segunda-feira, 23 de março de 2015

HOMENS E RIOS SE PARECEM

Uma narrativa produzida pela Agência de Notícias do Acre sobre a relação do homem com os rios, na Amazônia, a partir do artigo “Homens e rios se parecem!”, do jornalista Elson Martins.

sábado, 21 de março de 2015

TRADADO PÉSSIMO DO TRÁGICO

João Veras – 18/03/15

“A palavra foi dada ao homem para que ele esconda seu pensamento.”
(Malagrida)


Todo mundo quer acabar com o autoritarismo
Mas ninguém quer deixar de ser autoritário
- em alguma circunstância

Todo mundo quer acabar com a corrupção
Mas ninguém quer deixar de ser corrupto
- em alguma oportunidade

Todo mundo quer acabar com o racismo
Mas ninguém quer deixar de ser racista
- em alguma deixa

Todo mundo quer acabar com a violência
Mas ninguém quer deixar de ser violento
- em alguma situação

Todo mundo quer acabar com a mentira
Mas ninguém quer deixar de mentir
- em algum ensejo

Todo mundo quer acabar com a maldade
Mas ninguém quer deixar de ser mau
- em alguma ocasião

Todo mundo quer acabar com a impunidade
Mas ninguém quer ser punido
- em nenhum instante

Todo mundo quer ser amado por todos
Mas ninguém quer amar a todos
- nem em alguma vez

Todo mundo é humano
- menos o animal

sexta-feira, 20 de março de 2015

A ALMA DO MENINO

Tagore (1861-1941)


Se ele quisesse, o menino poderia voar para o céu, agora mesmo.

Mas de modo nenhum quer deixar-nos.

Agrada-lhe descansar a cabecinha no seio da mamãe e não suportaria deixar de vê-la.

O menino sabe de muitas coisas; mas, poucos no mundo podem entender o sentido de suas palavras.

Não quer falar, de modo nenhum.

Quer apenas ouvir as palavras da sua mãe. E por isso são tão inocentes os seus olhares.

O menino possuía um monte de ouro e de pérolas, no entanto veio para a terra como um mendigo.

Veio sob esse disfarce por algum motivo.

Este caro mendigo, pequeno e despido, pretende ser o mais débil, para ser-lhe permitido pedir muito amor à sua mãe.

No diminuto país da lua crescente, o menino estava livre de qualquer vínculo.

Mas não renunciou à sua liberdade sem razão.

Ele sabia que há um lugar de alegria infinda em um pequeno canto do coração materno e que estar preso e apertado por dois braços queridos é mais doce do que a distância desta liberdade.

O menino não sabe chorar. Ele morava no país da felicidade perfeita.

Mas preferiu chorar por algum motivo.

Embora saiba atrair o coração afetuoso com o sorriso do seu querido rosto, os seus gritinhos por pequeníssimas dores, suscitam um laço dúplice, um laço de felicidade e de amor. 


TAGORE, Rabindranath. Tagore, obras selecionadas: O jardineiro, Lua crescente, Gitanjali, O cisne. Rio de Janeiro: Livros do Mundo Inteiro, 1974. p.97-98

quinta-feira, 19 de março de 2015

TRÊS POEMAS DE JORGE TUFIC

UMA FOLHA DESCE
Jorge Tufic

Uma folha desce
tão bela, em minha janela.
O dia escurece.


TESTAMENTO
Jorge Tufic

Deixo-te as latas vazias
de um porre sem vinho;
deixo-te o abrigo
das pontes,
as sílabas do musgo,
a fúria de meus sapatos.

Deixo-te ainda
a minha radiografia:
o vão que fui
entre duas costelas.


O NEGATIVO
Jorge Tufic

Meu nascimento não teve retrato.
Imagem, na época,
raro privilégio.
Talvez por isso resistam
visões patológicas
nesse olhar que me olha-
não para onde estou
mas de onde estaria
nos outros que fui.


Confira o blog do poeta, de onde foram retirados os poemas acima:

terça-feira, 17 de março de 2015

OS DESCORDANTES LANÇAM O PRIMEIRO ÁLBUM “ESPERA A CHUVA PASSAR”

Daniel Perroni Ratto

A paisagem equatorial das melodias Descordantes irradia um desejo pelos amores não correspondidos, cantados nas trovas de outrora. Como catalisadores das dores, das desilusões, de um admirável mundo novo, nas fronteiras amazônicas do Acre, “Espera a Chuva Passar”, esses seres bucólicos trazem ventos independentes de talento e esperança.

Desde o início daquela região do Brasil, têm o povo, ares revolucionários. Pensamento original. Seringueiros proclamaram o Estado Independente do Acre em 1903, todavia, logo em seguida, foi incorporado ao país. Sempre ouvi as estórias de João Donato, em seu primeiro acordeão, em suas músicas ou de Jorge Cardoso. Tive um longo passeio por umas porongas flamejantes de rock and roll.

Senti todas essas influências e tantas outras, no brega rock deste álbum descordante. Senti minhas próprias dores, tal que, fui buscar no subconsciente, reminiscências imagéticas das fraturas do meu coração. Eis que fui.

Lembro de estar apaixonado nas praias de São Vicente, surfando as ondas imaginárias do amor. A briga era inevitável assim como Reginaldo Rossi no boteco do desalento. Desesperado, nadando em copos de cachaça, pensava que poderia ser tudo diferente. Quando a chuva caiu, avisei que ela tinha “Três Dias” pra voltar. Fiquei na melancolia.

Teclados psicodélicos surgiram “Hoje De Manhã”, escutei uma voz pernambucana dizendo que tudo iria mudar no café da manhã. Levantei vagarosamente, estiquei os braços até a janela do quarto. Vi o oceano da saudade. O telefone tocou e ouvi que nada era verdade. Guitarras choravam a dor do mundo. Abri a porta e parti.

Na retórica dos planos perfeitos, “Eu Sei Que Não Sou O Que Você Espera De Uma História De Amor”, mas permita que o Sol nasça de novo. Deixe que esse tempo distante nos leve para mais perto de nós. Neste instante, mesmo aqui, no Acre, eu acredito. Só não sei o que se passa na sua cabeça.

Viajando pelo sertão cearense, em estradas desertas, solitárias, vejo carnaúbas e gaviões. Só consigo pensar que, “Enquanto Puder”, estarei ao seu lado. Não me importa quantas dificuldades se apresentem, cuidarei do seu vício.

Olha lá, já não estou mais aqui. Dali, fui à Copacabana. Tem samba rolando. Meu “Amigo Amarelo” desceu mais um chopp. Tem rock rolando. George Naylor nas baquetas, Diego Torres cantando e tocando violão, Marxson Henrique nos teclados psicodelicamente romantizados e Saulo Melo no contrabaixo são Os Descordantes! O sol é forte e o Cristo Redentor abre os braços, cheio de alegria e suingue. Ondas perfeitas quebram no Arpoador. Fui parar no Jobi.

“A Hombridade” que me toma, forçou uma esticada para aquele conhecido cabaré de luzes vermelhas, com muitas mesas, dois gatos pingados, a pinga na garrafa e o velho seresteiro com seu teclado a tocar Odair José. Vejo você em todas as belas. Não viva uma vida de mentiras, só espero que me digas o que fazer. Bebo a última dose, quero rock, quero “Sair Daqui”. Desencanei, meu bem, não sei o que dizer esperando você voltar.

Em calmas corredeiras do destino a “Descrença” aumenta. Saio do trabalho a caminhar pelos labirintos da babilônia futurista. Questiono as dialéticas, as ideologias, o amor. Deixo de fora o sujeito da discórdia. Dos meus chifres. Este é assunto intrínseco. Lá em Santos, vi “O Porto e o Rio” tantas vezes como te vi. Mas você se foi.

Sinto muito se não deu, “Não Me Leve A Mal”, também estou triste, tentamos. Saudade. A vida é mesmo assim. Um assobio que traz novas possibilidades, novas estórias, quem sabe, fazer história. Um passo para frente. Futuro. Não foi falta de amor, só gosto de ficar sozinho. Penso que não seja “Nada Demais” nos mares dos relacionamentos. Lembro de estar apaixonado nas praias de São Vicente…


Daniel Perroni Ratto é poeta, músico, jornalista e professor. É autor de livros como “Urbanas Poesias'' (Editora Fiúza, 2000), “Marte mora em São Paulo'' (A Girafa, 2012) e “Marmotas, amores e dois drinks flamejantes (Ed. Patuá, 2014).

Quem quiser ficar atualizado sobre a banda pode acompanhar a página deles. Para vê-los em ação, clique aqui. E para ouvir o som deles, clique aqui!

RUA, GOVERNO, OPOSIÇÃO: SE ESQUECERAM DE MIM. O CAPITAL TEM NADA A NEGOCIAR COM OS POVOS INDÍGENAS.

Egon Heck


Foram se ajeitando e se ajuntando aos poucos. Entre as indumentárias e instrumentos mais importantes os vistosos cocares, o urucum e jenipapo, o maracá, o tacape e arco e flecha rituais.

No coração um enorme sentimento de paz e guerra. Vieram lutar pela terra, pelos seus direitos, pela vida de seu povo e de todas as nações indígenas do Brasil. Véspera de abril. Na memória a falácia do falso “descobrimento”. Vem do litoral do “encobrimento” para a capital do vil poder. Vem do Monte Pascoal, tão admirado por Cabral, vem de Barra Velha, de novas lutas pela terra, vem de Cumuruxatiba, de Prado, vem de Porto Seguro, de Santa Cruz de Cabrália, de Coroa Vermelha e uma dezena de outras aldeias. No Centro de Formação Vicente Cañas, a primeira parada. Início do ritual. É de encher o coração sentir a alma dessa gente retumbar ao som do maracá, da borduna e da flauta. É hora de fazer a esperança avançar. Hora de protestar, de exigir os direitos.

As ruas falaram na semana que passou. Mas falaram apenas no singular. Nenhuma referência ao Brasil plurinacional que é o melhor sonho para um país tão desigual, corrupto e injusto. É preciso lutar por um outro projeto de país, no qual as cores vivas e belas dos povos originários não poderão faltar. Troca de governo é ilusão passageira. É preciso trocar o projeto de nação, aprofundar a democracia, vencer o estreito calabouço do autoritarismo e ditadura de uma minoria de privilegiados.

“Se negarem nossas terras haverá guerra. Não vamos aceitar perder nossas terras. Isso é vandalismo. Fazem das audiências públicas sessões de terrorismo. Morro lutando pelo meu povo. Estou aqui para o que der e vier”.  Essas expressões de uma das lideranças Pataxó, firmes e contundentes, denotam a consciência política de seus direitos, ao mesmo tempo em que refletem o fim da paciência depois de mais de 500 anos de opressão.

Vários depoimentos falam da invasão, não há de cinco séculos passados, mas a atual: “Estão querendo invadir a Constituição para arrancar dela nossos direitos”. Os povos indígenas da Bahia foram os primeiros a sofrer o impacto da chegada de uma civilização marcada pelo massacre e genocídio para saquear as riquezas, as almas e a cultura de mais de mil povos, com uma população aproximada de 6 milhões de pessoas.  Nesse processo de extermínio mais de um milhão de índios foi morto a cada século.

No ano 2000 os povos originários sobreviventes marcharam para o litoral da Bahia, para, no local da invasão, dizer não ao processo de violência e etnocídio. Foram mais de 3 mil representantes de mais de 150 povos. Quando se dirigiam a Porto Seguro para dizer sua palavra sobre os 500 anos de invasão, foram dura e covardemente reprimidos pela polícia.

São inúmeros os problemas que os Pataxó, Tupinambá, Pataxó-Hã-Hã-Hãe e outros povos indígenas da Bahia enfrentam. O mais grave, todavia, continua sendo a não demarcação e respeito dos territórios indígenas. Será mais um momento de exigir dos poderes o reconhecimento dos direitos e se unir aos povos indígenas do país, para dizer não à PEC 215, ao PL 1610 e às dezenas de iniciativas de rapina que tem como intuito retirar ou reduzir os direitos indígenas conquistados na Constituição de 1988.


Egon Heck (fotos Laila Menezes)
Secretariado do Cimi – Brasília
16 de março de 2015
Artigo retirado do blog do Paulo Suess.

segunda-feira, 16 de março de 2015

FÚTIL E DOIDO

Tagore (1861-1941)


Deixa esvanecerem-se todos os escrúpulos falsos, deixa-me perder o caminho sem esperança de regresso.

Deixa vir uma rajada de insensatez arrancar-me das minhas amarras. O mundo está cheio de valores, de operários, úteis e experientes.

Há homens que são os primeiros, facilmente, e homens que, honestamente, vêm depois.

Sejam felizes e prósperos e deixam-me ser fútil e doido.

Pois eu sei que o fim de todos os trabalhos é estar embriagado e arruinado.

Juro submeter agora todas as minhas pretensões à honestidade. Vou deixar ir embora o meu orgulho de saber e de julgar o que é bem e o que é o mal.

Despedaçarei o meu vaso de memórias e lançarei fora o último resto de lágrimas.

Vou limpar e clarear meu riso na espuma do vinho vermelho.

Rasgarei o traje de homem normal e farei o sagrado voto de ser uma criatura sem valor, um homem embriagado e arruinado.


TAGORE, Rabindranath. Tagore, obras selecionadas: O jardineiro, Lua crescente, Gitanjali, O cisne. Rio de Janeiro: Livros do Mundo Inteiro, 1974. p.60-61

quinta-feira, 12 de março de 2015

LARGO USO DA PALAVRA “COISA”

Luísa Galvão Lessa Karlberg


A Língua Portuguesa é um idioma bastante rico. Também os seus falantes possuem uma criatividade invejável. Assim, há palavras que são utilizadas para designar objetos, dar-lhes atributos, ações, circunstâncias. E uma dessas palavras é “COISA”. De acordo com as gramáticas de Língua Portuguesa, “coisa” pode ser substantivo, adjetivo, advérbio, verbo. Segundo o Dicionário Aurélio: De coisa + -ar. Verbo transitivo direto. Bras. Pop.1. Refletir, matutar; imaginar. Verbo transitivo indireto. 2. Bras. Pop. Cuidar; preparar: F. está coisando do almoço. Verbo intransitivo. 3. Refletir, matutar.

No meio popular, esse verbo “coisar” substitui qualquer outro que não ocorre a quem fala. Logo, “coisa” tem mil e uma utilidades na nossa língua. Quando nos falta uma palavra, “coisa” entra para traduzir o pensamento do falante. De igual modo, nas regiões do Brasil, “coisa” ganha os usos mais diversos, a depender do gosto e dos costumes do lugar. Então, pode-se dizer que essa palavra “coisa” é uma espécie de muleta, que ampara o falante quando este não encontra a palavra exata para exprimir uma ideia. Assim, essa palavra “coisa” vai ganhando as cargas semânticas mais diversas e interessantes. Ela está presente no cotidiano de nossas vidas, na poesia, na música, na literatura.

Em Portugal, por exemplo, “coisar” equivale ao ato sexual, como traduz José Machado, em seu dicionário. No Brasil, em especial no Norte e Nordeste, “coisas” é sinônimo de órgão genital: “E deixava-se possuir pelo amante, que lhe beijava os pés, as coisas, os seios” (Riacho Doce, José Lins do Rego). Na Paraíba e em Pernambuco, “coisa” pode ser cigarro de maconha. Em Olinda, o bloco carnavalesco “Segura a Coisa” tem um baseado como símbolo em seu estandarte. Em Minas Gerais, todas as coisas são chamadas de trem. Menos o trem, que lá é chamado de “a coisa”. A mãe está com a filha na estação, o trem se aproxima e ela diz: “Minha filha, pega os trem que lá vem a coisa!”.

Na música popular brasileira muita gente boa lançou mão dessa palavra. Alceu Valença canta: “Segura a coisa com muito cuidado / Que eu chego já.” Vinícius de Moraes diz: “Olha que coisa mais linda, mais cheia de graça (…)”. A garota de Ipanema era a coisa mais linda do mundo. Depois, novamente Vinícius e Tom Jobim: “Mas se ela voltar, se ela voltar / Que coisa linda / Que coisa louca.” Jobim e Vinicius sabiam das coisas. Caetano Veloso também sabe, olhem como canta: “Alguma coisa acontece no meu coração”.  E, na música “Qualquer Coisa”, ele diz: “Alguma coisa está fora da ordem.” Também Jorge Aragão/Almir Guineto/Luis Carlos da Vila sabem usar a palavra: “Ô Coisinha tão bonitinha do pai...”. Lembram?

E tem mais, “coisa” tem história na MPB. No II Festival da Música Popular Brasileira, em 1966, estava na letra das duas vencedoras: Disparada, de Geraldo Vandré: “Prepare seu coração / Pras coisas que eu vou contar”, e A Banda, de Chico Buarque: “Pra ver a banda passar / Cantando coisas de amor”. Naquele ano do festival, no entanto, a coisa tava preta (ou melhor, verde-oliva). E a turma da Jovem Guarda não tava nem aí com as coisas: “Coisa linda / Coisa que eu adoro”. Cheio das coisas. As mesmas coisas, Coisa bonita, Coisas do coração, Coisas que não se esquece, Diga-me coisas bonitas, Tem coisas que a gente não tira do coração.

O nosso rei, Roberto Carlos, tem preocupação com a “coisa e canta: “Coisa bonita, coisa gostosa, quem foi que disse que tem que ser magra pra ser formosa? Coisa bonita, coisa gostosa, você é linda, é do jeito que eu gosto, é maravilhosa”. Para Maria Bethânia, o diminutivo de coisa é uma questão de quantidade, afinal “são tantas Coisinhas miúdas”. Gal Costa diz: “Esse papo já tá qualquer coisa... Já qualquer coisa doida dentro mexe.”

Na literatura, a “coisa” é coisa antiga. Antiga, mas modernista. Oswald de Andrade escreveu a crônica “O Coisa”, em 1943. “A Coisa” é título de romance de Stephen King. Simone de Beauvoir escreveu “A Força das Coisas”.  Michel Foucault escreveu a fantástica obra “As Palavras e as Coisas”, e por aí vai a “coisa”.

Percebe-se que a palavra “coisa” não tem sexo (gênero), pode ser masculina ou feminina. Coisa-ruim é o capeta, o câncer, a hanseníase, a roubalheira no Brasil. Coisa boa é o Brad Pitt, Richard Gere, Tom Cruise. Nunca vi coisa assim! Coisa de cinema!

Por essas e outras é preciso colocar cada coisa no devido lugar. Uma coisa de cada vez, é claro, pois uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa. E tal coisa e coisa e tal. O cheio de coisas é o indivíduo chato, cheio de “não-me-toques”. O cheio das coisas, por sua vez, é o sujeito estribado. Gente fina é outra coisa. Para o pobre, a coisa está sempre feia: o salário-mínimo não dá para coisa nenhuma. A coisa pública não funciona no Brasil. E a “coisa” não para por aí, nem lá, nem aqui. Tem essa “coisa” do Lava jato e a tal lista de Janot que dá nome às coisas. Tem o alguém a dizer que empreiteiras não foram extorquidas: ‘As coisas eram acordadas’. Depois, lá vem mais “coisa” no BNDES. Melhor ter cuidado no 15 de março, que a coisa, parece-me, vai ficar preta!

Mas, finalmente, para o pobre a coisa está sempre feia. Para os ricos as “coisas” são boas. Aqui tem essa coisa de alagação. Então, todo cuidado é pouco, há muita coisa para ser arrumada no Brasil. Vamos ficar de olho nessas “coisas” para o país não cair, de vez, no descrédito mundial.


* Luísa Galvão Lessa Karlberg IWA– É  Pós-Doutora em Lexicologia e Lexicografia pela Université de Montréal, Canadá; Doutora em Língua Portuguesa pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ; Mestra em Língua Portuguesa pela Universidade Federal Fluminense – UFF; Membro da Academia Brasileira de Filologia; Membro da Academia Acreana de Letras; Membro perene da International Writers end Artists Association – IWA; Coordenadora da Pós-Graduação em Língua Portuguesa – Campus Floresta; Pesquisadora DCR do CNPq.

quarta-feira, 11 de março de 2015

LIRA AMAZÔNICA

VEIO D’ÁGUA
Álvaro Maia (1893-1969)

Gosto de ouvir-te, veio de água pura,
recortando os recantos escondidos
de soluços, de vozes, de arruídos,
entre hinos de alegria e de amargura...

Choras no coração da selva escura
a saudade dos trilhos percorridos,
e ao teu pranto, lembrando os tempos idos,
a verde alma da terra se mistura...

És calmo e frio em fases diferentes,
ora na rude angústia das vazantes,
ora no desespero das enchentes...

E, corda de harpa rebentando em festas,
ergues ao céu, em notas delirantes,
a epopeia convulsa das florestas...


DURANTE A FEBRE
Heliodoro Balbi (1878-1918/19?)

Morrer! e ser lançado ao mar, no mar do Oriente...
No teu dorso senil, ondas do mar Vermelho!
E no deflúvio real do teu líquido espelho
Ir a Morte arrastando o meu corpo inda quente...

Meu loiro sonho! minha pobre alma! Meu velho
Tronco! a flutuarem dentre os juncais da corrente...
E debater-me em vão! como em vão, loucamente,
No arrebol se debate um áureo escaravelho!

No alto do céu radioso o ocaso dos Oceanos...
Meu sangue a jorrar pondo vermelhas estriais
Na garganta de luz dos squalos e goelanos...

E eu só! e eu mudo! a rodopiar em caracóis!
Tenho, através as rubras órbitas vazias,
A ilusão imortal de um combate de sóis...


VELHO TRONCO
Hemetério Cabrinha (1892-1959)

Olha esse tronco de árvore esgalhado,
levado a toa pela correnteza.
Quem nos cabe contar o seu passado?
Quem nos diz sua história? Com certeza

Floriu, frutificou, teve seu fado,
foi luz, foi pão, foi ouro, foi grandeza,
teve um viver de inveja saturado,
foi um sorriso aberto à natureza.

Vê! como ele vai sereno, a esmo,
arrastando o cadáver de si mesmo
para um destino torturante, triste...

No entanto, quantas vezes não enchera
de frutos bons, a mão que o abatera!
...Como esse tronco muita gente existe!


MELLO, Anísio. Lira Amazônica: antologia. São Paulo: Correio do Norte, 1965. p.26-27, 121-122, 123-124,

terça-feira, 10 de março de 2015

O PODER DA REFLEXÃO FILOSÓFICA

Inês Lacerda Araújo


O mais conhecido símbolo da reflexão filosófica é a estátua de Rodin, “O Pensador”. Dobrado sobre si, mão no queixo, ensimesmado, voltado para si, para seus pensamentos.

Mas, se a reflexão se limitasse às atitudes acima, a filosofia não teria produzido tantos pensadores com suas obras geniais, que merecem atenção cuidadosa, estudo, e que são, sobretudo, um convite à reflexão. Como então se caracteriza a reflexão se não é apenas pelo voltar-se para si?

A filosofia deve e pode levar a perguntas, ao questionamento, ela conduz à raiz, à busca de fundamentação, e assim produz admiração, abre os olhos e a cabeça para nossa situação no mundo, na sociedade, na história, na cultura, em nossa vida.

Para chegar a esses efeitos, é preciso o que se poderia chamar de material de trabalho filosófico: ideias, noções, conceitos, propostas, indagações feitas pelos filósofos, mas não só por eles. Historiadores, artistas, escritores, jornalistas contribuem com material para a reflexão. A diferença está no grau de elaboração do material, enquanto os filósofos levam as questões a um nível mais geral, à abstração, às fundamentações, um artista, um cientista, um historiador, um escritor (e outros mais...), recolhem material mais concreto, documentos, situações do cotidiano, pesquisam, investigam. Eles precisam quantificar, construir com dados da realidade empírica para chegar a resultados, a feitos e fatos.

Isso não significa, como dito acima, que a reflexão filosófica seja feita nas nuvens, que o filósofo, ao abstrair, esteja longe das questões e problemas da realidade social, cultural, do avanço científico, dos acontecimentos locais, nacionais e mundiais.

De onde a filosofia extrai o conceito de justo, de belo, de bom? E o de verdade? Qual a motivação ou inspiração do filósofo para compreender o sentido da existência humana, de seus valores, das exigências de justiça, de melhoria da condição humana?

Justamente, das situações, acontecimentos, batalhas, contradições, sentimentos, buscas, indignação, aprovação, realizações, e de tudo o que nos constitui. A reflexão nos conduz a perguntar se isso tudo faz sentido ou se tudo isso é absurdo, se podemos conhecer os limites de todos os seres, ou não temos como saber o que nos limita. Os conceitos de ser e nada são abstrações? De que afinal se alimenta a filosofia?

Um exemplo de reflexão filosófica seria uma questão interessante e provocadora como esta:

Quem levaria mais a fundo a reflexão filosófica, Dostoiévski em “Crime e Castigo” ou Wittgenstein no “Tractatus Logico-Philosophicus”?

Sofrimento, liberdade, valores, justiça, punição, consciência moral, dilemas éticos, a produção literária de Dostoiévski dá a pensar.

Lógica, fatos gerais que constituem o mundo, limites do pensamento e da linguagem, a estrutura do mundo, como obter sentido para Wittgenstein, e isso pela análise filosófica.

Em comum: produzir, criar, levar a reflexão sobre nossas condições ao limite do possível, ilustrado pela tragédia (crime/morte) ou pela busca da forma lógico-gramatical, arcabouço último do sentido, lado a lado com o que é inexprimível (divino/inefável).

Em suma:
Refletir requer analisar, reunir pensamentos, dispor deles em certa ordem, concluir com sínteses renovadoras, dar razões, exigir rigor no raciocínio, e ser verdadeiro em seus propósitos.

Impossível sem honestidade e curiosidade intelectuais.


* Inês Lacerda Araújo - Professora de Filosofia durante 40 anos, na UFPR, e nos últimos anos na PUCPR. Autora de livros sobre Epistemologia, História da Filosofia e Teoria do Conhecimento. Atualmente aposentada.

segunda-feira, 9 de março de 2015

PORANTIM: cântico XI

João de Jesus Paes Loureiro


“ Na jusante
levo-me.
                        Elevo-me ao mar
e
no entanto
            Mar
            sou Rio.
Assim me sei,
ciente do que sou
no que não-sou
                            consciente . . .

Certo não sou quem sou,
pois não me penso
e o existir
é minha forma de passar além . . .

Riomar.
Sou rio e mais o Mar
e
além de
              Mar e Rio
                              sou Riomar.
Cavaleiro e campo de batalha.
Arma, defesa e luta.
Sou isto e não aquilo
e sou também aquilo.
O istoaquilo de seres
erros
            res e ser
                              jusante . . .

E sou aquilo que me deixo
em várzeas verdes.
Conhecimento de que meu caminho
não é o meu caminho
e que correr é como sei de mim.
esta forma de ir, que é meu destino,
conhece-me infeliz,
pois que não sou em mim
e amo as águas destas águas noutras águas . . .”


LOUREIRO, João de Jesus Paes. Porantim (poemas amazônicos). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. p.49-50

domingo, 8 de março de 2015

DESDOBRADO DAS DOBRAS

Walt Whitman (1819-1892)


Desdobrado das dobras da mulher o homem se desdobra,
e sempre está para se desdobrar:
desdobrado da mulher mais soberba da terra
está por chegar o homem mais soberbo da terra, desdobrado da mais amigável
mulher está para chegar o homem mais amigável,
só desdobrado do corpo perfeito de uma mulher pode fazer-se um homem perfeito de corpo, só desdobrado dos inimitáveis poemas da mulher podem criar-se
os poemas do homem (só daí vêm meus poemas),
desdobrado da arrogante e forte mulher que eu amo,
só daí pode vir o homem forte e arrogante que eu amo,
desdobrados pelos abraços vigorosos da mulher firme que eu amo,
só daí vêm os abraços vigorosos do homem,
desdobradas das dobras do cérebro da mulher procedem todas
as dobras do cérebro do homem, seguindo obedientemente,
a desdobrar-se da justiça da mulher toda a justiça do homem se desdobra,
desdobrada da simpatia da mulher é toda simpatia;
grande coisa é um homem sobre a terra e pela eternidade,
mas cada vírgula da grandeza do homem vem das dobras da mulher;
primeiro o homem toma forma na mulher, depois então pode 
tomar forma em si mesmo.


WHITMAN, Walt. Folhas de Relva. Tradução Geir Campos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1964. p.156

sábado, 7 de março de 2015

NARCISO CEGO

Thiago de Mello


Tudo o que de mim se perde
acrescenta-se ao que sou.
Contudo, me desconheço.
Pelas minhas cercanias
passeio – não me frequento.

Por sobre fonte erma e esquiva
flutua-me, íntegra, a face.
Mas nunca me vejo: e sigo
com face mal disfarçada.
Oh que amargo é o não poder
rosto a rosto contemplar
aquilo que ignoto sou;
distinguir até que ponto
sou eu mesmo que me levo
ou se um nume irrevelável
que (para ser) vem morar
comigo, dentro de mim,
mas me abandona se rolo
pelos declives do mundo.

Desfaço-me do que sonho:
faço-me sonho de alguém
oculto. Talvez um Deus
sonhe comigo, cobice
o que eu guardo e nunca usei.
Cego assim, não me decifro.
E o imaginar-me sonhado
não me completa: a ganância
de ser-me inteiro prossegue.
E pairo – pânico mudo –
entre o sonho e o sonhador.


MELLO, Thiago de. Vento geral (1951-1981). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1984. p.83-84