele chamou sua mulher para dormir com ele. A filha da Cobra Grande respondeu-lhe:

– Ainda não é noite.

O moço disse-lhe:

– Não há noite; somente há dia.

A moça falou:

– Meu pai tem noite. Se queres dormir comigo, manda buscá-la lá, pelo grande rio.

O moço chamou os três fâmulos; a moça mandou-os à casa de seu pai, para trazerem um caroço de tucumã.

Os fâmulos foram, chegaram à casa da Cobra Grande, esta lhes entregou um caroço de tucumã muito bem fechado e disse-lhes:

– Aqui está; levai-o. Eia! Não o abrais, senão todas as coisas se perderão.

Os fâmulos foram-se, e estavam ouvindo o barulho dentro do coco de tucumã, assim: tem, ten, ten... xi... Era o barulho dos grilhos e dos sapinhos que cantam de noite.

Quando já estavam longe, um dos fâmulos disse a seus companheiros: – Vamos ver que barulho será este?

O piloto disse: – Não; do contrário nos perderemos. Vamos embora, eia, ramai!

Eles foram-se e continuaram a ouvir aquele barulho dentro do coco de tucumã, e não sabia que barulho era.

Quando já estavam muito longe, ajuntaram-se no meio da canoa, acenderam o fogo, derreteram o breu que fechava o coco de tucumã e abriram-no. De repente tudo escureceu.

O piloto então disse: – Nós estamos perdidos; e a moça, em sua casa, já sabe que nós abrimos o coco de tucumã!

Eles seguiram viagem.

A moça, em sua casa, disse então a seu marido:

– Eles soltaram a noite; vamos esperar a manhã.

Então todas as coisas que estavam espalhadas pelo bosque se transformaram em animais e pássaros.

As coisas que estavam espalhadas pelo rio se transformaram em patos e em peixes. Do paneiro gerou-se a onça; o pescador e sua canoa se transformaram em pato; de sua cabeça nasceram a cabeça e o bico do pato; da canoa, o corpo do pato; dos remos, as pernas do pato.

A filha da Cobra Grande, quando viu a estrela d’alva, disse a seu marido:

– A madrugada vem rompendo. Vou dividir o dia da noite.

Então ela enrolou um fio, e disse-lhe: – Tu serás cujubim. Assim ela fez o cujubim; pintou a cabeça do cujubim de branco, com tabatinga; pintou-lhe as pernas de vermelho com urucu, e, então, disse-lhe: – Cantarás para todo sempre quando a manhã vier raiando.

Ela enrolou o fio, sacudiu cinza em riba dele, e disse: tu serás inambu, para cantar nos diversos tempos da noite e de madrugada.

De então para cá todos os pássaros cantaram em seus tempos, e de madrugada, para alegrar o princípio do dia.

Quando os três fâmulos chegaram, o moço disse-lhes: – Não fostes fiéis – abristes o caroço de tucumã, soltastes a noite e todas as coisas se perderam, e vós também, que vos metamorfoseastes em macacos, andareis para todo sempre pelos galhos dos paus.

(A boca preta e a risca amarela que eles têm no braço dizem que são ainda o sinal do breu que fechava o caroço de tucumã e que escorreu sobre eles quando o derreteram).


MAGALHÃES, Couto de. O selvagem. São Paulo: Livraria Magalhães, 1913. p.215-217

NOTA: a primeira edição de O SELVAGEM, de autoria do general Couto de Magalhães, é de 1876. Tem-se que se compreender que é um livro feito dentro da mentalidade de sua época, a de que era preciso amansar e civilizar os índios. O livro é loquaz para assinalar como era a posição do governo oficial em relação aos povos indígenas, uma visão utilitarista, quando não, exterminadora. No entanto, o melhor do livro são as inúmeras lendas que o autor reuniu a partir de seus contatos com os diversos povos indígenas do Brasil, que se encontra na VIII parte da obra. Entre outras, a que publicamos acima. Sobre “Como a noite apareceu”, o autor tece o seguinte comentário: “Esta lenda é provavelmente um fragmento do Gênesis dos antigos selvagens sul-americanos. (...) Aqui, como nos Vedas, como no Gênesis, a questão é no fundo resolvida pela mesma forma, isto é: no princípio todos eram felizes; uma desobediência, num episódio de amor, uma fruta proibida, trouxe a degradação. A lenda é, em resumo, a seguinte: no princípio, não havia distinção entre animais, o homem e as plantas: tudo falava. Também não havia trevas. Tendo a filha da Cobra Grande se casado, não quis coabitar com o seu marido enquanto não houvesse noite sobre o mundo, assim como havia água no fundo das águas. O marido mandou buscar a noite, que lhe foi remetida encerrada dentro de um caroço de tucumã, bem fechado, com proibição expressa aos condutores de o abrirem, pena de perderem a si e a seus descendentes e a todas as coisas. A princípio, resistem à tentação; mas depois a curiosidade de saber o que havia dentro da fruta os fez violar a proibição, e assim se perderam.”

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

MILTON SANTOS

Interessante palestra do Milton Santos na UERJ em 1995, onde, entre outras coisas, abordou a respeito da situação do negro no Brasil. Inicie o vídeo a partir de 23 minutos, pois antes há uma introdução irrelevante. Ouvir o prof. Milton Santos é sempre inspirador, esse que foi uma das mentes mais brilhantes deste país.

“Não tenho nenhuma simpatia por trezes de maio nem por semana do mês de novembro, porque tenho uma enorme dificuldade em aceitar que o país celebre uma semana, celebre um dia e o resto dos 357 dias se descuide da questão. Creio que é importante que haja esses dias, no sentido de mobilização. Só que a mobilização não é obrigatoriamente aquilo que produz a consciência. Com frequência a mobilização cria um elã emocional, e o que permite uma luta continuada é a produção da consciência, que não pode ser obtida em um dia treze de maio ou numa semana de consciência negra. Porque não é questão de consciência negra, não. É questão de consciência nacional.” Milton Santos

terça-feira, 19 de novembro de 2013

Livro BRASILEIRO POR OPÇÃO

Em minhas mãos, o BRASILEIRO POR OPÇÃO, do escritor acreano, radicado em Brasília, José Augusto de Castro e Costa, amigo e ilustre colaborador desta página. O autor me concedeu o privilégio de prefaciar esta obra, publicada pela editora da Universidade Ceuma, no estado do Maranhão. O livro é um valioso e bem feito trabalho sobre a história acreana, a história dos brasileiros por opção. A imagem que ilustra a capa é uma pintura de autoria da mãe do próprio autor. Para o Acre, De Castro e Costa planeja lançamento da obra para janeiro de 2014. Até lá daremos melhores informações.

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

CARTA ABERTA AO PREFEITO DE TARAUACÁ

V. Ex.ª Rodrigo Damasceno


Permita-me pular as formalidades que se exigem nessas ocasiões. Da última vez que o encontrei, junto aos jovens que ajudei a organizar em nossa cidade, você era apenas um candidato em potência à prefeitura de Tarauacá. Na ocasião, você me falava de seus projetos e sonhos para uma Tarauacá melhor. O tempo, a longos passos, passou. Agora você é o prefeito de nossa cidade. O poder fascina, e fácil, alucina. Muitos gastam toda uma vida para atingi-lo. E quando o atingem não sabem o que com ele fazer. Você já galgou uma posição importante ainda jovem. Se o jovem, por um lado, não tem toda a experiência e sabedoria dos velhos, por outro, traz em si a chama de um fogo novo e renovador. O ousado presidente chileno Salvador Allende certa vez, dirigindo-se aos jovens da Universidade de Guadalajara, afirmou que ser jovem e não ser revolucionário chega até ser uma contradição biológica. Revolução, essa palavra obsoleta e desacreditada em nosso tempo, depois de tantas barbaridades cometidas em seu nome. Parece que a revolução de nosso tempo é fazer bem aquilo que fazemos. Este é o teu momento, caro prefeito. Não o deixe escapar. Faça a tua revolução. Não pergunte se o momento é propício. Faça propício o momento. Tome a história em suas próprias mãos para que no futuro suas conquistas ou fracassos confirmem sua inteligência ou estupidez. Você é médico, preparou-se para cuidar da vida, sanar os males do corpo. Agora você tem uma paciente maior. Mas o mesmo cuidado e dedicação são exigidos.

Caro Rodrigo, não pense que almejo lhe dar alguma lição de moral, o que seria até imoral de minha parte. A gente é tão pouco para o tanto que se finge ser. Estabeleço uma conversa de jovem para jovem. Ofereço o olhar de quem está de fora, por isso talvez vê melhor do que quem encontra-se imerso no sistema. Mas vamos ao que interessa. Estamos ainda no ano do centenário de Tarauacá. Ao voltar o olhar para a nossa história, nos deparamos com uma estranha constatação: temos um presente mais pobre que o passado. E mais: sequer soubemos olhar para o passado para sair do atraso do presente. Entenda-me: não almejo fazer aqui uma apologia ou culto do passado. O quero dizer é que em vez de progredir, regredimos. O velho Agostinho de Hipona já filosofava que não progredir, é regredir. Mas o nosso atraso não é propriamente econômico, que, bem ou mal, vamos levando. O nosso grande e principal atraso é cultural. Mentes pequenas morrem ao redor do próprio umbigo. Estamos no século dos homens medíocres. Estar, porém, no século dos homens medíocres não significa nos fazer medíocre com os medíocres. Esta será a diferença pela qual a história reconhecerá os seus autênticos líderes.

Caro Rodrigo, não sou historiador, mas há alguns anos venho me dedicando, embora de modo informal, sobre, não só, a história de Tarauacá, mas do Acre de um modo geral, e mesmo da Amazônia. Por que? Para quê? Não busco saber para as vaidades pessoais. Nossa história não é menos nem mais importante que qualquer outra história. É tão somente a nossa história, talvez nem nossa, se continuarmos a ignorá-la. Por isso é preciso conhecê-la; conhecê-la para entendê-la; entendê-la para amá-la; e amando-a, desenvolvê-la. Não surgimos do nada, portanto, não é o nada que nos aguarda. Não somos filhos do destino. O destino é antes resultado do que cada um faz com a história que recebe. Não cabe a nós julgar o que aqueles que nos antecederam fizeram com a história. O que nos compete é saber o que estamos fazendo nós com a história que nos foi confiada agora.

Tarauacá: 100 anos de história oficial político-administrativa. Mas a história é bem mais antiga. Primeiro nossos povos indígenas a habitaram em paz por longos séculos. Depois, a partir da década de 70 do século XIX, os primeiros desbravadores começaram a erguer seus tapiris às margens dos rios Tarauacá e Muru. Daí até o ano de 1913, foram muitos os trabalhos e os conflitos, em que se vazou na mesma proporção o leite branco das seringueiras e o sangue vermelho dos povos indígenas. De 1913 a 2013, a cidade, sob o impulso do ouro negro da borracha, foi da prosperidade ao marasmo de nossos dias. Não custa recordar que já em 1914 a cidade já contava com jornal próprio; já em 1916 tinha cinema; já em 1933 inaugurava o primeiro teatro do Acre, o agora Teatro José Potyguara.

Pergunto-vos: cem anos de história não são suficientes para se ter um espaço próprio para se preservar e se contar a história de Tarauacá? Será que vamos esperar mais cem anos para que alguém possa se dar conta da importância da memória e da história de um povo, como este que se formou às margens de nossos rios e igarapés? O que estamos esperando: um sinal dos céus ou que o tempo acabe de vez com aquilo que ainda nos resta?

Já perdemos muito, sr. Prefeito. Precisamos, e urge, de uma casa de memória, museu, ou seja lá o que for, para abrigar documentos, objetos, relatos etc. que ajudem a montar o mosaico de nossa história, para que a geração de hoje bem como a de amanhã não se perca anestesiada pela ignorância de seu passado, de sua própria história, portanto, de si mesmos também.

Caro Rodrigo, nenhum de teus antecessores teve a ousadia ou a sensibilidade para com essa parte de nossa história. Não permita que a tua gestão se enverede por esse mesmo caminho. Ouse. Transforme essa cidade com o fogo da cultura, que a tua gestão pode ajudar a fomentar. Não o estou colocando como uma espécie de salvador da pátria, o que não acredito e seria ridículo, até. Mas você, com sua equipe, tem as armas políticas para operar um novo rumo cultural na história de nossa cidade. Não se perca da mediocridade de um governo que não faz outra coisa senão maquiar a cidade com beiras de ruas pintadas, remendadas e mal-feitas. Sim, nosso povo precisa de investimento sério na saúde, na educação, na agricultura, mas também na cultura.

Tarauacá. Esta é a cidade que nós amamos. Esta é a cidade que viu nascer um dos mais populares poetas brasileiros, J.G. de Araújo Jorge. Esta é a cidade que deu à Amazônia um de seus maiores estudiosos, Djalma da Cunha Batista. Esta é a cidade que deu ao Acre dois de seus governadores, Rui Lino e Nabor Júnior. Esta é a cidade que também deu ao Piauí um de seus senadores, João Mendes Olímpio de Melo. Esta é cidade que acolheu um dos mais importantes escritores da Amazônia, Leandro Tocantins. Esta é a cidade que inspirou os mais arroubados trabalhos de José Potyguara. Esta é a cidade que construiu o primeiro teatro no Estado do Acre. Esta é a cidade da mulher bonita, que deu ao estado inúmeras misses. Esta é a cidade do abacaxi gigante. Esta é a cidade da segunda maior festa religiosa do Acre. Esta é a quarta cidade em importância do Estado. Esta é a cidade de todos nós: de nossos pais: de nossos avós: de nossos bisavós: de nossos povos indígenas. É por esta história que eu vos escrevo, caro Prefeito. Fazer história é não esquecer a memória.

Com os votos de apreço,

Isaac Melo
Curitiba, 18 de novembro de 2013