Antonio Gramsci (1891-1937)
Recordo um pobre rapaz que não
pôde frequentar os cultos bancos das escolas de sua cidade por ser doente e se
preparou sozinho para o exame, ai de mim que modesto, de liberação de uma
obrigação moral. Mas quando, insignificante, se apresentou ao mestre, ao
representante da ciência oficial, para lhe entregar o pedido sublinhado, para
impressionar, na mais bela caligrafia; aquele, olhando através de seus óculos
científicos, perguntou carrancudo: “Sim, está bem, mas acreditas que seja assim
fácil o exame? Conheces, por exemplo, os 84 artigos da Constituição?” E o pobre
rapaz, esmagado por aquela pergunta, se pôs a tremer, chorando desconsoladamente
voltou para casa e naquele momento não quis fazer o exame.
Por que me aparece na memória esta
anedota no momento em
que gostaria de recordar para os leitores do “Grido”
a figura de Renato Serra? Porque muitos mestres me parece são como aquele que
recordei acima e, a eles, Serra deu uma lição de humanidade; nisso ele verdadeiramente
continuou Francesco De Sanctis, o maior crítico que a Europa jamais teve.
Pensem naquilo que na Idade Média
representa o movimento franciscano diante do teologismo doutrinário da
Escolástica. A teologia era pão dos anjos, não dos míseros mortais; e não
apenas tinha invadido todas as manifestações religiosas, mas também a pregação
ao povo: Deus desaparecia por trás dos silogismos, resplandecia distante ou
pesava sobre as consciências como alguma coisa de gigantesco, de esmagador. O intelecto
havia matado o sentimento, a reflexão cuidadosa tinha estrangulado o ímpeto da
fé. Veio São Francisco, alma humilde, descuidada, Espírito simples, soprou
todos os invólucros de papel, pergaminhos que haviam distanciado Deus dos
homens e fez renascer em cada alma a divina embriaguez. Assim fizeram De
Sanctis e Serra com a poesia. A poesia tinha se tornado privativa dos
professores: Dante, por exemplo, foi aquele que superou os limites humanos ou
os seus livros se apresentavam circundados de tramas rígidas de espinhos
eruditos e de sentinelas que gritavam o “quem vem lá?” a cada profano que
ousasse aproximar-se muito; assim se formou na maioria a convicção que Dante seja
como uma torre impenetrável aos não iniciados. De Sanctis não é desses: não pergunta a um que tem a boa vontade
se conhece os 84 artigos da Constituição, ao contrário, se vê uma face mirrada,
se vê um humilde voltar atrás quase espantado de tanto ousar o aproxima, diria
que quase o toma pelo braço, com uma expressão toda napolitana, o guia e lhe
diz: “Veja, aquilo que acreditavas difícil não o é ou não vale a pena ser lido;
salte estes obstáculos, deixe que outros maxilares se façam sangrar as gengivas
a roer esses cardos”. Renato Serra mostra que os professores, os críticos de
profissão, tomaram por arte aquilo que era pura e simples tapeçaria. Esses dois
homens foram verdadeiramente mestres, como entendiam os gregos, isto é,
mistagogos, que iniciaram aos mistérios mostrando que esses mistérios são
construções vazias dos literatos e que tudo é claro e límpido para quem tem os
olhos puros e vê a luz como cor e não como vibração de íons e elétrons. Tais
mestres são colaboradores da poesia, leitores da poesia. Cada um de seus
ensaios é uma nova luz que se acende para nós. Sentimo-nos como absorvidos em
um encanto. O mundo que nos circunda não chega mais aos nossos sentidos, não os
estimula a reagir. Não existe outra obra de arte que esta: nós e o mestre que
nos guia. A nossa humanidade está toda tensa ao belo e somente a este sente. A
tomada de posse é rápida, imediata. É um homem que se aproxima de um outro
homem e o sente reviver em si como tal e depois como criador de beleza. A
palavra não é mais elemento gramatical a dividir em regras e em esquemas
livrescos; é um som, é uma nota de um período musical que se solta, se
recupera, se amplia em leves espirais, árias que nos conquistam o espírito e o
fazem vibrar em uníssono com o espírito do autor. As imagens vivem uma vida
própria, estimulam as nossas faculdades criativas, agitam todo o mundo das
nossas experiências, despertam ecos distantes de coisas passadas que se renovam
e se afirmam vigorosas no ato de nossa leitura. Nós vibramos em todas as fibras
do nosso ser, nos sentimos purificados por esta fusão com um outro ser que nos
sacudiu e nos fez participar de sua vida, que nos deu a ilusão de sermos nós os
criadores daquelas harmonias, tanto que as sentimos nossas e sentimos que
jamais cessarão de fazer parte do nosso espírito.
Depois de uma dessas lições nos
sentimos cansados, quase saciados de beleza. Mas o mago nos retoma nas suas
redes. Um seu novo escrito nos renova e nos libera de qualquer recordação do
passado, nos reconduz puros a uma outra nascente e se repete em nós, já
espertos, a nova experiência. O nosso gosto se refina e parece que os nossos
nervos se aguçam para colher também as mínimas vibrações. Sentimos que também sozinhos,
sem o mestre, podemos aproximar-nos da obra de arte com mais frescor, com mais
sinceridade. Quantos véus caídos, quantos ídolos quebrados, quantos valores
invertidos. Verdades que antes não conseguíamos compreender agora, sem nos
apercebermos, nos sobem espontaneamente aos lábios. Recordamos os ensinamentos
de Leonardo aos seus discípulos: “que observassem também as manchas e os mofos dos
muros porque neles poderia haver combinações de cores e de luz mais perfeitas
do que aquelas que o próprio homem pode criar” e nos parece dizer coisas que
antes não ouvíamos. Cessa a nossa adoração pelas obras engenhosas,
arquitetonicamente complexas, e cuidamos mais às ligações sonoras que existem
entre palavra e palavra, entre período e período. A exclamação de um carroceiro
reveste-se então, para nós, de tanta poesia quanto um verso de Dante. Não
caímos no exagero ridículo de afirmar que o carroceiro é tão poeta quanto
Dante, mas estamos contentes em sentir em nós a possibilidade de ouvir a beleza
onde quer que ela esteja e sentir-nos liberados das proibições e preconceitos
escolásticos que nos faziam medir a poesia a metro cúbico e a quilogramas de
papel impresso.
Mas agora não podemos esperar
mais nada de Renato Serra. A guerra o esmagou, a guerra sobre a qual ele havia
escrito com palavras tão puras, com conceitos tão ricos de visões novas e de
sensações novas. Uma nova humanidade vibrava nele; era o homem novo dos nossos
tempos, que tanto ainda teria podido dizer-nos e ensinar-nos. Mas a sua luz se
apagou e nós não vemos ainda quem, para nós, poderá substituí-la.
(La
luce che si è spenta, 20/11/1915)
Tradução Anita Helena Schlesener
MARÇAL, Jairo (org.). Antologia de Textos
Filosóficos. Curitiba: SEED-PR, 2009. p.289-292