sábado, 31 de maio de 2014
sexta-feira, 30 de maio de 2014
COMO FOI POSSÍVEL CONSTRUIR GEOGLIFOS NAS FLORESTAS ACREANAS?
Evandro Ferreira
Uma grande parcela das pessoas que vive no
Acre sabe a dificuldade que é praticar agricultura e pecuária nesta parte da
Amazônia. O primeiro grande obstáculo é a floresta, que precisa ser retirada
tendo em vista que as atividades citadas não podem ser realizadas no ‘meio da
mata’.
Imagem: Geoglifo 'Quinoá', localizado nas proximidades do ponto onde o igarapé Quinoá cruza a rodovia BR-364, sentido Porto Velho, a cerca de 20 km da cidade de Rio Branco (Fonte: Google Earth). |
Desde a chegada dos primeiros colonizadores a
Amazônia, no início do século XVII, a forma de preparo das áreas para as
atividades agropecuárias na região pouco mudou: primeiro é preciso derrubar a
floresta e depois eliminar a matéria vegetal resultante para limpar o terreno.
No início eram usadas apenas ferramentas manuais para a derrubada da floresta.
Hoje máquinas motorizadas facilitam e aceleram esse trabalho. A massa vegetal
resultante da derrubada foi e tem sido eliminada mediante o uso do fogo. Não
importam os meios, a retirada da floresta para a realização de atividades
agropecuárias na Amazônia não dispensa o uso de mão-de-obra e a aplicação de
recursos financeiros para ser realizada de forma adequada.
O cultivo de plantas e a criação de animais,
com destaque para o gado, têm sido praticados desde o início da ocupação da
Amazônia. Entretanto, a manutenção do terreno livre de plantas invasoras, tanto
na atividade agrícola quanto na pecuária, é um dos maiores desafios para a perenidade
destas atividades. O abandono de áreas agrícolas ou de pastagens durante um ou
dois anos é suficiente para que a floresta comece a se regenerar rapidamente. E
se providências não forem tomadas de imediato, em pouco tempo vai ser
necessário derrubar e queimar novamente a floresta. É uma luta constante do
homem contra a natureza.
Claro que na atualidade existe uma maior
facilidade de acesso e menor custo financeiro para a aquisição de ferramentas,
máquinas e produtos químicos para conter o retorno da floresta. Mas nem sempre
foi assim e, com exceção das áreas de pastagens mantidas sob controle pela ação
de pisoteio e pastoreio do gado e pelo uso recorrente de produtos químicos e do
fogo, a maioria das áreas usadas para cultivos agrícolas na Amazônia tem sido
retomada pela floresta. E os agricultores locais permitiram e permitem que isso
ocorra porque os solos da Amazônia são naturalmente pouco férteis. Derrubar e
queimar a floresta agrega uma riqueza temporária ao solo que permite o seu
cultivo durante alguns anos.
Dito isso, coloco um desafio aos leitores.
Como é possível retirar a floresta e manter aberta uma clareira com área de 5 a
10 hectares sem dispor de máquinas (motosserra e tratores) e ferramentas
manuais feitas de ferro e aço (serras manuais, machados, terçados, foices e
enxadas)? Considerem que a floresta a ser derrubada é formada por árvores de
variados tamanhos (castanheira, aroeira) e dureza da madeira (cumaru-ferro,
angelim). Considerem ainda que a derrubada e a queimada da área a ser aberta
terá que ser, necessariamente, feita em uma única temporada do verão amazônico,
ou seja, entre o final das chuvas (abril-maio) e o final do período seco
(meados de setembro). Tentem responder também como, depois de aberta a
clareira, será possível controlar a regeneração da floresta durante meses, ou
talvez anos, sem dispor de máquinas, ferramentas manuais de ferro e aço, de
animais de pastoreio e de produtos químicos desenvolvidos especificamente para
controlar o crescimento de plantas indesejadas?
Foto: www.geoglifos.com.br |
Uma coisa é certa, a abertura de uma clareira
desse porte sem o uso de ferramentas e máquinas modernas durante uma estação do
verão amazônico, ou seja, ao longo de um período de aproximadamente cinco
meses, iria requerer um ‘exército’ de dezenas, talvez centenas, de homens
fortes e bem nutridos. A manutenção da clareira aberta livre de plantas
indesejadas também iria requerer atenção constante de um numeroso grupo de
trabalhadores braçais. Agora adicione a este trabalho a abertura, sem uso de
ferramentas e máquinas modernas, de trincheiras em formatos geométricos
diversificados, algumas em forma de círculos com até 300 m de diâmetro, com vão
com de até 10 m e profundidade de até 7 m.
Pois foi esse o trabalho que ‘indígenas
primitivos’ que habitavam o leste do Acre há cerca de 2 mil anos atrás
realizaram em dezenas de localidades, deixando como legado os geoglifos. As
razões para a realização de todo esse trabalho ainda não estão completamente
esclarecidas. Algumas publicações científicas sugerem que os geoglifos eram
estruturas de defesa para esses grupos indígenas, outras sugerem uma função
ritualístico-religiosa. Independente da destinação das estruturas, um debate
latente no meio científico é a possível explicação para a forma como esses
indígenas ‘domaram’ ou lidaram com a floresta para fazer as suas construções.
Mas antes de entramos nessa discussão, é
importante ressaltar um aspecto pouco considerado, mas que foi crucial no
processo que resultou na construção dos geoglifos: como os indígenas conseguiram
alimentar o exército de homens e suas respectivas famílias (mulheres, crianças
e idosos) que participaram da abertura da floresta e da construção dos
Geoglifos?
Os registros arqueológicos indicam que a
maioria dos assentamentos humanos mais antigos da Amazônia foi instalada em
áreas de várzeas ou nas proximidades de grandes rios que cortam a região, onde
os solos são mais ricos, a água é abundante, e a pesca e a prática da
agricultura são facilitadas. Ocorre que a grande maioria dos geoglifos encontrados
no leste do Acre foi construída nas áreas de florestas de terra firme, nos
interflúvios dos rios Acre, Iquiri e Abunã. Estas regiões são tradicionalmente
‘ruins de água’ nos períodos mais secos do ano, a obtenção de proteína animal é mais complexa e demorada (se a caça é feita
com arco e flecha), e a floresta no local geralmente tem o maior porte que se
possa imaginar. Em conjunto, estes fatores contribuem para limitar a perenidade
dos assentamentos humanos à temporada de chuvas e dificultam sobremaneira a
abertura das clareiras. Os pequenos agrupamentos de índios isolados que habitam
a região das cabeceiras dos rios Purus e Iaco são um bom exemplo disso. Até
hoje migram de uma região para outra em função da sazonalidade das chuvas.
Foto: www.geoglifos.com.br |
Não se sabe como os construtores dos
geoglifos resolveram essa questão da alimentação de um grande número de pessoas
em um ambiente teoricamente não favorável à produção agrícola primitiva em
larga escala. Entretanto, a existência dos geoglifos, o legado de sua presença
nas regiões de interflúvios, quebrou um antigo paradigma de que assentamentos
humanos primitivos e numerosos não teriam condições de prosperar longe dos
grandes rios na Amazônia. Nesse contexto, o pesquisador Alceu Ranzi, de maneira
genérica, sugeriu que “os construtores de geoglifos, durante mais de mil anos,
resolveram o problema das terras "fracas" e da falta dos grandes rios
para navegar e buscar o alimento. Depois de satisfeitas as necessidades básicas
de alimentação e segurança da família, restou tempo suficiente para o
planejamento e construção destes monumentos de terra”.
O argumento de que os indígenas levaram mil
anos para resolver o problema das ‘terras fracas’ da Amazônia, ou seja,
desenvolver técnicas agrícolas para alimentar grandes contingentes
populacionais em áreas de florestas de terra-firme onde foram construídos os
geoglifos não se sustenta porque essas técnicas deveriam ter sido herdadas por
seus descendentes, contemporâneos dos primeiros exploradores espanhóis e
portugueses que adentraram a Amazônia no início do século XVII. Se isso tivesse
acontecido, esses povos deveriam ter prosperado e formado assentamentos
perenes, mas os primeiros exploradores encontraram apenas pequenos grupamentos
nômades sobrevivendo da caça e da pesca, em sua maioria habitando as margens
dos grandes rios da região.
Nessa altura os geoglifos já haviam sido
‘engolidos’ pela floresta e sua existência só seria revelada no final do século
XX. É como se os povos construtores dessas estruturas magníficas, que dominaram
uma ampla região no limite sul-ocidental da Amazônia, tivessem desaparecido de
forma rápida em um evento pré-colombiano catastrófico – doença? – sem deixar
descendentes que pudessem continuar as suas práticas culturais, construtivas e
de manejo da floresta.
A chegada do homem no sul da Amazônia deve
ter acontecido por volta de 10 mil anos atrás, no final da última glaciação.
Antes da glaciação, a paisagem local era dominada por extensas savanas que abrigavam
uma megafauna diversa composta por preguiças e jacarés gigantes, tatus ‘do
tamanho de um fusca’, e outros herbívoros igualmente grandiosos. O aquecimento
ao final da glaciação permitiu a rápida ocupação de toda a região por florestas
tropicais abertas e densas. E foi nesse novo ambiente que há cerca de 2-3 mil
anos atrás os geoglifos foram construídos. Portanto, os seus construtores não
tiveram outra opção, mas ‘enfrentar’ a floresta para realizar suas obras.
Estudos já demonstraram que o desmatamento de
um hectare de floresta usando machados feitos de pedra demandam grande tempo e
uma quantidade imensa de mão-de-obra: 1.883 homem/hora. Embora a mobilização de
tal contingente não tenha sido de todo impossível no passado, o principal fator
limitante para tal empreendimento seria a alimentação desse batalhão de pessoas
e respectivas famílias. Como produzir grãos, raízes e proteína animal em
quantidade suficiente para alimentar adequadamente a todos?
Vários pesquisadores tem procurado uma
explicação lógica para entender como os construtores dos geoglifos tiveram
sucesso em sua empreitada trabalhando em um ambiente francamente desfavorável.
E uma das que me chamou mais a atenção foi a proposta por pesquisadores da
Universidade de New Hampshire, nos Estados Unidos, publicada em um artigo na
edição de abril da revista Journal of Biogeography. Nesse artigo, tendo como
base imagens de satélite e uma série de dados ambientais (temperatura,
precipitação, características dos solos, elevação, etc) eles modelaram a
distribuição presente das florestas com bambu (Guadua spp.) e dos geoglifos no
sudoeste da Amazônia e encontraram uma forte associação entre a localização dos
geoglifos e florestas dominadas pelo bambu. É importante observar que nesta
região as florestas com bambu são muito comuns nas regiões dos interflúvios,
popularmente conhecidas como terra-firme ou 'centro', na linguagem dos
extrativistas da região.
Sabe-se que as populações de bambu morrem de
forma sincrônica porque elas são clonais, ligadas por um complexo e extenso
sistema rizomatoso subterrâneo. Assim, quando esse rizoma morre, todos os
colmos de bambu ligados a ele morrem juntos. Um estudo recente determinou que a
longevidade dos bambuzais no sudoeste da Amazônia varia entre 27 e 28 anos e
que o tamanho médio dos mesmos é de 330 km², sendo que o maior deles ocupava
uma extensão de 2.750 km². Quando uma dessas populações de bambu morre, uma
grande quantidade de massa vegetal inflamável se deposita sobre o solo da
floresta. E se esse evento acontece no auge do período seco, a probabilidade de
realizar a queimada da floresta é elevada. Dessa forma, conforme sugerido pelos
pesquisadores da Universidade de New Hampshire, a eliminação da floresta é imensamente
facilitada.
De fato, as florestas com bambu são muito
diferentes de outras florestas na região. Elas apresentam-se estruturalmente
alteradas, especialmente nos estratos intermediários e no dossel, possuem menor
riqueza florística e densidade de árvores, e a redução da área basal arbórea
total varia entre 30 e 50%. A presença do bambu reduz em até 39% a biomassa
aérea da floresta e entre 30-50% o potencial de armazenamento de carbono. O
bambu também pode afetar o influxo de outras espécies arbóreas, enfraquecer a
habilidade competitiva das espécies com baixa capacidade de adaptação e reduzir
em quase 40% o número de espécies na amostra de um hectare. Inventários
realizados em florestas com bambu no Acre revelaram uma densidade mínima de 300
árvores/hectare (diâmetro a altura do peito igual ou superior a 10 cm),
enquanto nas florestas sem bambu esse número pode passar de 600/hectare.
Foto: Edison Caetano |
Pode-se, portanto, pensar que os construtores
dos geoglifos eram povos sistemáticos que monitoravam diversos bambuzais e que
tinham ideia aproximada de quando a morte dos mesmos iria acontecer. Com
paciência de sobra e um pouco de sorte, a morte de um ou outro bambuzal
eventualmente ocorria no período mais seco do ano. Nessa condição, a queimada
da floresta era facilitada e a eliminação da maior parte da vegetação era feita
pelo fogo, restando aos indígenas apenas a derrubada das árvores de maior
porte, que nas florestas com bambu são em número significativamente inferior ao
de outros tipos de florestas.
A queimada das florestas nas quais o bambu
morria colocava à disposição dos indígenas construtores dos geoglifos dezenas,
talvez centenas de hectares de solos favoráveis aos mais diversos cultivos
agrícolas visto que a queimada das plantas adiciona uma riqueza temporária ao
solo, permitindo o seu uso por 2-3 anos, nos moldes do sistema de derruba e
queima praticado pelos pequenos agricultores da atualidade. Nestas mesmas áreas
os geoglifos eram construídos.
Dessa forma, é possível pensar que os povos
construtores de geoglifos eram itinerantes (nômades) e essa itinerância era
guiada pela dinâmica da mortandade das populações de bambu. Da mesma forma é
possível supor que a extensão das clareiras abertas por este comportamento
oportunístico dos indígenas era sempre suficiente para suportar a população
existente no momento.
O que ainda permanece um mistério completo é
a razão para a construção de tantos geoglifos. Alguns pesquisadores tem
sugerido que eles tinham função de proteção, moradia e mesmo canais de
irrigação para a agricultura. Por ora, penso, como uns poucos, que os geoglifos
tinham um caráter sagrado. E me arrisco a especular que foram construídos como
forma de agradecimento aos deuses pela dádiva que a morte recorrente dos
bambuzais na região representava: a continuidade da sobrevivência desses povos.
_______________________________________________________________________
EVANDRO FERREIRA é acreano, nascido em Rio Branco, Pesquisador do
Inpa-Ac e do Parque Zoobotânico da UFAC. Mestrado em Botânica no Lehman
College, New York, USA, e Ph.D. em Botânica Sistemática pela City University of
New York (CUNY) & The New York Botanical Garden (NYBG).
quinta-feira, 29 de maio de 2014
SALVADOR: EXPOSIÇÃO DA ARTISTA ACREANA SIMONE BICHARA
Daniella Paula Oliveira
EXPOSIÇÃO CÍRCULOS FLORESTAIS
Simone Bichara
FOYER DO CINE TEATRO SESC CASA DO COMÉRCIO
SALVADOR – BA
20 DE MAIO A 30 DE JUNHO
Quando um fruto se apresenta maduro,
significa que ele já está no ponto de ser saboreado; mais que isso, ele mostra
para o quê veio ao mundo; qual é a sua real natureza e papel nesse misterioso
universo.
O singelo exemplo é para fazer analogia ao
atual momento do trabalho da artista plástica Simone Bichara. Maduro,
consciente, expansivo. Mais do que em qualquer outro momento da trajetória de
mais de vinte anos de vivência artística, Simone, talvez ainda mais sensível à
arte, à natureza, à vida em totalidade, apresenta-nos um conjunto de obra
expressivo e vigoroso: tal qual um fruto maduro.
Dessa vez, a exposição, que atualmente visita
a Bahia de todos os santos e de todas as artes, traz em suas nuances nacos não
somente da floresta amazônica, das peculiares raízes acreanas, da singularidade
cabocla, indígena e oriental da artista, como também uma apreciação repleta de
conquistas; como um raio de sol que descobre na matéria que ilumina a sua
própria luz.
A mostra, agora chamada de “Círculos
florestais”, cruzou o Oceano para embelezar a Europa, e em seguida, tal qual
raiz que se alimenta da terra mãe para fazer florescer a frondosa árvore,
instalou-se na galeria do Sesc Rio Branco, no Acre, para se nutrir novamente de
sua energia de mata, de folha úmida, de terra fértil, de semente germinada, de
povo com rugas solares, sorriso desconfiado e coração generoso – como só
naquele pedaço da Amazônia Brasileira se pode ter.
Agora, em Salvador (também pelo Sesc), essa
obra mágica, que perpassa a singeleza, a pureza, a liberdade à mais alta
sofisticação e beleza, tem também a missão de arar as areias e os mares de
Caymmi. Que toda a Bahia, tão sagrada e profana, possa provar da mística dessa
arte que é acreana em raiz e Cosmológica por natureza.
O trabalho de Simone
Bichara é uma oração de cores e formas, cujo milagre é a leitura que o
contemplar em cada coração produz. Que ao depararmos com ela, possamos nós
sagrar a nossa alma e vivenciar obras primas brasileiras que circulam para
encantar o mundo.
quarta-feira, 28 de maio de 2014
terça-feira, 27 de maio de 2014
O MITO DA PALAVRA SAUDADE
Prof.a Luísa Lessa
Linguagem e Cultura
Outro dia um estudante indagou-me sobre a palavra saudade. E disse ele: - é verdade que essa palavra só existe em língua portuguesa, professora? Então, vamos explicá-la para que se tenha ideia como nasceu e qual sentido possui.
Outro dia um estudante indagou-me sobre a palavra saudade. E disse ele: - é verdade que essa palavra só existe em língua portuguesa, professora? Então, vamos explicá-la para que se tenha ideia como nasceu e qual sentido possui.
A palavra saudade veio do latim solitas,
solitatis, por meio das formas arcaicas soedade, soidade e
suidade, sob a influência de saúde e saudar. Solitas,
em latim, significa “solidão”, “desamparo”, “abandono”, “deixação”, do que
resultam alguns dos significados que tem saudade: “desejo de um bem do
qual se está privado”; “lembrança nostálgica e, ao mesmo tempo, suave, de
pessoas ou coisas distantes ou extintas, acompanhada do desejo de tornar a
vê-las ou possuí-las”.
Em 30 de janeiro celebra-se o "Dia da Saudade".
Na gramática saudade é substantivo abstrato, tão abstrato que só existe
na língua portuguesa. Os outros idiomas têm dificuldade em traduzi-la ou
atribuir-lhe um significado preciso: Te extraño (castelhano), J'ai regret
(francês) e Ich vermisse dish (alemão). No inglês têm-se várias tentativas:
homesickness (equivalente a saudade de casa ou do país), longing e to miss
(sentir falta de uma pessoa), e nostalgia (nostalgia do passado, da infância).
Mas todas essas expressões estrangeiras não definem o sentimento
luso-brasileiro de saudade. São apenas tentativas de determinar esse
sentimento que sente os povos de cultura portuguesa. Assim, essa palavra
saudade não é apenas um obstáculo ou uma incompatibilidade da linguagem, mas é
principalmente uma característica cultural daqueles que falam a língua
portuguesa.
Agora, respondendo a indagação do estudante,
ao que parece, essa forma saudade, com o mesmo significado, não é
encontrada em outras línguas românicas. Quanto a ser exclusividade do português
não se pode afirmar, pois outras línguas podem expressar a mesma ideia de “saudade”,
embora com mais de uma palavra. É sabido que as línguas descrevem de forma
diferente a realidade e os sentimentos, que também podem não ser os mesmos nos
diversos povos. Cada povo vê os fenômenos do mundo da mesma forma que os
outros, mas “interpreta” tudo isso de forma diferente, conforme as estruturas
de sua cultura, ou seja, a concepção das coisas do mundo por um povo tem
relação com a sua cultura e língua e é, de certa forma, refletida nesta, tanto
no aspeto semântico quanto no gramatical.
No que toca ao uso de saudade, essa
palavra pode aparecer tanto no singular quanto no plural, conservando o mesmo
sentido, o que ocorre também com parabém, pêsame, felicitação,
felicidade e outras palavras, que pouco a pouco passaram a ser usadas no
plural, muito embora o singular, com o mesmo sentido, também seja correto. Essa
palavra portuguesa "saudade" foi considerada o sétimo vocábulo
estrangeiro mais difícil de traduzir, segundo uma votação realizada por mil
linguistas, levada a cabo pela agência londrina de tradução e interpretação
Today Translations.
Por tudo que aqui se diz, o fato de uma
língua não ter palavra que, por si mesma, possa traduzir-se por “saudade”
não significa que o povo que a fala não conheça tal sentimento: tal conceito
pode ser, nessa língua ou em outras, expresso por mais de uma palavra. Além
disso, um povo pode conceber a ideia de “saudade” em combinação com
outro(s) sentimento(s), do que resulta novo conceito, veiculado por uma ou mais
palavras.
Diz o professor Napoleão Mendes de Almeida no
verbete “Saudade, saudades” de seu Dicionário de Questões Vernáculas: “a
capacidade de receber impressões é uma só na humanidade; não existe rigidez
filológica capaz de obumbrar o sentimento de uma nação. Cremos ser procedimento
psicofilológico correto este de aceitar em outros idiomas, ainda que não se
conheçam, a existência de equivalências a palavra e a expressões nossas; que
orgulho é este de achar que outros povos não vivem?”
Finaliza-se o artigo
falando sobre esse caráter único da palavra saudade e da impossibilidade de a
traduzir em qualquer outra língua. Para isso, transcreve-se, aqui, um excerto
da obra “A Saudade Brasileira”, de Osvaldo Orico (1948), que diz assim:
“Nenhuma palavra traduz satisfatoriamente o amálgama de sentimentos que é a
saudade. Seria preciso nos outros países a elaboração de um conceito que também
amalgamasse um mundo de sentimentos em apenas um termo”. Ficamos, pois, com a
nossa “saudade”!
> Luísa Galvão Lessa – acreana de Tarauacá, é pós-Doutora em
Lexicologia e Lexicografia pela Université de Montréal, Canadá; Doutora em
Língua Portuguesa pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ; Membro da
Academia Brasileira de Filologia; Membro da Academia Acreana de Letras;
Pesquisadora PVNS – CAPES.
segunda-feira, 26 de maio de 2014
TARAUACÁ: ATO SOLENE DA ACADEMIA ACREANA DE LETRAS POR OCASIÃO DO CENTENÁRIO DE NASCIMENTO DO POETA J.G. DE ARAÚJO JORGE
TEATRO JOSÉ POTYGUARA RESPIROU
INTELECTUALIDADE NA ÚLTIMA SEXTA FEIRA
Reginaldo Palazzo
Sexta-feira passada (23) foi comemorado o centenário do escritor J. G. de Araújo Jorge no Teatro Municipal José Potyguara, com a presença dos ilustres imortais Clodomir Monteiro, Presidente da Academia Acreana de Letras, Robélia Fernandes Souza, Margarete Edul Prado S. Lopes, Moisés Diniz, Claudemir Mesquita e Álvaro Sobralino de A. Neto, todos com alguma ligação com Tarauacá.
Sr. Clodomir Monteiro Presidente da AAL- Academia Acreana de Letras |
Empresário João Maia - História Viva de Tarauacá |
Assim como na sua inauguração, a chuva chegou anunciando a presença espiritual do imortal poeta J. G. para lavar a alma dos que anseiam por um nível melhor na cultura literária tarauacaense. Todos esses fatos juntos só nos fizeram ratificar a importância de tal evento.
Que os jovens hoje em dia possam perpetuar seus antepassados conhecendo-os a partir de agora para que sejam comemorados no futuro os cento e cinquenta e duzentos anos de J. G e das outras pessoas que honraram o nome de Tarauacá.
Alguém já disse que conhece-se uma pessoa não pelos livros que ela leu, mas sim pelos livros que ela releu. A IMORTALIDADE CONTINUA.
Alguém já disse que conhece-se uma pessoa não pelos livros que ela leu, mas sim pelos livros que ela releu. A IMORTALIDADE CONTINUA.
AÇÃO DE GRAÇAS
W.H. Auden (1907-1973)
Percebi, pré-adolescente,
que bosques e urzais eram sacros:
profanas
eram as gentes.
E, mal me pus a poetar,
fui logo sentar-se aos pés de
Hardy e Thomas e Frost.
Veio
o amor e mudou tudo,
Alguém era, enfim, importante:
Yeats me ajudou, e também Graves.
Mas, súbito e sem
aviso,
despencou toda a Economia:
para
instruir-me havia Brecht.
Por fim, coisas
pavorosas
que Hitler e Stalin faziam
trouxeram-me
Deus à mente.
Como
estava certo do erro?
Por Kierkegaard, Williams e Lewis
fui
à fé reconduzido.
Agora, amadurecido
e vivendo em farta paisagem,
volta
a atrair-me a natureza.
De
que tutores preciso?
Bem, Horácio,
o melhor artífice,
que
se aquece em Tívoli, e
Goethe, devoto das pedras,
o qual nunca pôde provar
que
Newton extraviou a Ciência.
Ternamente
penso em Vós:
sem os quais jamais teria escrito
sequer
o pior de meus versos.
(tradução João Moura Jr.)
A THANKSGIVING
W. H. Auden
When pre-pubescent I felt
that moorlands and woodlands were sacred:
people seemed rather profane.
Thus, when I started to verse,
I presently sat at the feet of
Hardy and Thomas and Frost.
Falling in love altered that,
now Someone, at least, was important:
Yeats was a help, so was Graves.
Then, without warning, the whole
Economy suddenly crumbled:
there, to instruct me, was Brecht.
Finally, hair-raising things
that Hitler and Stalin were doing
forced me to think about God.
Why was I sure they were wrong?
Wild Kierkegaard, Williams and Lewis
guided me back to belief.
Now, as I mellow in years
and home in a bountiful landscape,
Nature allures me again.
Who are the tutors I need?
Well, Horace, adroitest of makers,
beeking in Tivoli, and
Goethe, devoted to stones,
who guessed that — he never could prove
Newton led science astray.
Fondly I ponder You all:
without You I couldn’t have managed
even my weakest of lines.
May 1973
AUDEN, W. H. Poemas. Seleção João Moura Jr;
tradução e introdução José Paulo Paes e João Moura Jr. São Paulo: Companhia das
Letras, 1986. p.189-191
domingo, 25 de maio de 2014
EM BUSCA DA POÉTICA DE J. G. DE ARAÚJO JORGE
Rogel Samuel
Faço aqui uma breve tentativa de ensaio
crítico sobre este grande poeta – e como “ensaio”, algo provisório, limitado a
alguns poemas de “Harpa submersa” (1952), para mim reveladores, indicadores daquela
arte do poeta acreano, no centenário de seu nascimento.
Até hoje, ele ainda é o poeta mais lido do
Brasil, porque popular, fácil, melódico, oral. De certo modo, o maior poeta para
o povo brasileiro. Famosíssimo mesmo hoje, tantos anos depois de sua morte
(1987), publicou 36 livros, um romance, 2 LPs, várias músicas, manteve programa
de rádio, é nome de rua no Rio de Janeiro e em várias cidades brasileiras. Suas
músicas foram gravadas por Orlando Silva, Nana Caymmi, Carlos Galhardo, Silvio
Caldas, Agnaldo Timóteo, etc.
Foi professor do Colégio Pedro II, no tempo
em que lá só chegavam grandes mestres.
Enfim, uma vida plena e gloriosa.
Morreu aos 73 anos.
A obra literária, sua poética, se confunde
com a sua ideologia política, que ele escreveu para povo, para o leitor
semialfabetizado, rural, proletário, operário, para as belas normalistas suburbanas,
que com elas queria comunicar-se, para as massas, deu voz às massas, como poeta.
Creio que foi o único parlamentar brasileiro
moderno que conseguiu eleger-se como poeta, com a fama de Poeta, com a
popularidade de seus livros, que eram publicados e vendidos aos milhares, mesmo
no interior brasileiro, em papel jornal pela Editora Vecchi. “Amo!” vendeu 80
mil. Ele foi o único poeta brasileiro que vendeu mais de um milhão de livros.
JG por volta dos 18/19 anos. Foto cedida por Rogel Samuel, retirada de livro do poeta. |
Nasceu em 20 de maio de 1914, em Tarauacá (que
na época devia ser uma pequena vila na beira do rio), no Acre.
Curso primário no Acre, secundário nos
Colégios Anglo-Americano e Pedro II do Rio.
Em 1931, ainda estudante, publicou um poema
no “Correio da Manhã”, depois transcrito no popular “Almanaque Bertand”, em
1932.
Em 1932, no Externato Pedro II, foi escolhido
“Príncipe dos Poetas”, saudado por Coelho Neto.
Estudou na Faculdade Nacional de Direito da
Universidade do Brasil.
Foi orador oficial do CACO, da União
Democrática Estudantil, precursora da UNE, da Associação Universitária.
Foi locutor e redator da Rádio Nacional, Tupi
e Eldorado.
Em Coimbra, recebeu o título de “estudante
honorário” e na Alemanha fez Curso de Extensão Cultural na Universidade de
Berlim.
Elegeu-se Deputado Federal em 1970, pela
Guanabara, reelegendo-se para o terceiro mandato em 1978.
Ocupou a vice-liderança do MDB e a
presidência da Comissão de Comunicação na Câmara dos Deputados.
Só não foi reeleito pela 4ª vez devido na uma
greve dos Correios, que (dizem) o deixou endividado e deprimido, morrendo anos
depois, em 1987, creio que em Nova Friburgo, no Rio de Janeiro.
Ele adorava Friburgo.
Politicamente, era homem de esquerda, desde estudante,
quando combateu o “Estado Novo”. Preso e perseguido várias vezes. Deixou de ser
orador de sua turma por estar detido na Vila Militar, em 1937.
Ficou famoso como Poeta do Povo e da
Mocidade, pela mensagem socialista da sua obra lírica.
Um dia, uma pessoa querendo me ofender, me
disse:
- Sabe quem gostou do seu livro?... A minha
empregada!
Isto não seria problema para o grande J. G.
de Araújo Jorge, que se dirigia à massa proletária!
Ele mesmo tem um livro que se chama “O poeta
na praça” (1981).
Sua poesia é oral, livre, espacial, fácil.
Como não compreender sua poética?
“O
diabo é que não sou complicado / sempre sei o que sinto, o que quero, / pelo
menos no momento que passa. // Por isso não tenho dificuldade em meu verso, / na
verdade, não tenho nenhum trabalho, / ele vem e me diz: aqui estou! / Pois bem:
que cante!” (“Harpa
Submersa” 1952 )
No seu “Canto Banal”, ele diz:
“Não te
quero dizer palavras difíceis e deformantes / nem inventar imagens que
embelezam talvez / mas que não reconheces. // Não tocarei música para os teus
ouvidos / nem criarei poesia para a tua imaginação, / nem nada esculpirei que
já não esteja em ti... // Nesse instante serei banal, / não respeitarei nem
mesmo o silêncio, / nada que nos eleve além do plano em que estamos, / não
serás estrela, não serás a nuvem, não serás a flor... // Quando chegares, e eu
tomar teu corpo em meus braços nervosos, te direi apenas: / - meu amor!” (“Harpa Submersa” 1952).
Ele também sabia dizer coisas como:
“Meu
coração, como uma harpa submersa, / jaz no fundo de que ignorado oceano? / Que
estranhas correntes arrancam de suas cordas / sons líquidos e redondos que se
perdem côncavos / antes de chegar à tona?... // Que peixes cegos tiram notas
imprevistas / e se vão tontos na ondulação do canto que despertam / entre
espectros calcários e verdes algas trementes? // Que músicas borbulhantes se
agitam, nascidas / de que movimentos sem origens, incognoscíveis, / marcando um
tempo morto e imensurável? // Meu coração é como uma harpa submersa, / sem
dedos, sem cordas, tocando sozinha / uma canção que desvenda os mistérios da
vida / para os peixes ouvirem.” (“Harpa Submersa” 1952).
Que significa Harpa Submersa?
Harpa
Submersa “/ Este retardatário gosto de pureza, / que me vem à boca do fundo
coração, / não sei se é tédio ou o sinal de alvoradas renascentes. / Na areia
branca onde a onda tenta apagar/ vestígios de pés e levar todas as conchas, / me
deixo à espera de outras vagas carregadas de conchas / ou de passos que tatuem
novas marcas / na epiderme do coração. / Pobre coração marinheiro, tão marcado,
/ de que canto obscuro desenterras imprevistamente / esta harpa cheia de algas
e de sons submersos?” (“Harpa Submersa” 1952).
A água é signo feminino. Ele sabe tocar o
âmago da mulher, tocar a sua Harpa, o seu ventre submerso.
O canto lhe vem à boca, do fundo do mar do
coração. O canto nasce imprevisto do obscuro das algas, do som submerso daquela
harpa cheia de algas, de pureza retardatária, do seu itinerário, das marcas na
areia do chão de sua vida.
Harpa Submersa significa “ventre submerso”.
Ele é o poeta do sentimento, do amor, do itinerário da vida. Ele era um “poeta
popular” sim. E a depender dos leitores,
o poeta da Harpa Submersa vai se tornar eterno.
Ele não entrou na Academia Brasileira, mas se
sentia “Imortal”:
“Me
sinto na academia, me sinto “imortal” / Não sei bem de que academia / nem sei a
que morte me refiro / sei que neste momento me sinto como as crianças / e os
animais / para quem a morte não é nem mesmo, / uma palavra que se lê.”
Por que deputado?
Por que o grande poeta do povo entrou na
política?
Por que foi um grande político de esquerda,
tão grande que morreu pobre e endividado?
Porque toda poesia é uma política. Política
entendida como a arte de mudar o mundo. Era no mundo grego a “arte da polis”. A
consciência comunicativa vigorava na polis
grega, entre os homens livres. Mas a poesia só manifesta “arte” na medida em que está a serviço da “polis”. O mundo poético é o
mundo da sociedade. A
poesia, tal como ele a praticou, resume uma grande força política em prol do
desenvolvimento espiritual dos povos.
O poeta dá voz aos povos, como um profeta, as
massas se identificam com ele.
Ele não era porta-voz da classe dominante, da
elite intelectual dominante, que combateu e por isso ela se vingou, apagando o
seu nome das histórias da literatura.
Mas ele não precisava disso.
Sua legitimação vinha do povo.
Ele fez política, fez política com a sua
poesia de amor. Quando canta: “meu
coração é como uma harpa submersa, / sem dedos, sem cordas, tocando sozinha /
uma canção que desvenda os mistérios da vida / para os peixes ouvirem” –
tais peixes atuam, nadam no subconsciente revolucionário das massas
proletárias.
Poucos como ele sabem que a poesia pode mudar
o mundo.
Por isso ele não consta das histórias literárias
e a crítica o ignora.
O seu público é outro: JG escreveu para a
massa proletária dos “homens tristes” (de que ele sempre fala), para o
verdadeiro Brasil operário.
Hoje ele seria aceito?
Não sei. Talvez. Mas não pela mídia, que a
elite dominante continua a mesma e mais entrincheirada. O Brasil está cheio de
grandes poetas esquecidos da mídia e da crítica.
Mesmo assim JG colecionou prêmios acadêmicos,
como o “Prêmio Raul de Leoni”, para o melhor livro de poesia do ano, prêmio
oferecido pela Academia Carioca de Letras, com o livro “Eterno motivo”, em 1943.
E até agora ele vende muito: seus livros são
os primeiros a vender nos sebos, quando aparecem.
Suas obras estão quase todas na Internet.
Mas em Tarauacá, onde nasceu o poeta, não
existe nenhuma livraria...
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ROGEL SAMUEL é doutor em Letras e professor
aposentado da Pós-Graduação da UFRJ. Poeta, romancista, cronista,
webjornalista. É autor, entre outros, de O Amante das Amazonas (2005, 2a
edição), Novo Manual de Teoria Literária
(2013, 6a reimpressão); Teatro
Amazonas (2012); e Modernas Teorias
Literárias: breve introdução (2014). Visite a página pessoal do autor: literaturarogelsamuel.blogspot.com