segunda-feira, 30 de junho de 2014

A LUZ QUE SE APAGOU

Antonio Gramsci (1891-1937)


Recordo um pobre rapaz que não pôde frequentar os cultos bancos das escolas de sua cidade por ser doente e se preparou sozinho para o exame, ai de mim que modesto, de liberação de uma obrigação moral. Mas quando, insignificante, se apresentou ao mestre, ao representante da ciência oficial, para lhe entregar o pedido sublinhado, para impressionar, na mais bela caligrafia; aquele, olhando através de seus óculos científicos, perguntou carrancudo: “Sim, está bem, mas acreditas que seja assim fácil o exame? Conheces, por exemplo, os 84 artigos da Constituição?” E o pobre rapaz, esmagado por aquela pergunta, se pôs a tremer, chorando desconsoladamente voltou para casa e naquele momento não quis fazer o exame.

Por que me aparece na memória esta anedota no momento em que gostaria de recordar para os leitores do “Grido” a figura de Renato Serra? Porque muitos mestres me parece são como aquele que recordei acima e, a eles, Serra deu uma lição de humanidade; nisso ele verdadeiramente continuou Francesco De Sanctis, o maior crítico que a Europa jamais teve.

Pensem naquilo que na Idade Média representa o movimento franciscano diante do teologismo doutrinário da Escolástica. A teologia era pão dos anjos, não dos míseros mortais; e não apenas tinha invadido todas as manifestações religiosas, mas também a pregação ao povo: Deus desaparecia por trás dos silogismos, resplandecia distante ou pesava sobre as consciências como alguma coisa de gigantesco, de esmagador. O intelecto havia matado o sentimento, a reflexão cuidadosa tinha estrangulado o ímpeto da fé. Veio São Francisco, alma humilde, descuidada, Espírito simples, soprou todos os invólucros de papel, pergaminhos que haviam distanciado Deus dos homens e fez renascer em cada alma a divina embriaguez. Assim fizeram De Sanctis e Serra com a poesia. A poesia tinha se tornado privativa dos professores: Dante, por exemplo, foi aquele que superou os limites humanos ou os seus livros se apresentavam circundados de tramas rígidas de espinhos eruditos e de sentinelas que gritavam o “quem vem lá?” a cada profano que ousasse aproximar-se muito; assim se formou na maioria a convicção que Dante seja como uma torre impenetrável aos não iniciados. De Sanctis não é desses: não pergunta a um que tem a boa vontade se conhece os 84 artigos da Constituição, ao contrário, se vê uma face mirrada, se vê um humilde voltar atrás quase espantado de tanto ousar o aproxima, diria que quase o toma pelo braço, com uma expressão toda napolitana, o guia e lhe diz: “Veja, aquilo que acreditavas difícil não o é ou não vale a pena ser lido; salte estes obstáculos, deixe que outros maxilares se façam sangrar as gengivas a roer esses cardos”. Renato Serra mostra que os professores, os críticos de profissão, tomaram por arte aquilo que era pura e simples tapeçaria. Esses dois homens foram verdadeiramente mestres, como entendiam os gregos, isto é, mistagogos, que iniciaram aos mistérios mostrando que esses mistérios são construções vazias dos literatos e que tudo é claro e límpido para quem tem os olhos puros e vê a luz como cor e não como vibração de íons e elétrons. Tais mestres são colaboradores da poesia, leitores da poesia. Cada um de seus ensaios é uma nova luz que se acende para nós. Sentimo-nos como absorvidos em um encanto. O mundo que nos circunda não chega mais aos nossos sentidos, não os estimula a reagir. Não existe outra obra de arte que esta: nós e o mestre que nos guia. A nossa humanidade está toda tensa ao belo e somente a este sente. A tomada de posse é rápida, imediata. É um homem que se aproxima de um outro homem e o sente reviver em si como tal e depois como criador de beleza. A palavra não é mais elemento gramatical a dividir em regras e em esquemas livrescos; é um som, é uma nota de um período musical que se solta, se recupera, se amplia em leves espirais, árias que nos conquistam o espírito e o fazem vibrar em uníssono com o espírito do autor. As imagens vivem uma vida própria, estimulam as nossas faculdades criativas, agitam todo o mundo das nossas experiências, despertam ecos distantes de coisas passadas que se renovam e se afirmam vigorosas no ato de nossa leitura. Nós vibramos em todas as fibras do nosso ser, nos sentimos purificados por esta fusão com um outro ser que nos sacudiu e nos fez participar de sua vida, que nos deu a ilusão de sermos nós os criadores daquelas harmonias, tanto que as sentimos nossas e sentimos que jamais cessarão de fazer parte do nosso espírito.

Depois de uma dessas lições nos sentimos cansados, quase saciados de beleza. Mas o mago nos retoma nas suas redes. Um seu novo escrito nos renova e nos libera de qualquer recordação do passado, nos reconduz puros a uma outra nascente e se repete em nós, já espertos, a nova experiência. O nosso gosto se refina e parece que os nossos nervos se aguçam para colher também as mínimas vibrações. Sentimos que também sozinhos, sem o mestre, podemos aproximar-nos da obra de arte com mais frescor, com mais sinceridade. Quantos véus caídos, quantos ídolos quebrados, quantos valores invertidos. Verdades que antes não conseguíamos compreender agora, sem nos apercebermos, nos sobem espontaneamente aos lábios. Recordamos os ensinamentos de Leonardo aos seus discípulos: “que observassem também as manchas e os mofos dos muros porque neles poderia haver combinações de cores e de luz mais perfeitas do que aquelas que o próprio homem pode criar” e nos parece dizer coisas que antes não ouvíamos. Cessa a nossa adoração pelas obras engenhosas, arquitetonicamente complexas, e cuidamos mais às ligações sonoras que existem entre palavra e palavra, entre período e período. A exclamação de um carroceiro reveste-se então, para nós, de tanta poesia quanto um verso de Dante. Não caímos no exagero ridículo de afirmar que o carroceiro é tão poeta quanto Dante, mas estamos contentes em sentir em nós a possibilidade de ouvir a beleza onde quer que ela esteja e sentir-nos liberados das proibições e preconceitos escolásticos que nos faziam medir a poesia a metro cúbico e a quilogramas de papel impresso.

Mas agora não podemos esperar mais nada de Renato Serra. A guerra o esmagou, a guerra sobre a qual ele havia escrito com palavras tão puras, com conceitos tão ricos de visões novas e de sensações novas. Uma nova humanidade vibrava nele; era o homem novo dos nossos tempos, que tanto ainda teria podido dizer-nos e ensinar-nos. Mas a sua luz se apagou e nós não vemos ainda quem, para nós, poderá substituí-la.

(La luce che si è spenta, 20/11/1915)
Tradução Anita Helena Schlesener

MARÇAL, Jairo (org.). Antologia de Textos Filosóficos. Curitiba: SEED-PR, 2009. p.289-292

domingo, 29 de junho de 2014

AMAZÔNIA (filme 2014)

Belíssimo filme que conta a jornada de um macaco-prego em plena Amazônia selvagem! A trama, coescrita pelo brasileiro Luiz Bolognesi (Uma História de Amor e Fúria) e dirigida por Thierry Ragobert é SENSACIONAL! Belíssimas imagens reforçam toda a grandeza de nossa biodiversidade onde a flora e fauna são mostradas em todo seu esplendor. É o Brasil visto de uma maneira bem peculiar, numa ousada produção onde os animais e a natureza são os verdadeiros astros. Belíssimo e inspirador. Por Juliano O.
Sob o olhar do espectador, a floresta verde, suas riquezas e belezas são apresentadas pela visão de um macaco prego. A propósito, a interpretação do macaco em cena é digna de um grande ator, demonstrando talento para expressar surpresas, alegrias, medos e descobertas em meio à selva amazônica. Um elenco animal muito bem selecionado! A belíssima fotografia traz um ar de magia e encanto sobre a rica diversidade da fauna e flora, onde durante a jornada do macaquinho, muitos animais e perigos se fazem presentes. No fim de tudo, fica o registro de um filme muito original e bem produzido, que sem palavras ou legendas aposta justamente na simplicidade para expor a riqueza e beleza de um dos mais lindos locais do planeta. Por Ricardo Brandes

sexta-feira, 27 de junho de 2014

AO POETA ACREANO J. G. DE ARAÚJO JORGE

Océlio de Medeiros (1917-2008)


Lembrei-me do teu pai ao vir à sua cidade
que para mim se abriu como um baú antigo:
li poeirentos jornais da sua mocidade
e me contou sua saga o mais dileto amigo...

Viveu sob os padrões da velha austeridade,
foi senhor da justiça e após foi seu mendigo:
a infância no teu berço não te dá saudade
e as angústias paternas ainda as tem contigo...

Foi aqui que nasceu teu coração de esteta
naquele acre começo ao sol do Acre inclemente
que exilando o teu pai a ti te fez poeta!

Se das mágoas paternas flora a tua semente,
nas líricas corolas do teu amor de asceta
retribuis com poesia a ingratidão da gente!...

Tarauacá, 1972


MEDEIROS, Océlio de. Jamaxi: a poesia do Acre em três tempos. Rio de Janeiro: Arquimedes Edições, 1979. p.127

quinta-feira, 26 de junho de 2014

NOVA DANÇA

Luísa Lessa

Escrevo num grito de dor,
Com o coração partido, ferido, sangrado.
Escrevo versos soltos, frases d’alma traída,
Enganada por lâmina de aço em furor.

Escrevo para expulsar da memória a ingratidão,
Demolir o agito do coração.
Escrevo com o sangue quente, consciente,
O peito limpo, a alma rumo ao oriente.

Escrevo para afugentar a tolice,
De acreditar em perdulário amor.
Escrevo tal guerreiro, pensador,
Ser idealista convicto de labor.

Escrevo porque o poema é enganador,
Esconde a voz, a alma, a mente.
Escrevo para florescer nova semente,
Em plantio desbravador.

Escrevo pelo viver sagrado,
De poeta versejador.
Escrevo pela fé e esperança,
No viver feliz em segurança.

Escrevo para um novo caminho,
Esquecer o engano daninho.
Escrevo pelo passo da dança,
Do sonho, da ponte ao novo ninho.

Escrevo para fazer o novo,
Esquecer a tempestade avassaladora.
Escrevo para um tempo vigoroso,
Pleno de amor viçoso.

Escrevo para dizer adeus,
Agora para o todo e sempre.
Escrevo de alma serena,
Raiz de vida e fonte suprema.

Escrevo para a despedida minha,
Dizer-te adeus sem medida.
Escrevo para falar da falsidade,
Do engano e da maldade.

Escrevo para dizer FIM,
Ao ser fingidor.
Escrevo a ti somente,
Num adeus sem o anjo Serafim.


* Luísa Galvão Lessa é da Academia Brasileira de Filologia e da Academia Acreana de Letras. Poema publicado em sua página LINGUAGEM E CULTURA.
* Fotografia em Curiosos No Mundo

quarta-feira, 25 de junho de 2014

O QUE É UM POETA

Júlia da Costa (1844-1911)


Sabes o que é um poeta, visto pelo lado triste da vida?

Escuta:

Um poeta é um objeto indefinível que se apresenta de improviso no mundo dos cálculos, a falar uma linguagem totalmente estranha, para os homens em cuja fronte só se aninha a sede do ouro e da vaidade.

É um meteoro desconhecido cujo brilhar veloz, é visto por aqueles que mais presos ao céu do que a terra, tem em si mais espírito que matéria.

Um poeta, é um problema, um objeto sem valia para a moça que mais presa aos seus enfeites, do que ao cultivo de seu espírito, desconhece esses arroubos da alma, esses melodiosos acordes do pensamento que se espraia nos mundos do infinito.

Um poeta, é nada para o homem sem prestígios, para a jovem sem cultura, para esse povo rude que encara tudo pelo lado do interesse, e que só tem em si uma ideia: Ouro! Enriquecer, para deslumbrar o mundo com suas riquezas. Para estes, o poeta é nada, mas, para aquele que encara a vida pelo lado espiritual, para aqueles (digo) o poeta é tudo.
..................................................

À tarde quando os ventos perfumados do crepúsculo embalam as folhas, quando a terra ébria de amor de volúpia estremece pensativa, o poeta despertando vagaroso, toma sua lira harmoniosa para encantar àqueles, que como eles, sabem sentir o efeito mágico do belo e do sublime! Sem pensamento passando de súbito pelo mundo dos cálculos sociais, se espraia, pelo infinito procurando nele uma alma que o compreenda! Às vezes caminha anos inteiros; ilude-se com o brilho de um espírito todo superficial, de uma alma toda de lodo, nunca encontra um coração que tenha como o seu, poemas de um amor imenso! Cansa-se embalde! é tudo matéria, cálculo, perfídia! Seu talento enfraquece, e por fim abraça-se moribundo à rudez do século! Terrível decepção! Infelizmente é esta a sorte de quase todos os gênios...

Eis aqui o poeta, visto pelo lado triste da vida e admirado só de passagem por seus irmãos de sorte. Eis aqui o poeta, visto de improviso pelos milionários do poder cuja posição balofa e vaidade louca só excitam o riso daqueles que os desprezam! Agora escuta; é longe do mundo, na solidão melancólica dos campos, entre Deus e a natureza, que vive o poeta, rodeado dos prazeres inocentes da vida.

Cantam os pássaros, e as brisas das florestas ciciam na ramagem do arvoredo um cântico imenso que se eleva até o Criador. Rumoreja a fonte do deserto, e seu rumorejar saudoso lembra a vida até o ínfimo inseto que volteja pela terra!

O poeta aí vive: ei-lo que acorda e encara a natureza!

Oh! Sonhos felizes do futuro! O poeta é venturoso porque prefere ao bulício das cidades, o silêncio das campinas! Longe da turba invejosa que não podendo imitá-lo, tinha sempre um sorriso de desdém para dar-lhe ele vive só com Deus e a natureza! Que lhe importa a glória?

O bafo da inveja quase sempre destrói a felicidade do coração. 


*Carta XXXI da poeta paranaense Júlia da Costa a Benjamin Carvoliva, poeta por quem nutriu durante toda a vida grande paixão.

COSTA, Júlia da. Poesia. Org. Zahide Lupinacci Muzart. Curitiba: Imprensa Oficial do Paraná, 2001. p.370-371

SABER, SÓ UM POUCO

Friedrich Hölderlin (1770-1843)


Saber, só um pouco, mas muita alegria:
     Eis o que é dado a nós, mortais...
..............................................................
Por que, belo Sol, não me basta dizer,
     Flor das minhas flores, num dia de maio,
     Teu nome? Sei de algo mais alto?

Se eu pudesse ser como as crianças são!
Como o rouxinol, cantar numa canção
     Minha alegria descuidosa!


ZU WISSEN WENIG
Friedrich Hölderlin (1770-1843)

Zu wissen wenig, aber der Freude viel
Ist Sterblichen gegeben,
Warum, o schöne Sonne, genuegt mir nicht
Du Bluete meiner Blueten, am Maitag dich
Zu nennen? weiss ich hoehers denn?

O dass ich lieber waere, wie kinder sind!
Dass ich, wie Nachtigallen, ein sorglos Lied
Von meiner Wonne saenge!


HÖLDERLIN, Friedrich. Poemas. Seleção, tradução, introdução e notas José Paulo Paes. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. p.199

MORRE ROSE MARIE MURARO

Rogel Samuel

Conheci Rose através de Nathanael Caixeiro, tradutor da Vozes, já falecido.

Fomos amigos durante muitos anos, viajamos juntos, éramos parceiros de eventos e jantares.

Conheci a sua família e ela conheceu a minha. Minha mãe gostava muito dela. Jogávamos cartas.

Devo a ela a publicação do meu “Manual de teoria literária” (que teve 17 edições), e de “Literatura básica”.

Graças a ela conheci pessoas: Frei Beto, Boff, Djanira, Ligia Fagundes, etc. Assim conheci Umberto Eco, com quem passamos a noite toda na varanda da casa de Mônica Rector discutindo a construção de romance... Ele se estava preparando para escrever “O nome da rosa”.

Rose era surpreendente, superdotada, superinteligente. Mas simples. Escritora extraordinária. Ativista. Humana e corajosa. Bateu de frente com a ditadura. Teve livros cassados. Eu presenciei Rose espinafrando de cara um ministro da ditadura, na frente de todo mundo, num evento dentro da revista Manchete (ele logo se afastou, escondendo-se na multidão).

Mesmo quase cega, ela viajava constantemente, proferindo palestras, fazendo conferências doutrinárias.

Podemos dizer que, além de feminista, ela era uma pensadora original, tinha idéias próprias e praticamente criou o feminismo no Brasil. Quando diante de algum medalhão internacional famoso, ela o enfrentava.

Deu aulas em Universidades americanas, onde era muito respeitada.

Seus artigos demandam publicação.

Mas foi Rose mulher bem humorada e vitoriosa.

Em plena ditadura, eu me formei politicamente ouvindo Rose Marie Muraro.


* Artigo publicado na página de Rogel Samuel.

sábado, 21 de junho de 2014

quinta-feira, 19 de junho de 2014

POETA JORGE TUFIC



Fazemos votos de boa recuperação ao poeta Jorge Tufic, o maior poeta acreano vivo, que reside em Fortaleza (CE), e que outro dia sofreu uma queda, onde acabou fraturando o braço. No próximo 13 de agosto, Tufic completará 84 anos. É acreano de Sena Madureira, e autor do Hino do Estado do Amazonas.


quarta-feira, 18 de junho de 2014

JOSENIR MELO: AVENTURA NO AR

Equipe composta por Josenir Melo (piloto), Whidykennedy Melo (apoio em solo), Luiz Carlos Melo (piloto assistente), em Cross Country de Rio Branco a Cruzeiro do Sul, de paramotor. Uma produção para a TV Gazeta de Rio Branco.

A CANÇÃO DO TÉDIO

Guilherme de Almeida (1890-1969)


Anda uma estrela pelo céu,
sozinha, arrastando um véu
de viúva.
– É a chuva.

Rola um soluço leve no ar,
bem longo no seu rolar,
bem lento.
– É o vento.

Perpassa o passo oco de algum
fantasma, quieto como um
segredo.
– É o medo.

Batem à porta. Abro. Quem é?
Uma alta sombra, de pé,
se eleva.
– É a treva.

Mas, desde então, alguém está
comigo. É inútil. Não há
remédio.
– É o tédio. 


ALMEIDA, Guilherme de. Encantamento, Acaso, Você: seguidos dos haicais completos. Campinas: Unicamp, 2002. p.159

segunda-feira, 16 de junho de 2014

SOLIDÃO CÓSMICA

Inês Lacerda Araújo


A Terra vista das aeronaves leva a pensar na dimensão infinita, e em um planeta solitário. Nossa perspectiva é terrestre, mas nossos sonhos são estelares.

As metáforas filosóficas e religiosas habituais remetem à caverna humana em contraste com os deuses no Olimpo, no paraíso, no além. Rastejar se opõe a voar, alçar as alturas como bem superior. O que nos leva a sonhar assim, a sondar o universo e pleitear que não estamos sozinhos?

Quem assistiu ao filme Gravidade deve ter sentido que desprender-se da Terra não faz parte de nossa natureza, a volta da personagem principal destaca o solo, o contato com a areia, nossa marca em nosso chão.
Solta no espaço

O retorno feliz
Entretanto, deuses, anjos, seres extraterrestres povoam nosso imaginário. Basta entrar em uma igreja, em um templo, que prêmio eterno ou castigo eterno dão sentido à alma imortal, desde Platão e antes dele, até o cristianismo e outras fés religiosas.

À parte disso, há a hipótese para alguns, cientistas inclusive, de que é impossível não haver vida inteligente em outros planetas e que tais seres possuem artefatos capazes de os trazerem ao nosso planeta! E vão além, certos relatos de abdução, são levados à sério. Curitiba sediou há semanas atrás um encontro em que esses relatos servem para confirmar a existência de ovnis. Um deles é o de uma família abduzida juntamente com o fusca 72! Outra pessoa afirma que após ser abduzida, voltou com um chip implantado em seu dedão do pé direito!

***

Evidentemente a imaginação humana vai longe, fica interessante e inteligente em filmes e na literatura de ficção científica: Jornada nas Estrelas, Júlio Verne, Isaac Asimov, H. G. Wells, Ray Bradbury, entre outros.

Mas nenhum deles ultrapassa o que a condição humana enseja, permite, cria: linguagem, sensações de ver, ouvir, criar veículos, tecnologias, mover-se, transportar-se, guerrear, etc, etc.

É possível que em outra ou outras galáxias planetas semelhantes à Terra tenham evoluído em condições semelhantes às nossas, a ponto de construir naves espaciais, comunicar-se, sequestrar pessoas com suas naves? E o que estariam esperando que ainda não invadiram a Terra? Apenas espreitam para dominar o planeta? Por que isso já não ocorreu?

Quando perguntamos o que querem conosco, essa dúvida por ventura não seria uma questão que só nós levantamos?

Por mais estranho que seja o ET, ele terá corpo, ou será uma espécie de ser gelatinoso, uma bolha, de todo modo representa uma ameaça aos seres humanos.

Ora, essas características são simplesmente nossas, elas não passam de projeções da condição humana. Não podemos sair de nosso corpo, de nossa linguagem, de nossos símbolos, de nossa cultura, enfim, de nosso modo de ser.

Buscar provas e evidências, é também uma necessidade humana. Além disso, que podemos saber?

Nada sem os nossos meios.


INÊS LACERDA ARAÚJO - filósofa, escritora e professora aposentada da UFPR e PUCPR.

sexta-feira, 13 de junho de 2014

AQUELA CARTA

Guilherme de Almeida (1890-1969)

                                                                                  A L.S.A.


Aquela carta cor-de-rosa, que me veio
da mão sentimental de uma desconhecida,
tornou-me tão feliz e deixou-me tão cheio
de um desejo tão bom de achar boa esta vida!

Chegou pelo Natal. Eu não sei o que existe
nas festas de Natal de tão simples e humano,
que tudo me enternece... E eu estava tão triste!
Foi ela que Papai Noel me trouxe este ano.

Aquela carta! Quanta coisa ela contou-me!
que há uma mulher que pensa em mim nas horas quietas
e que sabe de cor meus versos e meu nome...
Mas, ainda existe alguém que acredite nos poetas?

Ainda existe quem sinta essa necessidade
De sofrer um pouquinho a dor dos outros? Ainda
há quem ache que, enquanto houver lágrimas, há de
haver poetas na terra – e a terra há de ser linda?

Ainda há quem não hesite em ferir a mão langue
para plantar um lírio entre cardos perversos?
E, ferida, regar com gotas do seu sangue
o pobre coração de um homem que faz versos?...

Ignorada, distante mão, muito obrigado!
Tu me fizeste crer, suave e desconhecida,
numa coisa em que eu nunca havia acreditado:
– que este mundo ainda é bom e ainda é boa esta vida!


ALMEIDA, Guilherme de. Encantamento, Acaso, Você: seguidos dos haicais completos. Campinas: Unicamp, 2002. p.138-139

quarta-feira, 11 de junho de 2014

“CANTIQUE D’AMOUR”

Guilherme de Almeida (1890-1969)


Amo pela alegria infinita de amar:
pela promessa de felicidade
que há de sempre florir no teu sorriso, que há de
eternamente arder no teu olhar...

Amo pela alegria
luminosa do amor: do amor que é como um sol
para o qual eu me volto todo, cada dia,
hipnotizado como um girassol...

Amo – e este amor
é toda a esplêndida, a única alegria
da minha vida...

E se algum dia
tu me vires chorando, partido de dor,
como uma pobre coisa desgraçada,
como uma triste flor esmigalhada
entre os teus dedos, meu amor,
não enxugues meu pranto! Ri! Ri teu sorriso
de ouro! Sacode tua vida como um guizo
sobre a minha!

E, depois, deixa-me só, pensando
que é de alegria que eu estou chorando!


ALMEIDA, Guilherme de. Encantamento, Acaso, Você: seguidos dos haicais completos. Campinas: Unicamp, 2002. p.86