quinta-feira, 17 de março de 2022

MATIAS: POR QUE ACONTECEU?

Capa e segunda capa de "Por que aconteceu?", folheto de Matias. Desenho da capa: Péricles Silva.

POR QUE ACONTECEU?

José Marques de Souza (Matias)

 

Caros leitores,

Estou falando estas coisas do companheiro Chico Mendes num momento de tristeza, por se tratar de um grande amigo. Através destas rimas (que podem nem ser do seu agrado), talvez nós possamos conservar o companheiro na memória, pois para mim ele não morreu e continua vivo. E muito inteligente. Esta inteligência ele herdou de berço. Gostaria que esta inteligência fosse transferida para as Universidades, pois aquela simplicidade, aquela humildade, aquela pureza, destacava-se do egoísmo humano, do preconceito.

Que os grandes sábios tenham o Chico vivo entre os seus atos, pois mesmo que eu esteja tomado de emoção, ele foi e é aquele que sempre admirei e admiro. Ele vai continuar vivo no nosso pensamento, no ensino, na diversão, no trabalho.

Nestas sentenças eu convido você a pensar:

– Em nosso País, em quem nós devemos confiar?

Eu escrevi estas linhas. Conto com você.

Não podemos esquecer que ele não queria morrer.

 

MATIAS

 

 

I

 

Eu olho para o por do sol.

Para mim é uma beleza.

Olhar o sol nascer

é beleza da natureza.

Ninguém pode escapar.

Vivendo na mata,

Tem o prazer de acompanhar,

A alegria dos pássaros,

Para ver o sol nascer.

Chico Mendes. Ele não queria morrer.

 

II

 

Como vivemos sem segurança,

A paz do dinheiro é que vence,

O homem que vive na floresta,

Que se esforça pra sobreviver,

Trazer o sustento da família,

É capaz de morrer.

São os poderosos que gozam do poder.

Chico Mendes. Ele não queria morrer.

 

III

 

Chico olhava a floresta,

Não era por vaidade.

Ele olhava o Brasil

E ao mesmo tempo pensava

No futuro da mocidade.

O esforço do companheiro,

Todo mundo podia ver.

Chico Mendes. Ele não queria morrer.

 

IV

 

Do jeito que ele lutava

Não queria nem saber,

Que a terra é pra todos,

Não adianta trabalhar pra morrer.

Somos seres humanos,

Temos o direito de viver.

O direito à vida digna,

É direito de todos.

Tanto pra mim quanto pra você.

Chico Mendes. Ele não queria morrer.

 

V

 

Chico não queria morrer.

Ele queria viver.

Não gritou só para o mundo,

Mas pra todos que quisessem ver.

A sua valiosa vida,

Ele não queria perder.

A luta pela floresta,

Em benefício de todos.

Chico Mendes. Ele não queria morrer.

 

VI

 

E foi isso que aconteceu.

Tanto que o companheiro pediu

Que não queria morrer.

Ele queria viver.

Tinha pena de um trabalho

Que tinha começado

E queria terminar de fazer.

Chico Mendes. Ele não queria morrer.

 

VII

 

Quando uma pessoa

Pede clemência,

que nada pode fazer,

Os poderosos pouco se importam

Com o que vai acontecer.

Para eles seria uma beleza

Se ele chegasse a morrer,

Pois ficavam livres

E tudo poderiam fazer.

Chico Mendes. Ele não queria morrer.

 

VIII

Ele pediu socorro às autoridades.

Ele não queria morrer.

Queria viver pra dedicar

A vida à floresta.

Foi nela que ele nasceu.

Foi nela que ele cresceu.

Por ela queria estar vivo.

Lutar para evitar o que poderia acontecer.

Chico Mendes. Ele não queria morrer.

 

IX

 

Sua vida era boa.

Saudável e divertida.

Sempre implorou em defesa da vida.

Gostava da terra.

Gostava da natureza.

Por ela via as coisas nascer.

Chico Mendes. Ele não queria morrer.

 

X

 

Índios e seringueiros,

Que somos da mesma nação,

Sempre vivemos juntos,

Pois temos a mesma opinião.

Para viver na floresta,

Não tem ninguém melhor que nós,

Para a sua proteção.

Vamos sustentar esta luta,

Pois nada será em vão.

 

XI

 

Os grupos internacionais

Não são, na minha opinião,

Para meter-se nesta história,

Pois deveria ser resolvida

Por esta nossa Nação.

Mas até valeu a pena.

Aparece que desta vez,

O morto vai ter coração.

 

XII

 

Tenho visto tanta coisa

Que faz cortar coração.

Marrosa era bandido,

Vivia fazendo confusão.

Mas pra mim não devia ser morto

Pois ele gritou por proteção.

Afinal a cadeia pública

Não é pra fazer prisão?

Pois ele foi morto.

E morto por um pelotão.

 

XIII

 

As mortes vêm acontecendo,

Até parecem pedir bis.

Será que a morte de Chico Mendes,

Não foi culpa do País?

Chico era um homem pacato

E lutava pela Nação.

Quantas vezes ele clamou

Pela sua proteção?

Por isso digo:

Sua morte foi culpa da Nação.

 

XIV

 

Eu quero dizer

E deixar clara minha opinião.

Gostava do companheiro

E admirava sua ação.

É pena não viver com ele

Para um ao outro dar proteção

Por isso me despeço do Chico

dizendo: Vamos em frente meus irmãos.

 

XV

 

Seringueiros que disseram,

Que sua morte foi tão falada,

Quando muitas vezes eles mesmos

Lutaram com o Chico,

Pra falar com autoridades.

Às vezes a gente fica pensando,

Que isso é coisa de maldade.

Quantas vezes viajaram

Pra resolver coisas na cidade?

E tudo ficava pendente

Por causa da má vontade.

 

XVI

 

Os bandidos perigosos

Será que precisavam matar?

Quem matou Wilson Pinheiro?

Alguém sabe donde estão?

Quem matou o filho do Abraão?

Vocês sabem onde estão?

Por isso companheiros,

Temos algo pra pensar.

A gente paga a segurança,

Pra nos dar conforto ou

Pra nos assustar?

 

XVII

 

Chico Mendes não sabido.

Nunca frequentou Universidade.

Era filho de seringueiro,

Já tinha se casado.

Era um homem de idade,

Defendia o seringueiro,

Uma vida digna, com igualdade.

 

XVIII

 

Alguns muitas vezes pediam

Pro Chico parar.

Mas ele achava difícil

Porque pra ele.

A luta não podia acabar.

Resistia com coragem,

Pois a covardia

Em seu vocabulário não existia.

 

XIX

 

O Chico esteve lutando

Pela causa que serve pra mim

E pra você.

Nossos filhos estão crescendo,

A floresta tá acabando.

Os ricos não tão nem aí.

Depois nós é que ficamos chorando.

Abre o olho companheiro,

Pois eu tô te alertando.

 

XX

 

Vamos unir as forças,

Pois a preservação da floresta,

Juntos nós podemos evitar.

As grandes derrubadas,

Não servem pra nós.

Só pros grandes fazendeiros,

Que só pensam em enricar.

 

XXI

 

Chico lutou muito

Pra defender aqueles

Que viviam do seu lado

E muitos viu até nascer.

Era companheiro

Que lutava pra sobreviver.

Aí Chico ficava triste,

Quando falava que ia morrer.

E dizia: – Isso não é possível!

Luto não é só por mim.

É também pelos companheiros,

Que batalham para sobreviver.

Conto com vocês,

Pra não ver essa coisa acontecer.

 

XXII

 

A Polícia é paga pela Nação

Para dar segurança ao povo.

E muitas vezes escraviza

Aqueles que nunca têm razão.

Chico vivia na floresta,

Unidos com seringueiros

De braços dados com índios,

Se alimentando das castanheiras.

Ainda existe sabido

Dizendo que ele fazia aresia

Para subir na carreira.

Deixou de se candidatar

Pra ficar ao lado dos companheiros.

Por isso que o povo diz

Que isso tudo é ilusão.

Vieram balas da UDR

E cortaram seu coração.

 

XXIII

 

O Chico não queria morrer

Por isso pediu proteção.

Clamou ao Chefe da Nação.

Queria continuar sua missão.

Era desejo dele,

Defender a floresta,

Defender o seu torrão.

Índios e seringueiros,

Eram seus irmãos.

Vieram as balas da UDR

E cortaram seu coração.

 

XXIV

 

Eu peço às autoridades,

Que tenham um pouco de compreensão.

Às vezes que pedia clemência,

É porque Chico não queria

Deixar sua missão.

Para o bem da floresta

Que era a raiz do seu coração.

E as balas da UDR

Cortaram seu coração.

 

XXV

 

Se a floresta falasse,

Não sei o que ia dizer.

Oitenta e duas mortes

Com a do Chico acabou de ocorrer.

Será que a Polícia não sabia,

Ou não quis se comprometer?

 

XXVI

 

Para Ministro, Presidente

Ou Governador,

Chico gritou por defesa.

Ele queria viver

Pra defender seus irmãos

Que precisavam da sua proteção.

A floresta é tão boa

E é a defesa da Nação.

Chico Mendes estava sem proteção.

 

XXVII

 

Que país é este que a gente morre

Por proteger a Nação?

E matam e não tem punição?

Chico muitas vezes pediu proteção.

Seu trabalho era em defesa do

seu irmão.

Mas as balas da UDR

Cortam o seu coração.

 

XXVIII

 

O mundo todo falou

Que o chico era um homem simples,

Mas que tinha seu valor.

Com sua morte,

O mundo todo clamou.

Foi um silêncio profundo,

Homem de bigode nesse momento chorou,

No seu coração pedia justiça,

Para aquele crime de horror,

Pois essa tal de UDR,

Só veio trazer o clamor,

A triste sina do Chico,

Que a UDR levou.

 

XXIX

 

Chico muitas vezes

Clamou para não morrer.

Agora não adianta chorar.

É só juntar as forças

E cobrar aos homens do poder.

Que a justiça tem que ser feita,

Isso doa a quem doer.

 

SOUZA, José Marques de (Matias). Por que aconteceu?. Rio Branco: Fundação Cultural do Estado do Acre, 1989.

terça-feira, 15 de março de 2022

THOMÉ MANTEIGA: BIOGRAFIA DE RAYMUNDO THOMÉ DA ROCHA


Nasceu em 04 de agosto de 1890, cearense de Uruburetama, Estado do Ceará. Faleceu em 12 de julho de 1977, no Acre, vitimado por uma trombose, na residência de sua filha Leyde Braga Thomé da Rocha Fontenele, onde fixava residência. Viveu no Acre sessenta e um anos.

Em 1903 – Estudava em Fortaleza, tendo saído de casa em 14 de outubro.

Em 1906 – Residia, no Rio de Janeiro, com o tio Cel. Cândido Thomé. Foi convidado para estudar no Colégio Militar. Não aceitou. Achava que era humilhante um homem prestar continência a outro.

Em 09 de abril de 1907 – Saiu de Fortaleza rumo ao Amazonas. Na noite do dia 20, chegou em Belém.

Em 17 de maio de 1907, conheceu pela 1ª vez o município de Cruzeiro do Sul.

Em 1910 – Esteve no Seringal Belo Monte, viajando em canoa, sofreu um naufrágio, não sabendo nadar, salvou-se milagrosamente.

Em 1911 – Em Tarauacá, foi nomeado Comissário de Polícia do 2º Posto Fiscal do Marco do Remanso, no Alto Juruá.

Em 1919 – Exerceu o cargo de Escrivão de Polícia da Delegacia Auxiliar de Rio Branco. Anos depois, foi zelador dos Próprios do Território.

Em 1920 – Aos 29 anos de idade, casou-se com Lupercínia Braga Thomé Rocha (aos 17 anos). Desse matrimônio que perdurou por 58 anos, nasceram 25 filhos dos quais 10 estão vivos (Leide, Neide, Ruymar, Ruyter, Leydalva, Antônio, Luzdalva, Ruydalberto, Ruykleber e Ruyvaldo).

Em 05 de janeiro de 1924 – Foi nomeado Fiscal de Consumo da 14ª Circunscrição de Rio Branco.

Em 1935 – Trabalhou na Diretoria de Obras, na Agricultura e Trabalho. Tornou-se um grande Getulista. Na época política, subia aos palanques para discursar em favor dos pobres. Como símbolo do Getúlio, usava uma gravatinha branca, laço borboleta. Foi um período de muita dificuldade e dizia, enquanto existir Cruzeiro em nossa moeda, o Brasil, economicamente, não vai pra frente. Passou 13 anos desempregado, por esse motivo, dedicou-se à criação de gado. Foi, no Governo de Epaminondas Martins, preso político, durante 24 horas. Na véspera da prisão uma das filhas (Neyde) sonhou com a casa cercada de soldados.

Como espírita, tomou como aviso. Imediatamente enterrou a documentação política sob o assoalho de uma antiga residência em ruína. Assim que terminou a operação, os policiais chegaram, vasculharam tudo, nada encontraram. Recebeu ordem de prisão. Aceitou, dizendo que iria numa maca, pois estava com febre. Após o ato, ele mesmo criticava – “Fui nos braços deles, com os meus pés, não”. Viveu no Acre sessenta e um anos.

Em 24 de agosto de 1948, no Governo do Cel. Silvestre Coelho, foi admitido como Bibliotecário Auxiliar, referência XXI, mediante o salário de CR$. 1.950,00, no qual foi aposentado. Nos últimos anos de vida, adquiriu o hábito de visitar, diariamente, os amigos: D. Alegria, Raymundo Melo, Raymundo Braga, Crisar Leitão, Aldenor e muitos outros, exigindo, ao chegar, uma cadeira, em seguida, um cafezinho com leite. A alimentação de sua preferência era coalhada (pela manhã, na sobremesa, na merenda e no jantar).

Ostentava um tradicional chapéu, um guarda chuva ao braço e paletó com os bolsos volumosos de poesias escritas em qualquer pedaço de papel, até mesmo de embrulho. Apelidaram-no por “Manteiga”, resultado de uma brincadeira ao arremessar uma lata desse produto, quando solteiro, entre colegas de quarto. Foi muito exigente com os primeiros filhos. As filhas, aos 19 anos, não andavam pintadas nem dançavam com cavalheiros, só com damas.

PARTE LITERÁRIA – Para não perder as inspirações noturnas, às vezes, levantava-se alta noite para escrever. Deixou 322 poesias com variados títulos: a noiva, Ela, sempre, ela, telegrama visual, tribunal do amor, fivela humana, sole ciúme, elo perdido, santo do pecado, reboliço do amor, o lençol, virtude entre lágrimas, saliva do amor, ninho de noivado, sobra de amor, etc.

POETA DE SUA PREDILEÇÃO: Olavo Bilac, Gonçalves Dias, Alberto de Oliveira (Thomé dizia: “Poeta do meu estilo”), Raymundo Correia, Camões e escritores como Ruy Barbosa. Gostava de repetir a expressão do escritor: “Não há justiça, onde não haja Deus”. Em homenagem a “Ruy”, os filhos receberam no prenome, o prefixo Ruy.

ESTILO DE THOMÉ: sílabas soltas

                                   Em simples revoar

                                   Da alma ritmada.

 

SANTOS, José Alves dos. BOSQUE - Thomé Manteiga (1890-1977). Rio Branco: s/d. p. 6-11

segunda-feira, 14 de março de 2022

GERSON ALBUQUERQUE: "beijo seguido de pretéritos"

“Beijo seguido de pretéritos” (Rio Branco: Nepan, 2022), recente trabalho poético de Gerson Albuquerque, o seu “terceiro livro [ou não-livro] de exercícios e ensaios literários, a crônica e a poesia se misturando fora dos quadrados enquadramentos e longe do lattes”. 

Em 2017, Gerson publica “Palavras perdidas em meios silêncios”; seguido, em 2019, por “Limiares: manuscrito para um não-livro – nem uma coisa, nem outra”, um livro híbrido que reúne poemas, resenhas, crônicas e contos. Ambos publicados pela Nepan Editora.

Agora, neste início de 2022, o autor apresenta-nos o seu “beijo seguido de pretéritos”, a dialogar com a plasticidade não conceitual das obras anteriores, um livro cuja tecitura se deu no contexto pandêmico (2020-2021), “nos tormentosos tempos de ataques de vírus e neofascistas mortais, imorais, cínicos.”

“Beijo seguido de pretéritos” traz o cheiro acre dos barrancos, em cujas margens, desenrolam-se, em seu pretérito presente, a forjada condição humana de descaso, morte e resistência.

 

ressaca

 

entre duas curvas, a montante e a jusante, o rio regurgita

ébrio, espirra corned beef, expele

garrafas de cerveja e buchudinha.

serpenteando entre o quinze e a judia, o rio mija

quadrados de estofados e tampas de geladeiras,

vomita plásticos, escarra

fezes no orgulho de ser acreano.

 

 

sobriedade

 

bardo das águas do aquiry, raimundinho

riscou os ares da vila e da antiga brasília, teceu

manuscritos sobre certa batalha do baía, gritou

aos pulmões que o prefeito era um fornicador, zombou

dos vereadores, gargalhou

do herói grileiro, cagou e andou

para as pudicas da paróquia e desapareceu

debaixo da fronteira, após inventar o hino da cidade.

certo dia ele me disse que estava morando atrás do acre, onde

o rio fica de cócoras,

pra não ser visto pelos tratores do desenvolvimento,

nem sentir o pixé de bosta da boiada.

 

 

permuta

 

as águas do rio despejam fertilidade em todas

as margens da cidade.

a cidade evacua suas obras em todas

as beiras de rio.

o rio espreita inquieto, retém

as águas, as terras caídas, os balseiros, as obras evacuadas.

e cospe líquidos silêncios, afogando

as mágoas, os portos, as praças, as pontes,

devastando as casas e os barrancos.

 

 

ALBQUERQUE, Gerson. Beijo seguido de pretéritos. Rio Branco: Nepan Editora, 2022. p. 13, 16 e 34

sábado, 12 de março de 2022

RÂNGELA: “Águas coração” (1983)

“Águas coração” (1983), de Rângela, pseudônimo de Raimunda Ângela, à época com 24 anos, da geração do mimeógrafo. Capa de Péricles e ilustrações de Genésio Fernandes. 

AQUI

 

O povo é quem sabe

o povo é quem diz

Não é preciso juiz

Boca do acre

conta sua história

na boca da noite

 

 

COMEÇO

 

Antes que tudo se perca

                             acabe apodreça

Não adianta fugir

porque não está na próxima esquina

e você sabe de toda a utopia

 

 

GRITO MÍSTICO

 

Amazônia solta teu grito

e desperta todos os leões

todas as raízes

todos os caboquinhos da mata

 

 

MARIA LAVA

 

a bacia

a agonia

a roupa suja

Maria lava

reza a prece

e sua angústia se desfaz em peças

 

O suor desce

qual o rio

que carrega

a roupa suja de maria

 

E o cheiro de maria

se mistura com o cheiro

do sujo da camisa do doutor

que vai já lavar

 

Mas o cheiro de maria

é o cheiro do sustento

do dia a dia que não se adia

 

 

NADA

 

Inflação

desnutrição

e nada para encher a panela

 

 

DERRUBADA

 

Sol calor

      água

      frio

      terra

 

chove o riso que dilacera

a ecologia

riso com lábios cerrados

 

sem suor

sem ar

sem arma

sem chão para morar

 

Amazônia derrubada

é toda uma raça mutilada

passado vencido

presente perdido

 

 

RELATO

 

Rolou no seio da noite

a vontade de que tudo fosse belo

Amar é qualquer coisa de belo

que se perde na noite

 

 

MAS AINDA É...

 

No tempo dos coronéis

não se ganhava nenhum réis

o patrão comia no cuião

e o mané

se dormia

dormia mal

hoje não se sabe bem

a diferença

só se sabe é que

patrão continua comendo no cuião

e muitos

manés

ainda dormem no chão

Ilustração de Genésio Fernandes.

ÁGUAS CORAÇÃO

 

Meu coração

não é menor que o seu

e nem é menor que o mar

nele navegam muitas águas

muitos barcos muitas correntezas

 

 

BEIRA DE RO

 

O rio desce

o rio sobe

o rio corta

         entrelaça

         debilita

 

pela libertação

das massas

das cabeças

espanta rio com tuas águas vadias

tantos tubarões vazios

que vivem a embalar

tuas águas contra a corrente

 

 

ENCANTO DA MATA

 

Perto da mata eu nasci

perto da mata eu vivi

hoje do pouco sabor que tenho

de olhar o rio

os encantos da mata e do saci

dos caboquinhos da mata

já não me faz sentir

que existe este encanto

 

 

RÂNGELA. Águas coração. Rio Branco: 1983.